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Política da memória – Por Júlio Bonatti

Por trás do fenômeno da lembrança está sempre a ação do sujeito que recorda, o exercício vivo de transformação da memória em matéria de reflexão, quer em termos de uma escrita de si, quer em termos de um entendimento sobre a natureza do nosso passado. Lembrar-se é tomar consciência, é pura formação identitária, tanto do indivíduo como do coletivo. Um povo sem memória é fraco e domesticável.

Logo, podemos sustentar que “memória é passado”? Com efeito, não há muito espaço para controvérsia a respeito da matéria pretérita da memória, trata-se na verdade de um postulado auto-observável. Porém, se memória é essencialmente passado, sua relação com esse recorte temporal não se dá de forma exclusiva, uma vez que também apresenta uma ligação estreita com o presente e o futuro, assinalando, inclusive, uma relação tridimensional do tempo. Isto é, as lembranças resgatadas do passado tanto moldam as ações do presente como criam um lastro para projetos e esperanças associados à ideia de futuro.

E, entender a memória como “a presença de uma coisa ausente” (RICOEUR, 2007), nos leva à reflexão sobre as consequências epistemológicas advindas de tal constatação, em que o “lembrar-se” é o ato de ir em busca de uma lembrança, de (re)criar um fato do passado. E, por trás do tal fenômeno da memória, está sempre a ação do sujeito que recorda, do exercício de transformação da lembrança em matéria de reflexão, quer em termos de uma escrita própria, quer em termos de uma discussão sobre a natureza do nosso passado, como grupo ou lugar no mundo. Esse lastro de vínculos criados pela memória tem o propósito de estimular uma tomada de consciência acerca do poder da atividade mnêmica e seu apelo decisivo no processo de formação identitária, tanto no nível individual como coletivo.

O desdobramento da memória em um duplo recorte, isto é, em sua dimensão de simples aparecimento “à maneira de uma afecção” e sua materialização como resultado de uma busca, subjaz às discussões acerca da memória levadas a cabo pelos gregos – e é deles que podemos tomar emprestado os termos mnēmē e anamnēsis para caracterizar o duplo jogo de ocorrência e realização da atividade mnêmica, correspondendo o primeiro à ideia de “surgimento espontâneo” e o segundo a uma “busca pela lembrança”.

Todavia, no processo de lembrança, há a presença de algo ausente (eikōn, em termos da filosofia platônica), que conduz necessariamente a uma reflexão sobre o exercício de esquecimento, ou seja, em benefício de quem, ou de que ordem de valores, se realiza essa ocultação da marca passada no presente e, consequentemente, seu apagamento do rol daquilo que “deve ser” lembrado.

Certamente, a noção de esquecimento pode fazer alusão tanto ao indivíduo quanto a uma instituição que, motivada por finalidades de poder, põe em funcionamento uma operação de apagamento dos rastros de um episódio ou das lembranças que dele se evocam. De todo modo, tanto num caso como no outro, o exercício de apagamento não se realiza de forma espontânea ou como resultante de uma saturação da capacidade mnêmica: ele sempre revela a presença de forças que atuam para atingir um projeto específico de domínio, ou seja, disputas hegemônicas que são ulteriores à própria confecção da memória.


RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução de Alain François [et al.]. Campinas: Editora da Unicamp, 2007.


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Júlio Bonatti

É doutor em Linguística pela Universidade Federal de São Carlos, tendo realizado parte do seu projeto como pesquisador visitante na School of Languages and Applied Linguistics da Open University, Inglaterra.

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