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Três “Poemas Brasileiros” – Do escritor angolano João Melo

AFRO-SAMBA

Este som partido quebrado gingado
veio de longe muito longe muito
longe

Os sons
deste som foram
escondidos protegidos recriados
durante
a longa viagem sem
fim sem
fim
sem
fim
para suportar
o áspero
vento da noite
elevar-se
sobre o som das lágrimas      da tristeza da
saudade

Este som
feito de tantos sons tanta
dor tanta
luta
espalhou-se estendeu-se
pelas nóveis terras subiu
o morro desceu
imponente
a avenida
entrou no coração dos homens         sarando
todas as dores
todos              
os crimes
to
                           dos
              to
                                      dos
to
dos…

CANÇÃO PARA MILTON NASCIMENTO

A lonjura da tua voz não é apenas dos amplos vales de Minas Gerais:
abarca a negra imensidão do oceano azul que em galeras te levou
das praias invadidas do Congo, Ndongo e Benguela,
alcança os planaltos ancestrais
de onde te arrancaram ao coração da terra,
sem suspeitar que na tua voz
ia a alma de todos os homens do mundo.

Não são apenas os tambores de Minas
que ressoam na tua voz:
nela brilham, suados e polidos,
os ngomas guerreiros da Lunda,
os amorosos chocalhos ibéricos,
os doces e profundos atabaques ameríndios…

Há na tua voz melodias de rouxinóis
e gritos desesperados de catetes e catuituís,
serenas fontes e cascatas sanguinolentas,
como há pianos e tambores,
puítas e violinos,
flautas murmurantes,
ásperos e belos saxofones,
erguendo-se, como um halo de luz,
sobre os dilacerados quadris da memória reconstruída.

Na tristeza da tua voz,
na alegria da tua voz

– a elementar coragem de cantar
sozinho no meio da escuridão.

NOTÍCIAS DO BRASIL

Todos os dias chegam notícias extraordinárias do Brasil.

Zumbi e Nganga Zumba, guerreiros angolanos
que ajudaram a criar essa nação,
continuam a ser mortos todos os dias, física e simbolicamente.
De facto e de jure.

A nossa irmãzinha Kathlen Romeu,
radiante e luminosa como uma estrela nascente
brilhando em todos os céus do mundo,
foi morta com tiros alegadamente equivocados,
mas certeiros,
pelo simples facto de existir e ser feliz.

Carregava dentro dela, amorosamente,
um outro ser,
forte, belo e promissor,
destinado a realizar prodígios desconhecidos,
mas os seus carrascos, taciturnos como pedras sem alma,
julgaram isso uma agravante…

O jovem Thiago da Conceição,
que tinha apenas 16 anos e, portanto,
acreditava na inexorabilidade do tempo,
foi surpreendido entre o quarto e a sala
da casa onde morava esquecido por todos os poderes,
menos o de matá-lo:
um tiro preciso, apenas um tiro,
absolutamente previsível
como o ódio dos senhores da Casa Grande,
impediu-o, talvez felizmente,
de descobrir que o mundo não tem lugar
para jovens como ele.

Matheus Ribeiro tinha algo que não lhe podia pertencer e,
além disso,
estava no lugar errado. O anátema
tinha,
pois,
toda a razão de ser.

Como se atreveu ele a protestar?

É preciso investigar…

No dia em que o país atingiu a marca de 500 mil mortos,
o Grande Mito rasgou a máscara
e sorriu como uma hiena.

A sua corte de generais,
bispos, empresários,
milicianos e robôs
conspira ardentemente contra o futuro.

Amanhã qual será a notícia?
Agora o poema descansará.
Aguardarei em silêncio o anúncio dos tambores…

João Melo

João Melo

Escritor, jornalista e consultor de comunicação, nasceu em 1955, em Luanda (Angola), onde fez os estudos primários e secundários. Estudou Direito em Coimbra (Portugal), licenciou-se em Jornalismo em Niterói (Brasil) e fez o mestrado em Comunicação em Cultura no Rio de Janeiro (Brasil). É membro fundador da União de Escritores Angolanos e da Academia Angola de Literatura e Ciências Sociais.

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