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Reinaldo Ferreira: Cem anos – Poemas do livro “Um voo cego a nada”

Se eu nunca disse que os teus dentes
São pérolas,
É porque são dentes.
Se eu nunca disse que os teus lábios
São corais,
É porque são lábios.
Se eu nunca disse que os teus olhos
São dónix, ou esmeralda, ou safira,
É porque são olhos.
Pérolas e ónix e corais são coisas,
E coisas não sublimam coisas.
Eu, se algum dia com lugares-comuns
Houvesse de louvar-te,
Decerto buscava na poesia,
Na paisagem, na música,
Imagens transcendentes
Dos olhos e dos lábios e dos dentes.
Mas crê, sinceramente crê,
Que todas as metáforas são pouco
Para dizer o que eu vejo.
E vejo olhos, lábios, dentes.

Do campo dos mortos
Em terra estrangeira
Por onde passámos
Absortos os dois,
Saímos ilesos de melancolia,
Por irmos tão vivos, tão livres
E juntos os dois.
Em vão sobre as campas
Dos mortos estrangeiros
Visível olvido
Na terra sem rosas votivas
Chamava por nós.
Nós íamos indo,
Felizes, felizes,
E o ventre da terra
Sonhava raízes
À volta de nós.
Nós íamos indo
Na hora que, breve, passava,
Vivendo-a sòmente.
E a nossa presença encarnava
No campo dos mortos em terra estrangeira
– Passado, passado –
O presente.

Oh! tarde de sábado britânica,
Poema da rotina,
Prodígio do bem-estar…
Eu, que donde vou, latino e desgrenhado,
Intenso, irregular,
Apenas sei a vibração e o desânimo
(O sol excessivo e a sombra opaca),
Olho-te no deslumbramento
De quem se banha
E se deslumbra
Em penumbra.

RECEITA PARA FAZER UM HERÓI

Tome-se um homem,
Feito de nada, como nós,
E em tamanho natural.
Embeba-se-lhe a carne,
Lentamente,
Duma certeza aguda, irracional,
Intensa como o ódio ou como a fome.
Depois, perto do fim,
Agite-se um pendão
E toque-se um clarim.

Serve-se morto

A obra Um voo cego a nada, do poeta Reinaldo Ferreira, encontra-se disponível para acesso gratuito na Biblioteca Moçambique. Os livros permanecem no formato da antiga colônia portuguesa. Site malhanga.com

Reinaldo Ferreira

Reinaldo Ferreira

Reinaldo Edgar de Azevedo e Silva Ferreira foi um poeta português que realizou toda a sua obra em Moçambique.
Nasceu a 20 Março 1922 (Barcelona)
Morreu em 30 Junho 1959 (Maputo)

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