Cem anos depois a Semana de Arte Moderna de 1922 nunca esteve tão viva, maior do que o evento preliminar. São desdobramentos que não cessam de toda ‘marquetagem’ descarada promovida naquele fevereiro de Carnaval pós-pandemia que decidira inventar um Brasil ainda difuso em conceituação. A Semana intrinsicamente propugnava movimento pendular: resgatar nossas raízes primitivas, o arcaísmo legítimo e tradicional sucumbido por estereótipos colonizantes e reenvindicar a gênese duma civilização trópica, ficando ali entre o Padre Vieira (ainda que negado) e o porvir de Darcy Ribeiro, ironia, nascido no mesmo ano. Todo debate nominalista ou restrito a personalidades em torno da Semana é reducionista: ela foi cadinho, ponto de convergência de movimentos tectônicos estéticos e comportamentais advindos desde final do Império e ainda ecoa em nossos tempos transmodernos. Estabelecer balizas conceituais também nestes tempos transidos, com parâmetros móveis e implosão de todos sentidos, reforça o valor de ressignificar aquele primordial intento de ‘brasilidade’.

A Semana precisava ser vista de longe, “work in process”, que era e nos ajuda deslindar o caminho até aqui num momento anti-intelectualista raivoso com a questão da Cultura mesmo num horizonte cirbernético. Alguns pressupostos mesmo para meu raciocínio também móvel encontrei com gosto em cartas de Mário de Andrade a Manuel Bandeira. A despretensão intelectual da epístola é melhor companheira em meio a tanto sectarismo ideológico. Numa carta de 29 de dezembro de 1924 o mestre maior nos dá sinais de repúdio ao ‘vanguardismo’ militante no burburinho de 22 e uma distinção primorosa entre o espírito moderno e o proselitismo modernista que caducou antes de maduro. “O que eu faço, e talvez já reparaste nisso, é uma distinção entre modernos e modernistas (…) Toda reação traz exageros. Eu tive porque fui reacionário contra simbolismo. Hoje não sou. Não sou mais modernista. Mas sou moderno, como você. Hoje eu posso dizer que sou também um descendente do simbolismo. O que também não impede que os modernistas tenham descoberto suas coisas e que se não fossem eles muito moderno de hoje estaria ainda bom e rijo passadista.” Nota-se aí o primado do processo, da estratégia de remoção que incorreu em terrível preconceito durante o tempo que durou o apostolado que seguiria modernidade sem ranço ortodoxo e aberto a incorporação do velho.

Outras vanguardas literárias, em especial o concretismo, se fecharam, o modernismo diluiu-se e escancarou os flancos para desdobramentos ricos. Mário de Andrade foi dar em Guimarães Rosa, nas incorporações pós-modernas e por quê não em David Kopenawa e Ailton Krenak. A Semana foi fundamental para advento da USP, para um pensamento genuinamente autóctone, do TBC ao Cinema Novo até a Tropicália e o Teatro Oficina são devedores óbvios daquele certame de vaidades, provocações e paroxismos. Quanto de Deleuze em leio em Oswald? Que poder tem Raul Bopp no mito! Por que esquecem que Drummond é gestado em plena erupção modernista? E mesmo entre os desvios nacionalistas quão pouco estudada é a poética de Cassiano Ricardo… Toda tônica antecipatória da Semana perpassa toda trajetória de desnudamento sucessivo duma dialética compacta de vetores determinantes . E também antecipa o imperativo gozozo da Arte e o sagrado da Natureza como bandeiras anti-apocalípticas. Nenhum indianismo romântico, nenhuma patriotada, o modernismo ecoa o ecológico universalizante. Observem no Manifesto Pau–Brasil: “A poesia anda oculta nos cipós maliciosos da sabedoria. “O fundamento heteróclito: “Nenhuma fórmula para a contemporânea expressão do mundo. Ver com olhos livres.” Numa outra carta de 1925 Mário de Andrade refere-se ao ideário brasileiro de inserção no mundo, atavicamente nada compatível com chauvinismo artístico: “(…) é só sendo brasileiro que nos universalizamos.” Ou seja casar-se ao mundo com lastro verde-amarelo-preto-índio…

O lance é rastrear novos protagonistas, os antes excluídos falando por si sem paternalismo discursivo das velhas elites ou intelectuais encarnando seu papel, quais novas expressões, o impacto de novas formas e como agora sem biscoitos finos nem massas qual mediação para definir o que seja arte ou produto… Talvez Bruno Latour, um dos mais lúcidos gurus de nossa era, infelizmente não tenha informação de nossa Semana para escrever “Jamais fomos modernos”: foram nossos modernistas, aí sim, mais que modernos que ‘linkaram’ natureza e criatividade orgânica e hibridamente. Foram nossos modernistas que inocularam o mito definitivamente no aparato artístico como feito antropológico fundante; mudaram a vida mais que o mundo ‘rimbaud- maldororlescamente’. A não cisão do humano e não humano, do social e do natural são explícitos como não categorias estanques na vindicação da Arte diante da Barbárie mecanicista. Superados arroubos nacionalistas, lembrar é  necessário que nenhum traço positivista ou traço do futurismo tosco: o fetiche do progresso material e da pressa são desconstituídos em todas peças da engrenagem desse “corpo sem órgãos” que vai se compondo sem submissão do natural a um propósito funcional de ocupação e consumo.

Citando de novo Oswald agora com um pedido a “regurgitofagia” : “A magia e a vida (…) E um sistema-planetário . A transfiguração do Tabu em totem. Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem  penintenciárias do matriarcado de Pindorama.” Um comunismo do corpo, a entronização dos arquétipos profundos da mata entre a queda do céu para evitar o fim utilitário desse mundo. Não se peça coerência monolítica da Semana de 22, ela se faz, ainda reverbera assentada em obras que buscam contaminações virtuosas de entendimento e nexo causal  movente. “Temos a base dupla e a presente – a floresta e a escola. A raça crédula e a geometria.” E Oswald não é piada! O viço vibra.

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Flávio Viegas Amoreira

Escritor, crítico literário e agitador cultural.

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