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Crônica da Casa Assassinada, de Lúcio Cardoso

Por Marcelo Jungle

A Companhia das Letras lançou no primeiro semestre de 2021 uma reedição da Crônica da Casa Assassinada, de Lúcio Cardoso (1912-1968), obra esgotada desde 2015. Publicada pela primeira vez em 1959, marca o ápice da carreira do escritor mineiro, interrompida em 1962 por um derrame cerebral. Dedicou-se então à pintura, até que um novo derrame o levou. Como não poderia deixar de ser, em seu lançamento, Crônica causou agitação no universo literário brasileiro e foi analisada tanto pelo ângulo moral e condenatório, quanto pelo apologético. Ao longo dos anos, foi adquirindo fama de obra icônica, muitas vezes enaltecida por seus recursos de forma ou pelos temas como loucura e decadência. Foi traduzida para o espanhol, inglês, francês e holandês. Todavia, num estranho processo que o destino reserva a certos escritores no Brasil, o controvertido Lúcio foi sendo esquecido e com ele sua obra, incluída a bem sucedida Crônica. Assim, é de ser enaltecida a nova edição por uma grande editora, a qual adquiriu ainda os direitos dos Diários Completos e uma coletânea de contos do autor mineiro.

Em celebração ao lançamento, traço um breve itinerário de leitor, sem qualquer intenção de esgotar as inúmeras discussões que o livro pode suscitar.

Cumpre antes estabelecer de forma rápida a condição de Lúcio Cardoso no universo literário brasileiro, autor que conviveu com a controvérsia, clichês e preconceitos ao longo da vida, o que lhe valeu a classificação de escritor maldito. Porém, o maior dos rótulos com que teve que lidar foi a de escritor católico, junto com Octavio de Faria e Cornélio Penna. Na verdade, os romances introspectivos que produziam se contrapunham ao chamado romance regionalista e por isso lhes renderam o epíteto, muitas vezes visto com hostilidade pela crítica e outros escritores contemporâneos, movidos muitas vezes por motivações ideológicas. 

E ainda que se mostre bastante perceptível sua evolução como escritor, culminando com esta que pode ser chamada de uma das grandes criações da moderna literatura brasileira, teve que suportar críticas bastante ácidas e muitas vezes injustas. Wilson Martins escreveu que ela não estava longe de ser uma obra-prima (Suplemento Literário do Estado de São Paulo, em 01.08.1959), o que era um consentimento raro do renomado crítico. Apesar disso, reserva a maior parte do mesmo artigo apontando defeitos da obra. Assis Brasil o fez de forma mais ácida e sem titubeios em demonstrar seu desagrado com a obra e a pessoa de Lúcio Cardoso, sem abrir exceção para a Crônica (Jornal do Brasil, Suplemento Dominical,06.02.1960).

Estabelecido esse rápido contexto, sigamos ao objetivo, que é traçar um pequeno e bastante pessoal roteiro da obra.

Já de início o autor adverte ao leitor para o que o aguarda, como essa passagem exemplificativa: “Que é o para sempre senão o existir contínuo e líquido de tudo aquilo que é liberto da contingência, que se transforma, evolui e deságua sem cessar em praias de sensações também mutáveis? Inútil esconder: o para sempre ali se achava diante dos meus olhos.”

Um traço comum na leitura de Lúcio Cardoso é que a cada frase pode-se deparar com esse tipo de linguagem, o que exige uma prospecção atenta e também lenta. Além de não se ler Lúcio impunemente, como se diz, não se lê Lúcio com pressa. Na transcrição acima, pode-se identificar vários exemplos do que se está a dizer: existir contínuo e líquido;  tudo aquilo que é liberto da contingência; praias de sensações também mutáveis; o para sempre. Todas estas construções demandam uma espera reflexiva ou uma releitura. Cabe ao leitor buscar o significado e sua função para instruir a trama, o ambiente ou a condução de uma ideia, o que é uma forma de se tratar com leitores inteligentes.

Assim como a leitura descompromissada deve ser evitada desde o início, julgamentos sumários podem surgir e servir a sua interrupção em nome de um moralismo ainda vigente ou um desconforto com o que se está a apresentar. Desse modo, temos uma mãe moribunda, um filho em desespero e um marido enlutado. Temos também um velório e a descrição crua de uma relação incestuosa entre mãe e filho. Nina é a mãe moribunda e defunta. Ela ainda poderia ser definida como uma Jocasta moderna, que se define pela consciência e não pelo engano, destituída da moralidade convencional. Valdo, o marido, e André, o filho que escreve o diário que se lê no capítulo 1. Em seguida, os personagens vão se tornando mais visíveis. Aliás, o que menos existe em todo o livro são fatos em desenvolvimento, mas como disse o próprio autor, pontos de vista de fatos. Não é incomum o mesmo acontecimento ser narrado diversas vezes, transpondo o leitor para o interior de cada personagem que assume o relato ao longo dos capítulos, conforme a narração multiperspectiva adotada pelo autor.

Estabelecem-se vários mistérios. Um dos mais evidentes é o ódio do cunhado, Demétrio, a Nina, com suas instabilidades, fugas e retornos da casa. A Chácara, por sua vez, começa a ser revelada a cada capítulo, colocando-se ao lado da família Meneses como instituição autônoma. Há o irmão Valdo, ferido por um tiro não esclarecido. Há figuras periféricas, como o farmacêutico, a governanta, um médico embevecido pela beleza da jovem Nina e o estranho irmão Timóteo, que, rompido com a família, habita um quarto da casa sempre vestindo as roupas da falecida mãe. Entretanto, não rompeu com a casa e nela habita como uma alma penada transexual, esperando que o futuro possa libertá-la.

O tempo é apresentado de forma fragmentada mas sem dificuldade de ser captado a cada capítulo. Fica claro que o intuito do autor é estabelecer diversas situações a serem acompanhadas sob diversos pontos de vista. Nina reina neste início. É apresentada como mulher volúvel e ao mesmo tempo com desejo de amar e ser amada. A casa, no entanto, é o impedimento à realização desse desejo unificado. Um tiro, o assédio do cunhado, o incesto, os retornos. Entre idas e vindas, a casa se estabelece como personagem e destinatária dos fatos. O médico que atende à família Meneses se revela como uma voz de observador sensato, apesar de ele mesmo não esconder uma atração por Nina que ultrapassa a mera atenção médica. O farmacêutico, outro personagem periférico, vangloria-se de ter acesso a informações privilegiadas sobre os acontecimentos que acontecem na casa. Como tais fatos são de interesse popular, uma curiosidade vizinha da maldade, ele se aproveita para angariar a própria popularidade. E sobre os aristocráticos Meneses: Poder-se-ia dizer, resumindo tudo, que não eram simpáticos, se bem que imprescindíveis à vida da cidade.

Ao longo da trama vão aparecendo situações de um filme de suspense dos anos 40-50, em que a maior ameaça é à própria casa, sempre a ser defendida, atacada ou abandonada, conforme a voz de que se vale o autor. De fato, esta impressão nasce das convicções e emoções dos personagens, espalhadas por suas cartas, diários, confissões e depoimentos. E um sentimento comum que aflora é o medo. Todos têm muito medo, ou melhor, muitos medos. Cada qual com o seu, mas sempre com alguma ligação com a casa.

Nina, por exemplo, desde o começo se apavora com o fato de ter que viver na casa. E apenas um dos seus paradoxos é que, apesar de fugir por diversas vezes, ela acaba sempre retornando, inclusive para nela morrer. Timóteo, por sua vez, se exila dentro da própria casa. Demétrio e Ana, sua esposa, vivem separados dentro dela. E os visitantes sempre veem a casa como algo a ser temido, com suspeita e mistério. Espreitar, espiar, observar, passos ouvidos e não vistos, vigilância, espera. Ameaça. Sugestão. É essa gama de circunstâncias que forma o ambiente de thriller e que domina os personagens e seus movimentos, inclusive o jovem jardineiro Alberto, o qual, despedido por Demetrio, irá impor sua permanência da forma mais radical, o suicídio. A casa tem a seus cuidados Betty, uma espécie de governanta que se preocupa em não se apresentar como tal. Mas a ela a casa se revela, tem espírito, tem a imagem lacerada, como um corpo vivo, que não lhe sai da mente. E tudo isso se desperta quando do retorno de Nina e sua aproximação com o filho André, acontecimento carregado de fervor e que a todos começa a afligir. E como Betty diz, a própria casa se vê ameaçada neste momento. Valdo perde a razão, Demétrio e Ana se afastam mais e mais.

A Crônica é um romance imenso, grandioso e intenso. Um clímax é o duelo verbal entre Nina e Ana, por esta relatado com impressionante sinceridade, que expõe com todas as letras uma parte marcante da trama e toda crueldade e distanciamento de Nina da família Meneses. A sinceridade fica mais evidente pelo fato de que claramente Ana se vê derrotada e destruída pelas palavras de Nina. A diabólica Nina não demonstra nenhuma compaixão por Ana, uma alma estagnada, seca, em quem tudo era fosco e plúmbeo, nas palavras do atônito padre Justino.

A transfiguração de André também é um dos aspectos mais tocantes do romance. De filho solitário e abandonado pela mãe, vê-se obrigado a tornar-se homem de verdade quase que num ato de sacrifício, movido pela paixão e pela morte. De menino surpreendido pela transição, passa num átimo a homem movido pela sensualidade e deslumbramento pela perversão, que se prestam como servidão de passagem para a vida adulta. Ao final de uma de suas anotações, refere-se ao futuro de sua maturidade com certo refrigério na alma: “Hoje, calado, sofro ainda, mas sem aquela escuridão que tantas vezes me atirou contra as quatro paredes de mim mesmo, enfurecido – e que no seu desvario era apenas a tradução adolescente desse fundo terror humano de perder e ser traído, que nos acompanha, ai de nós, durante a existência inteira“. Sem dúvida nenhuma, uma belíssima descrição da natureza humana e sua imutabilidade, rebelde apenas nas formas. Mas também uma referência ao para sempre mencionado no início e que parece indissociável à perda da fé e à morte que todo ser humano terá de enfrentar cedo ou tarde. A morte, aliás, perpassa todos os capítulos da história e atinge a todos os personagens, alguns de forma figurada, outros de forma concreta, seja pela sua instalação instantânea, seja pela secura de sinais vitais e a mera impressão de que apenas gravitam em torno da casa, a qual se mostram incapazes de enfrentar.

Nina e Demétrio, apesar de todo o enfrentamento que protagonizam, são expostos praticamente apenas através das falas e testemunhos dos demais personagens. A primeira, apesar de assumir a narrativa através de 4 cartas dirigidas ao marido Valdo e ao amigo de seu pai (e pretendente), o Coronel, só se revela em toda sua intensidade de modo a alcançar a condição de protagonista, através dos relatos alheios. Já Demétrio, em nenhum momento assume a narrativa. Lúcio Cardoso tem sob seu domínio a técnica de apresentar em poucas linhas e simples referências a importância do personagem, utilizando para isso as observações de outros personagens. Realmente o talento do autor é plenamente identificável durante todo o percurso da leitura, que em nenhum momento se torna enfadonha ou paralisante. E não é difícil identificar a presença do narrador a todo o tempo, o que chegou a ser apontado como defeito, pela circunstância literária de que Lúcio Cardoso não deu contornos próprios aos estilos de escrita dos personagens. Engraçado pensar que por um lado é acusado de praticar um excesso de literatura e por outro de praticar pouca literatura. Prefiro pensar que seja uma demonstração clara de que Lúcio Cardoso é um escritor puro-sangue, desprovido da necessidade de agigantar os próprios personagens para, através deles, revelar-se como o virtuoso estético. A sua literatura nunca teve a menor reverência por esta forma de escrita, preferindo sempre o drama humano e seus mistérios.

De outra parte, prevalecem os monólogos interiores como formas narrativas. E, conforme a personalidade e alcance de cada personagem, a intensidade e fundamentos de compreensão são ou não inseridos pelo escritor. Por exemplo, o diário de Betty é quase um caderno de colegial, restrito ao relato fotográfico das cenas que presencia, ao passo que as intervenções de André (curiosamente também nominadas como diário) são dotadas de profundas digressões filosóficas e existenciais.

Pouco, muito pouco se sabe a respeito do mundo exterior da casa. Algumas cidades são mencionadas, mas absolutamente nada se tem de sua ordem ou cotidiano. Nada importa a não ser o que acontece na casa e nos mundos interiores de seus ocupantes. A casa parece não pertencer a nenhum lugar. Geograficamente, apenas é mencionado o Rio de Janeiro, lugar onde se vive de maneira oposta à chácara e para o qual a trama se desloca por rápidos momentos. Afora alguns deslocamentos dentro da cidade que acomoda a chácara, todo o resto se passa em seu interior. Tanta importância tem essa delimitação que o livro traz um croquis da planta baixa da chácara, inclusive com referências aos cômodos e seus ocupantes, às alamedas e outras construções, assim como à sua vegetação. Esta demarcação tem importância crucial na vida dos personagens e também contribui para as ocorrências que são descritas de forma relativamente assimétrica. Nina e André, por exemplo, almejam fugir para uma cidade grande, onde o anonimato lhes trará a redenção. O que é transmitido de forma clara é que a casa está mal cuidada e precisa de reparos, os quais nunca serão realizados, como sentencia Demétrio, pois a família está falida, circunstância que tem clara relação com o tema da decadência e a extinção do Brasil rural, processo iniciado no final do século XIX e que ainda se arrasta pelo Estado de Minas Gerais.  O embate entre os males existenciais trazidos por este conflito econômico e social, aliás, é um dos principais temas do livro.

Não se pode deixar de lado, apesar de tudo, o Lúcio Cardoso católico, na medida em que sua história tem muitos aspectos religiosos e bíblicos. Não parece difícil estabelecer uma aderência de partes fundamentais do enredo com a destruição de Sodoma ou com a mulher de Ló, assim como a atitude das filhas de Ló, que recorreram ao incesto para preservar a raça humana, sob o engano de que a humanidade havia sido destruída. Aliás, o próprio título Crônica remete a dois livros do Antigo Testamento com esta nomenclatura e que se referem a temas que foram deixados de lado, cujo objetivo é resgatar a história dos judeus. Demétrio, por sua vez, é o nome de um personagem bíblico que se levanta contra Paulo, sentindo-se ameaçado pelo cristianismo e pelo fim da idolatria aos deuses romanos. A passagem bíblica remete às dificuldades e tumultos da transição ao cristianismo. Também o nosso Demétrio se esforça para impedir a destruição da casa e tenta eliminar a ameaça que se personifica em Nina. Não conseguirá, mas causará sofrimento, frustração e o sufocamento do desejo que sente por Nina. A própria Nina se liga ao mito do Judeu Errante, ao ser apresentada como uma devoradora de tempo e de espaço, a tudo e todos ameaçando.

Por fim, conclui-se que a junção de todos os personagens e seus relatos assume na verdade a forma de um inquérito, o qual não se sabe por quem foi presidido. Tal característica por si só é uma demonstração de que a história dessa família só poderia ser feita desta maneira, compilando-se achados, diários, cartas, confissões, memórias e depoimentos, tal como se lê num inquérito policial. Afinal, o livro é a crônica de um assassinato. Aglutinados, formam uma espécie de conjunto probatório de fatos e emoções, cujas conclusões se fazem através do relatório final, função aqui reservada ao leitor. É uma linguagem de certa forma cifrada, mas não acidental e pode justificar o tom monofônico de quem presidiu este inquérito. Seria este um personagem oculto?

Como se pode imaginar, existem muitas outras possibilidades de pesquisa e estudo a respeito da Crônica da Casa Assassinada.  Quanto mais se lê, mais indagações, dúvidas, interrogações e questões aparecem ao leitor interessado. E é exatamente essa a maior característica dos grandes livros, escritos por autores universais.

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Marcelo Jungle

É formado em Direito e escritor de contos e artigos sobre literatura

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