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Trecho do romance inédito “Tempo de cão” – Por Márcia Barbieri

Prólogo

eu era um homem ¿quem discordaria?

 

LIVRO 1 – UM HOMEM SEM SOMBRA DE DÚVIDA

 

Cheguei antes de amanhecer em Sombrio. Recordei de um ensinamento paterno: quando um homem fala, Deus faz silêncio para escutar. Fazia frio, por sorte estava bem agasalhado. Eu vim a pedido do meu pai e pela boca insossa de minha mãe. Se não tivesse ouvido seus conselhos sobre vestimentas a essas horas estaria congelando. As mães têm certa utilidade, não podemos negar. Minha mãe pouco falava, no entanto, seu corpo se estendia em um falatório sem fim [A demência era a desgraça da minha família. Uma deficiência congênita. Os demônios, às vezes, têm formas sutis de agir. Dizem que se estendeu até mesmo para alguns membros da vizinhança. Isso não me surpreende, já que as cercas eram baixas e o desejo esparramado. Alguns nasceram mudos outros catatônicos outros ainda nasceram loucos. Não tenho do que reclamar. Poucos tiveram a minha sorte. Eu apenas escorreguei do seu útero e estava ali entre eles. Desengonçado, peludo e grande. Não pude fazer nada. A existência se dera por uma aleatoriedade que eu ainda não compreendia. Não foi uma escolha. Nunca é uma escolha. Ao menos me parece que não herdei a loucura de família. Sou sadio e bom em álgebra. Não que a matemática correta das coisas tenha me salvado do afogamento diário. Ao contrário, só me tem feito contabilizar com perspicácia o fracasso. Indague o que me foi subtraído e te forneço uma lista de algoritmos inúteis. Não me perguntaram nada e duvido que pensaram nessa possibilidade. Eu era mais um num tronco de cem mil exemplares. Sadio, mas dispensável. Quieto Menino, cada macaco no seu galho! Um estranho no ninho. Dizem que quem sai aos seus não degenera]. Cara de um focinho de outro. As fotos na parede da escadaria retratavam este fato com fidedignidade. Eu não perderia tempo discutindo com a ancestralidade do daguerreotipo. Entre mortos e feridos estavam todos esbanjando arrogância. Cada um com uma cara de paisagem diferente, mas semelhantes na tolice. Quem sai aos seus não degenera… Torciam os narizes como se fossem os únicos nessa terra de amaldiçoados. Ninguém diria que eram filhos da mesma desgraça e partilhavam os mesmos genes deficientes. Meu pai cuspia uma reza indecifrável por baixo da mesa e depois se retirava, quase se desculpando pela existência desnecessária. Por pouco não estendi a mão e lhe fiz um afago, apenas para demonstrar que todas as existências eram tão desnecessárias quanto a sua, estava acompanhado em desventura por todas as outras criaturas. Meu pai não tinha motivos para lamentar por sua incompetência em se manter vivo. Desisti, ele não entenderia a nobreza do meu gesto, deixei o pensamento morrer antes que a mão tentasse fazer o trajeto da recusa. A roseira secou, mas ninguém se importava, excesso de sol ou poda incorreta. Custava a crer que os meus traços me prenderiam a espécies tão bizarras. Olhei de esguelha para o espelho colado na parede, definitivamente não me assemelhava em nada com eles, não digo que mais feio ou mais bonito, incomum apenas. Olhei de novo, no entanto, o espelho não estava mais lá. Parei de refletir e retornei à realidade. Alguns passavam o café, outros comiam bolacha com a boca aberta. Partilhavam apenas os trajes desalinhados e a péssima mania de falar com a boca cheia. Mal se reconheciam enquanto tagarelavam, falar de si é algo ultrajante e cansativo. Pena que ninguém percebe isso e ficam todos lado a lado admirados com seus monólogos. Eu fico quieto, já me basta a falação dentro da minha cabeça. Além disso, meu discurso seria apenas mais um monólogo ecoando pelos cantos da sala. Se eu fosse esperto jamais teria rezado pelos meus mortos, porque embora sem vida, não estavam ainda enterrados. AINDA. Eu poderia enterrá-los, afinal, esse é o meu trabalho. Não, não sou um coveiro, se é isso que está pensando. Sou Menino, o enterrador de corpos. Não sou coveiro. Não estou aqui à toa, foram eles que me chamaram. Não importa quem são eles, se você soubesse não mudaria nada. Se morrer, será enterrado como todos, abrirei a cova e depositarei o seu cadáver, é uma lógica simples. Desaparecerá sem grande alarde. Quem sabe toque um sino, se alguma vaca estiver pastando pela redondeza. Talvez um ou outro cão durma na sua sepultura. Talvez não. Não procure nada além disso. Não há nenhuma poética na morte. Findamos desde o instante em que o cordão nos abandona. Não há mais onde se segurar. A morte é um fracasso gradativo. O homem é uma semente que a terra abocanha e não germina. Uma árvore que dá frutos estéreis. Esperamos grandes honrarias e nunca as recebemos em vida, contudo, também não as receberemos depois de mortos. Não existe nada nem de um lado nem do outro. Não espere grande coisa. Não passaremos de cadáveres engravatados esperando pacientemente o jantar dos vermes.

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Márcia Barbieri

nasceu em Indaiatuba, São Paulo, em 1979. Formou-se em Letras pela Unesp e é mestra em Filosofia pela Unifesp. Participou de várias antologias e tem textos nas principais revistas literárias brasileiras. Foi uma das idealizadoras do Coletivo Púcaro, do canal Pílulas Contemporâneas e do projeto Pinot Noir Literatura. Publicou os livros de contos Anéis de Saturno (ed. independente, 2009), As mãos mirradas de Deus (Multifoco, 2011) e O exílio do eu ou a revolução das coisas mortas (Appaloosa, 2018). Entre os romances figuram Mosaico de rancores (Terracota, 2013) lançado no Brasil e na Alemanha (Clandestino Publikationen, 2016), A Puta (Terracota, 2014/Reformatório, 2020), foi contemplado este ano com uma bolsa de tradução pela PEN America. O enterro do lobo branco (Patuá, 2017), finalista como melhor romance de 2017 pelo Prêmio São Paulo de Literatura 2018 e A casa das aranhas (Reformatório, 2019), finalista do Prêmio Guarulhos e semifinalista do Prêmio Oceanos.

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