O caminhar das páginas de um livro, ademais escritas nessa vocálica língua de espectro vulgar em latinidade, carrega acentos, pontos, vírgulas, letras magras e roliças, espaços os mais variáveis, densidade de longas palavras, palavretas curtíssimas, locuções galopantes e outras tantas preciosidades que só o ato minucioso da leitura especializada e metricamente planeada pode revelar. Alguns rastros se reduzem a apenas uma letra. Curioso, parece-me um traço natural da audição e da capacidade fonológica do falante português apreciar os verbos terminados em “ar”: tais o “gozar”, o “mijar”, o “trucidar”, o “suicidar”, ignorando-se a partícula reflexiva deste último – como poderíamos fazer valer em todos. E vejo, assim, como o linguajar inventado é maior do que o próprio idioma, tornando-se até o elemento definidor de mais relevância na faculdade animal da linguagem.

Dou-me por satisfeito ter constatado isso e creio desnecessário continuar essa observação da linguística crítica – ao menos nesse momento de comprovação científica ou, para ser mais direto em graus epistemológicos, de comprovação hipostática: verbum finitum est. E a infinitude da palavra pensada não se expressa por falta de espaço hábil. A dupla natureza do ato fundador do pensar, ao mesmo instante fluxo e substância, distrai-se com sua própria beleza e presta-se à germinal arte da latência. Esquiva, escapa, evita: o líquido seminal do cérebro, destilado em pústulas de licor pensante, é caça que recusa deixar-se capturar, que foge em perpendicular à nossa mira no mais incompreensível movimento de sua forma estática. Impotentes, nós, cada vez mais plurais do primeiro tópico pronominal, tornamo-nos presa de Sua luxúria: o Pensamento transfigura-se em deus, vira-nos Sua face totêmica. O que dizer-Lhe? Como adorá-Lo? Haverá virgindade digna de ser sacrificada em Seu nome? Destarte, ao suceder ao mito o rito, invertemos a história dos fatos antropológicos e eis que, em fins de revolta, criamos um Homem à nossa imagem e similitude.

Logo, desse seu ontos verossímil, já não mais pensamento-divindade, damos à luz um novo princípio: o pó aspirado em sopro e lançado ao ar em todas as direções coordenadas e abscissas faz-se mundo, tinge-se do branco total da visão, engole as dimensões da física e concretiza-se na realidade sensível, na mais pura matéria pétrea da existência.

Picture of Júlio Bonatti

Júlio Bonatti

É doutor em Linguística pela Universidade Federal de São Carlos, tendo realizado parte do seu projeto como pesquisador visitante na School of Languages and Applied Linguistics da Open University, Inglaterra.

Facebook
Twitter
LinkedIn
WhatsApp
Pinterest
Telegram

NEWSLETTER: RECEBA NOVIDADES

© Copyright, 2023 - Revista Piparote
Todos os direitos reservados.
Piparote - marca registrada no INPI

plugins premium WordPress