Pesquisar
Close this search box.

“Trabalhos Infantis” – texto inédito do escritor Marcelino Freire

 O trabalho da criança é subir em árvore.
        Subtrair galhos e frutos.
        Plantar sementes quando cisca.
        O trabalho da criança é contar as nuvens. Para onde vão? Calcular o vento para as pipas.
        O trabalho da criança não está na colheita de carvão.
        É uma máscara.
        A criança vira um monstro. Um bicho-papão.
        O trabalho da criança não tem gravatas.
        Favor não vestir uma criança como se vestisse gente morta.
        O trabalho da criança é fazer de conta que morreu. O trabalho da criança é uma estátua.
        Pode ser um pombo.
        O trabalho da criança é sujar as paredes da casa. Encher as mãos de mágica.
        O trabalho da criança é desenhar.
        Encontrar um labirinto para sair de lá.
        O trabalho da criança é encher de água os dedos do pé. E, se quiser, pular o corpo na lama.
        O trabalho da criança é artesanal.
        Fazer buracos, casa para os bichos.
        O trabalho da criança são os bichos.
        Dar banho nas girafas, alisar os cabelos do cavalo. Visitar as formigas.
        Cavar, cavar.
        O trabalho da criança é a de um agricultor sadio. Sem agrotóxico. Lavrador sem veneno.
        Vamos fazer a colheita, olhar o sol até cegar.
        O trabalho da criança não está no futuro. Não tem estatísticas. É fazer o quintal de escola.
        O trabalho da criança não é útil.
        A criança é devagar. Mesmo quando se sacode. O trabalho da criança é o tempo que dá.
        A criança quando acorda tudo acorda à sua volta.
        O trabalho da criança é ficar na cama. É não saber para que serve um relógio. É um trabalho justo.
        O trabalho da criança é um trabalho confiante.
        A criança acredita em tudo.
        O trabalho da criança é cheio de fé.
        Escalar um muro, pular o portão dos cemitérios. É respeitar os parceiros imaginários.
        O trabalho da criança é resolver o problema de outras crianças.
        Um trabalho coletivo.
        Não é um trabalho adulto o trabalho da criança. Não tem a ver com edifícios.
        O trabalho da criança não é comercial.
        Nunca ensine uma criança a contar moedas.
        O trabalho da criança é colecionar tampas de garrafa. Fichas velhas. Vinis e pilhas.
        Vassouras.
        O trabalho da criança é prático.
        Não é teórico.
        Não pergunte para uma criança sobre bolsa de valores. Quando ouve falar sobre economia, a criança engorda.
        Nenhuma criança é um chocolate.
        Nenhuma criança sabe o sapato que usa.
        O trabalho da criança está no chão.
        Por isso a criança se entende com os mendigos. A criança pode, por exemplo, colocar o prato na rua. Ou comer ao lado das formigas.
        O trabalho da criança é um trabalho de formiga.
        A criança quer ajudar o próximo.
       
O trabalho da criança não é a esperança.
        É o tato.
        O contato.
        Criança com criança vira uma revolução. Criança de mão dada com outra criança.
        O trabalho da criança é um trabalho circular.
        Uma hora, herói. Noutra, falha.
        No esconde-esconde, acredita que ficou invisível.
        O trabalho da criança é invisível. Ninguém nota. Só quando a criança está no farol.
        O trabalho da criança não é este.
        O trabalho da criança é solidário.
        É solitário, quando busca o canto de uma sala. No centro de um escritório.
        A criança rasga papeis.
        A criança picota.
        A criança gosta de cartolina e de escola. O trabalho da criança não tem nada a ver com o trabalho de escola.
        O trabalho é livre.
        Sem lição.
        O trabalho da criança não quer receber nota.
        A criança não passa de ano. A criança é só um tempo presente. A criança não faz previsões aritméticas.
        O trabalho da criança é fazer acontecer.
        Um fenômeno.
        A criança é quem põe fogo no vulcão.
        A criança é um meteoro.
        O trabalho da criança é evitar catástrofes naturais. Ela tem abalos sísmicos. É só a criança fazer uma pergunta e o mundo para.
        O trabalho da criança é um mundo filosófico.
        A criança pensa quando pesa.
        É que ela quer se livrar de uma descoberta. Tenta não se fechar em uma única ideia.
        O trabalho da criança requer dinâmica.
        Descompromisso.
       
É um trabalho que mal começou.
        Não está a fim de apresentar resultados. Não sabe dizer sobre os índices atuais de desemprego.
        O trabalho da criança é preencher todas as vagas.
        Não pode ver uma cadeira, senta.
        Um tamborete, sobe.
        Um balanço, pende.
        O trabalho da criança é uma diversão. Não humilha ninguém. Sempre está de sorriso flutuante.
        Aceso.
        O corpo vive girando.
        O trabalho da criança não vai para frente. É um poeta. O trabalho da criança jamais sabe para que serve. Não é administrativo. Não há nele ativos e passivos.
        O trabalho da criança é de uma outra esfera.
        Não se espera nada do trabalho da criança.
        Ela passa dias mexendo em uma primeira pedra. Em um trabalho lento e incomunicável.
        O trabalho da criança não visa à aposentadoria.
        Não paga prestação, não tem seguro.
        O trabalho da criança é atirar pedras.
        É perder os lucros.
        Não venha dizer o que ela tem de fazer. O trabalho da criança é a construção corporal de uma flecha.
        É um rio.
        É dormir.
        É uma rede para balançar.
        O trabalho da criança é lançar um olhar, dizer uma coisa qualquer. Não há lógica possível.
        Não espera o final do mês.
        Não pede férias.
        Mesmo quando está com muita coisa para fazer, a criança não faz. Ou faz o que der.
        O trabalho da criança está em greve.
        Chora quando outra criança chora.
        Esperneia e cresce. A criança sabe quando um adulto já não tem mais jeito.
        O trabalho da criança é fazer renascer os adultos.
        Os avôs aposentados.
        As avós esquecidas.
        O trabalho da criança é costurar todo mundo em um só tapete voador.
        O trabalho da criança é manobrar as atmosferas.
        É apontar um caminho que não estava no mapa. É ir e não partir.
        O trabalho da criança é um transporte público. Sem o público. É uma espécie de maquinário de trem. Sem o maquinário.
        O trabalho da criança acontece no improviso.
        Não tem a obrigação de ficar todo o tempo no mesmo rolo. Batendo na mesma tecla. É comum que abandone as fábricas que criou, a parede que levantou. Já era.
        O trabalho da criança não acaba.
        Mesmo quando não se é mais criança. O trabalho da criança é se guardar. Feito uma memória antiga que vem nos visitar. Na virada da noite. Na época da ponderação. Quando se vira patrão. Ou o dono da festa. A criança voltará. Em algum momento posará em nossa cólera. A criança que fomos.
        O trabalho da criança é o trabalho de nossos sonhos.

        *

        AVISO AOS ADULTOS: nenhuma criança deverá sofrer por pouco caso dos responsáveis ou do governo, nem por crueldade e exploração. EM TEMPO: nenhuma criança deverá trabalhar antes da idade mínima, nem será levada a fazer atividades que prejudiquem sua saúde, educação e desenvolvimento.

Beth Kok - Sem título
Picture of Marcelino Freire

Marcelino Freire

nasceu em 1967 em Sertânia, PE. É conhecido por suas obras, constantemente adaptadas para o teatro, e por sua atuação como professor de oficinas de criação literária, além de produtor cultural. Vive em São Paulo desde 1991. Escreveu, entre outros, “Contos Negreiros” (Editora Record, 2005), com o qual foi vencedor do Prêmio Jabuti, livro também publicado na Argentina e no México. Em 2013 lançou, pela Editora Record, o romance “Nossos Ossos” (Prêmio Machado de Assis), também publicado em Portugal e ainda na Argentina e na França. É o criador e curador da Balada Literária, evento que acontece desde 2006 em São Paulo. Em 2018, lançou o livro "Bagageiro", reunindo o que ele chama de "ensaios de ficção" (Editora José Olympio). Recentemente lançou o "Ossos do Ofídio", com ensaios breves a partir do seu blog homônimo, pelo selo BALADEYRA. Em dezembro de 2021 saiu uma "Seleta" com contos de sua autoria, escolhidos por ele, via Editora José Olympio.

Facebook
Twitter
LinkedIn
WhatsApp
Pinterest
Telegram

NEWSLETTER: RECEBA NOVIDADES

© Copyright, 2023 - Revista Piparote
Todos os direitos reservados.
Piparote - marca registrada no INPI