O trabalho da criança é subir em árvore.
        Subtrair galhos e frutos.
        Plantar sementes quando cisca.
        O trabalho da criança é contar as nuvens. Para onde vão? Calcular o vento para as pipas.
        O trabalho da criança não está na colheita de carvão.
        É uma máscara.
        A criança vira um monstro. Um bicho-papão.
        O trabalho da criança não tem gravatas.
        Favor não vestir uma criança como se vestisse gente morta.
        O trabalho da criança é fazer de conta que morreu. O trabalho da criança é uma estátua.
        Pode ser um pombo.
        O trabalho da criança é sujar as paredes da casa. Encher as mãos de mágica.
        O trabalho da criança é desenhar.
        Encontrar um labirinto para sair de lá.
        O trabalho da criança é encher de água os dedos do pé. E, se quiser, pular o corpo na lama.
        O trabalho da criança é artesanal.
        Fazer buracos, casa para os bichos.
        O trabalho da criança são os bichos.
        Dar banho nas girafas, alisar os cabelos do cavalo. Visitar as formigas.
        Cavar, cavar.
        O trabalho da criança é a de um agricultor sadio. Sem agrotóxico. Lavrador sem veneno.
        Vamos fazer a colheita, olhar o sol até cegar.
        O trabalho da criança não está no futuro. Não tem estatísticas. É fazer o quintal de escola.
        O trabalho da criança não é útil.
        A criança é devagar. Mesmo quando se sacode. O trabalho da criança é o tempo que dá.
        A criança quando acorda tudo acorda à sua volta.
        O trabalho da criança é ficar na cama. É não saber para que serve um relógio. É um trabalho justo.
        O trabalho da criança é um trabalho confiante.
        A criança acredita em tudo.
        O trabalho da criança é cheio de fé.
        Escalar um muro, pular o portão dos cemitérios. É respeitar os parceiros imaginários.
        O trabalho da criança é resolver o problema de outras crianças.
        Um trabalho coletivo.
        Não é um trabalho adulto o trabalho da criança. Não tem a ver com edifícios.
        O trabalho da criança não é comercial.
        Nunca ensine uma criança a contar moedas.
        O trabalho da criança é colecionar tampas de garrafa. Fichas velhas. Vinis e pilhas.
        Vassouras.
        O trabalho da criança é prático.
        Não é teórico.
        Não pergunte para uma criança sobre bolsa de valores. Quando ouve falar sobre economia, a criança engorda.
        Nenhuma criança é um chocolate.
        Nenhuma criança sabe o sapato que usa.
        O trabalho da criança está no chão.
        Por isso a criança se entende com os mendigos. A criança pode, por exemplo, colocar o prato na rua. Ou comer ao lado das formigas.
        O trabalho da criança é um trabalho de formiga.
        A criança quer ajudar o próximo.
       
O trabalho da criança não é a esperança.
        É o tato.
        O contato.
        Criança com criança vira uma revolução. Criança de mão dada com outra criança.
        O trabalho da criança é um trabalho circular.
        Uma hora, herói. Noutra, falha.
        No esconde-esconde, acredita que ficou invisível.
        O trabalho da criança é invisível. Ninguém nota. Só quando a criança está no farol.
        O trabalho da criança não é este.
        O trabalho da criança é solidário.
        É solitário, quando busca o canto de uma sala. No centro de um escritório.
        A criança rasga papeis.
        A criança picota.
        A criança gosta de cartolina e de escola. O trabalho da criança não tem nada a ver com o trabalho de escola.
        O trabalho é livre.
        Sem lição.
        O trabalho da criança não quer receber nota.
        A criança não passa de ano. A criança é só um tempo presente. A criança não faz previsões aritméticas.
        O trabalho da criança é fazer acontecer.
        Um fenômeno.
        A criança é quem põe fogo no vulcão.
        A criança é um meteoro.
        O trabalho da criança é evitar catástrofes naturais. Ela tem abalos sísmicos. É só a criança fazer uma pergunta e o mundo para.
        O trabalho da criança é um mundo filosófico.
        A criança pensa quando pesa.
        É que ela quer se livrar de uma descoberta. Tenta não se fechar em uma única ideia.
        O trabalho da criança requer dinâmica.
        Descompromisso.
       
É um trabalho que mal começou.
        Não está a fim de apresentar resultados. Não sabe dizer sobre os índices atuais de desemprego.
        O trabalho da criança é preencher todas as vagas.
        Não pode ver uma cadeira, senta.
        Um tamborete, sobe.
        Um balanço, pende.
        O trabalho da criança é uma diversão. Não humilha ninguém. Sempre está de sorriso flutuante.
        Aceso.
        O corpo vive girando.
        O trabalho da criança não vai para frente. É um poeta. O trabalho da criança jamais sabe para que serve. Não é administrativo. Não há nele ativos e passivos.
        O trabalho da criança é de uma outra esfera.
        Não se espera nada do trabalho da criança.
        Ela passa dias mexendo em uma primeira pedra. Em um trabalho lento e incomunicável.
        O trabalho da criança não visa à aposentadoria.
        Não paga prestação, não tem seguro.
        O trabalho da criança é atirar pedras.
        É perder os lucros.
        Não venha dizer o que ela tem de fazer. O trabalho da criança é a construção corporal de uma flecha.
        É um rio.
        É dormir.
        É uma rede para balançar.
        O trabalho da criança é lançar um olhar, dizer uma coisa qualquer. Não há lógica possível.
        Não espera o final do mês.
        Não pede férias.
        Mesmo quando está com muita coisa para fazer, a criança não faz. Ou faz o que der.
        O trabalho da criança está em greve.
        Chora quando outra criança chora.
        Esperneia e cresce. A criança sabe quando um adulto já não tem mais jeito.
        O trabalho da criança é fazer renascer os adultos.
        Os avôs aposentados.
        As avós esquecidas.
        O trabalho da criança é costurar todo mundo em um só tapete voador.
        O trabalho da criança é manobrar as atmosferas.
        É apontar um caminho que não estava no mapa. É ir e não partir.
        O trabalho da criança é um transporte público. Sem o público. É uma espécie de maquinário de trem. Sem o maquinário.
        O trabalho da criança acontece no improviso.
        Não tem a obrigação de ficar todo o tempo no mesmo rolo. Batendo na mesma tecla. É comum que abandone as fábricas que criou, a parede que levantou. Já era.
        O trabalho da criança não acaba.
        Mesmo quando não se é mais criança. O trabalho da criança é se guardar. Feito uma memória antiga que vem nos visitar. Na virada da noite. Na época da ponderação. Quando se vira patrão. Ou o dono da festa. A criança voltará. Em algum momento posará em nossa cólera. A criança que fomos.
        O trabalho da criança é o trabalho de nossos sonhos.

        *

        AVISO AOS ADULTOS: nenhuma criança deverá sofrer por pouco caso dos responsáveis ou do governo, nem por crueldade e exploração. EM TEMPO: nenhuma criança deverá trabalhar antes da idade mínima, nem será levada a fazer atividades que prejudiquem sua saúde, educação e desenvolvimento.

Beth Kok - Sem título
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Marcelino Freire

nasceu em 1967 em Sertânia, PE. É conhecido por suas obras, constantemente adaptadas para o teatro, e por sua atuação como professor de oficinas de criação literária, além de produtor cultural. Vive em São Paulo desde 1991. Escreveu, entre outros, “Contos Negreiros” (Editora Record, 2005), com o qual foi vencedor do Prêmio Jabuti, livro também publicado na Argentina e no México. Em 2013 lançou, pela Editora Record, o romance “Nossos Ossos” (Prêmio Machado de Assis), também publicado em Portugal e ainda na Argentina e na França. É o criador e curador da Balada Literária, evento que acontece desde 2006 em São Paulo. Em 2018, lançou o livro "Bagageiro", reunindo o que ele chama de "ensaios de ficção" (Editora José Olympio). Recentemente lançou o "Ossos do Ofídio", com ensaios breves a partir do seu blog homônimo, pelo selo BALADEYRA. Em dezembro de 2021 saiu uma "Seleta" com contos de sua autoria, escolhidos por ele, via Editora José Olympio.

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