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“A realidade dos realities” – Por Gabriel Frias

Janeiro de 2022: estamos diante de mais uma edição do mais famoso programa televisivo que um grande canal de TV realiza fielmente, todos os anos, há mais de duas décadas. Programa, não, um reality show! E esse é um detalhe crucial que vai para além da nomenclatura. A sobrevivência de um programa em tempos tão difíceis de audiência tão disputada, sobretudo entre canais tradicionais de mídia, mundo virtual e plataformas de streaming etc., mostra bem a persistência e a força desse formato de entretenimento, sem contar sua incrível adaptabilidade ao gosto, comportamento e expetativas do público, capazes de lhe garantir uma durabilidade e adesão fora do comum. Fenômeno típico da sociedade do espetáculo, experimento já prenunciado por Orwell em sua obra magna 1984, os realities tornaram-se mais que parte do cotidiano, uma verdadeira obsessão coletiva.

Bem, o emprego do estrangeirismo reality por si só já dá o tom da crítica, um uso não apenas artificial como desnecessário, afinal, encontramos em nossa língua vernácula uma expressão exatamente semelhante. No entanto, real e realidade são termos que já não nos servem, vimos surgir um novo vocábulo com sotaque e cor local. O “REALITI” caiu nas graças dos falantes, um estranho neologismo que já seria suficiente para uma primeira reflexão. Contudo, pretendo ir aqui um pouco além dos barbarismos.

A pergunta mais inquietante é tentar descobrir por que tais programas exercem tanto fascínio e sedução? No caso então da tal “casa mais vigiada do país”, que tipo de interesse há na exposição da intimidade de pessoas completamente comuns, na contemplação de sua rotina de confinamento, de conversas triviais e intrigas cotidianas?

Claro que os canais de televisão pouco se importam em buscar explicações para tal gosto popular, da mesma forma como tudo que lhes interessa são os vultuosos lucros e ganhos financeiros. Encontraram um filão e tanto. Uma verdadeira mina de ouro a ser explorada, não apenas lançando novas edições, como resgatando velhos programas e testando ainda novos formatos nesse mercado de infinitas possibilidades.

Contudo a verdade é que esses intrigantes experimentos midiáticos já se tornaram verdadeiros laboratórios de psicologia social. O que vemos, ao fim, é que os realities não apenas tomam emprestado um conceito filosófico de maior importância – a realidade -, como a deturpam.

Ora, ainda que seja impossível definir realidade, nossa percepção nos sugere, ou sugeria, apenas duas possibilidades: ou estamos no campo do real, ou nos domínios do irreal. No primeiro, nossa sensação ou percepção do que é verdadeiro ou sugere verdade: fatos, dados, evidências. No outro universo, aquilo que extrapola o campo da realidade, que é, aliás, onde muitas vezes transita a própria arte e a ficção.

Mas o que é a realidade? Tal pergunta moveu e move séculos de filosofia e atormenta pensadores de diferentes tradições e épocas, permanecendo, ainda hoje, sem resposta ou laudo conclusivo. Em nossos tempos, no entanto, a pergunta parece ser mais difícil: Existirá ainda a realidade?

Isso porque somos constantemente provocados por notícias, bombardeados por informações, atropelados por fake news (com o perdão de outro barbarismo) e mergulhados em um espetáculo extenuante e tumultuado de um “real”. Nossa sensação mais comum é de que a realidade, se existente, está em permanente fuga, como areia que escapa pelos dedos de nossas mãos. Isso sem contar que “essa realidade” contemplada e assistida não é uma realidade próxima, a realidade do cotidiano, das questões e problemas locais, e sim uma realidade macro, mega, uma enorme tela onde temos a impressão de podermos ver tudo o que acontece em tempo real. Estamos cansados, intoxicados de “realidade”. Daí, inclusive, a preferência de muitos em rejeitar essa “realidade”, em aderir a falsos ídolos e teorias, invocar ou fabricar conspirações ou criar sua própria “realidade” por mais delirante que seja.

Fato é que suportar a realidade sempre foi e continua sendo uma tarefa extremamente árdua, difícil e cansativa. Fugir dela, portanto, é um desejo comum, um sentimento de séculos já expresso até mesmo em tópicas literárias como o fugere urbem, para os que ainda se recordam das aulas de literatura na escola e cuja origem, como se sabe, remonta a período muito anterior ao Arcadismo ou qualquer outra estética artística-literária da modernidade. Ora, mais que um sentimento, um desejo ou pulsão, fugir da realidade é por vezes uma necessidade imperiosa.

Mas, para onde fugimos? O campo da ficção e da arte, em seus múltiplos domínios, têm nos dado valiosas ferramentas e oportunidades, permitindo-nos não apenas contemplar o que já foi realizado, como até mesmo criar e produzir algo de novo e de próprio. Por isso, a arte nos deixa um valioso legado, um vasto repertório útil à vida, um acúmulo de experiências, sentimentos, filtrados pelas percepções de milhares de homens e mulheres e depuradas por séculos de produção artística e sensibilidade estética. Implicam ainda numa possibilidade de treino da sensibilidade, de sentimentos e afetos, um campo familiar e seguro, embora vasto e inesgotável, para onde podemos fugir da realidade quando esta nos cansa ou atormenta, um lugar para transitarmos e descobrirmos novos mundos e experiências.

E não falo aqui só da chamada “alta cultura”, tampouco me refiro somente a livros e romances. Desde as radionovelas, ou mesmo com os filmes, as telenovelas, as modernas séries, em todas elas, por mais simples que possam ser os roteiros e os dramas, temos algo em comum: o fato de serem experiências nos permitem o mergulho no universo da ficção, da narrativa, dos sonhos ou de um real transmutado, ainda que próximo da realidade. Mas a ficção, seja de que tipo for, nos impõe o esforço de extrair sentido, de interpretar e ressignificar a realidade. Os realities representam, desse modo, enquanto fenômeno coletivo de psicologia das massas, uma opção segura e tranquila de um entretenimento que abandona a ficção, a narrativa, a fantasia em nome de uma opção de consumo mais fácil e instantâneo. Um entretenimento sem qualquer esforço, uma rota tranquila de fuga da realidade sem as complicações tradicionais das artes e da cultura.

Somos todos, de certo modo, portanto, levados a rejeitar a ficção. A realidade tem mais valor que a fantasia, tradicionalmente associada ao entretenimento, mas também à própria reflexão, ao pensamento e crítica, coisas das quais tanto fugimos nos momentos raros e preciosos de descanso. Porém, enquanto entretenimento, os realities seriam uma opção válida de fuga da realidade? Não. E esse é apenas mais um dos paradoxos e contradições que envolvem esses estranhos divertimentos modernos. O reality até é uma opção tranquila de fuga da realidade, mas, uma fuga da realidade para a “realidade”. Abandonamos nossas pretensões de criadores de histórias e narrativas para tornarmo-nos hoje reféns de ficções que se vendem como uma realidade. Isso porque a realidade dos realities está muito longe de ser a realidade do real.

Trata-se, a bem da verdade, de uma realidade paralela, alienante, mas que supõe estar no campo da realidade e que por isso ganha a simpatia de todos. A linguagem é simples, cotidiana, sem qualquer necessidade de roteiro ou enredo, ou ao menos é o que querem que acreditemos, apesar de recursos de edição. Os personagens (que muitos creem não serem personagens) não atuariam, dizem, são pessoas absolutamente comuns, muitas vezes até desinteressantes, irrelevantes, não obstante a fama virtual adquirida como resultado de uma escalada meteórica de digitais influencers. Não há apelo à sensibilidade, apenas exposição! Tudo literal, sem metáforas nem interpretação! A estética aqui não é nem a da ficção nem a da realidade. Apenas um espetáculo de projeção onde vemos espelhadas pessoas comuns, dramas banais tornados grandiosos porque encenados na TV. Sonho? Se muito, talvez, o sonho do sucesso, da glória e da aclamação que, inclusive, é ali ingênua e perigosamente vendida como algo acessível e possível a qualquer um. Mas, então, qual é a graça? O que têm tais programas de tão encantador?

Ora, a graça, dizem, é exata e unicamente a de ser “real”.

Contudo, isso não é o que acontece com a realidade dos realities, porque essa não é a “realidade real”, mas uma realidade anódina, estéril, artificialmente construída (senão até manipulada) que toma da “realidade” externa elementos identificáveis por todos para reapreciá-los sob a lógica do espetáculo com aparência de espontaneidade e improvisação. É como se estivéssemos dependentes de realidade, imersos em uma hiper-realidade, da qual não podemos nos desconectar em momento algum. Me recordo da imagem de Alex, o anti-herói de Laranja Mecânica, clássico de Stanley Kubrick, submetido à técnica Ludovico, uma ferramenta experimental de condicionamento psicológico.

Os realities constroem, assim, mais que um simulacro de realidade, uma verdadeira supra realidade. Somos levados a crer que nesses espaços, inclusive, tematizam-se as grandes questões de nosso tempo e de nossa sociedade. Um microcosmo! Cria-se aqui uma arena onde se discutem condutas, conflitos e pautas. A internet e as redes são uma extensão desse mundo. E aí vem outro ponto interessante. Os realities não são meros espetáculos de exposição e audiência, exigem nosso engajamento, adesão e até certa combatividade. Suprem de uma só vez nossa necessidade de entretenimento e nossos desejos mais profundos de identificação e pertencimento, sob as bênçãos das leis de mercado, a segurança das ferramentas de edição e de controle das redes, com as licenças da “realidade” em um grande jogo da vida “real”. A lógica do jogo e da disputa terminam por mascarar tudo, até os eventuais conflitos, críticas e crises. De alguma forma, porém, aplacam nossas paixões, ou pelo menos as limitam, domesticam. E aí vem então o grand finale: a possibilidade, ao fim, de uma catarse redentora, com direito à vitória e recompensa, sem risco de maiores mobilizações e críticas. Tudo transitório e passageiro, claro, como convém ao gosto e aos tempos. Ufa, estamos, enfim, vingados! Aristóteles, no século IV a.C em sua Poética, falava da tragédia e de sua importância para a polis como um espetáculo de catarse e de purificação coletiva. Séculos depois, seria essa a catarse possível das sociedades modernas?

Mas, atenção, não se trata de uma condenação ou demonização dos programas de “realiti” como forma de entretenimento, ou mesmo sua recusa como ferramenta para pensar a realidade. O que quero aqui refletir é sobre ao que essa lógica sedutora e obsessiva pode acabar nos levando. Aliás, falando em obsessão e fanatismo, confesso que, certas vezes, me causa estranheza e espanto a defesa aguerrida que muitos fazem desses programas, tendo se tornado quase um sacrilégio questionar sua inutilidade, já que se tornaram para muitos a panaceia de nossos tempos. Não se trata de criticar o banal, o entretenimento comum. Como já disse, todos precisamos nos alienar da realidade. Não condeno nem recrimino quem assiste, não questiono o “consumo” de realities como entretenimento e distração, mas, sim, como ferramenta de formação e debate a partir da qual moldamos uma nova realidade, uma meta-realidade. Bem-vindos à árida e implacável lógica do real.

O que quero dizer, para concluir, é que, mais uma vez, estamos diante de uma ilusão de real e de uma apropriação bastante deturpada do que é realidade. Os realities nos tiram da realidade sem nos tirar dela, performatizam e simulam, já no nome, a ideia de realidade, contudo, seu compromisso não é, de fato, com o real. Criam uma nova percepção e acabam, assim, por fundar efetivamente uma nova realidade: uma realidade on demand. Aliás, talvez seja a hora de pensarmos que eles se tornaram hoje uma valiosa experiência e experimento para testar os limites das percepções coletivas, das opiniões, mapear padrões de comportamento e de consumo. Os realities são a metonímia da realidade em uma sociedade de controle sem precedentes. Acha tudo isso um delírio? Então leia George Orwell. Mas isso é uma discussão para outro dia.

A era dos realities, talvez descubramos no futuro, coincidirá com a era do desaparecimento dos sonhos, das ficções e das fantasias. Até as metáforas estão morrendo…

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Gabriel Frias

É advogado e professor universitário.

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