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“Poemas de Quarentena” – Por Ana Maria Rodrigues Oliveira

Padecimento

A estranheza do corpo que manobro confunde-me os sentidos
Compelindo o deglutir da saliva impregnada de palhaços malabaristas
Que se divertem jubilosos por entre os espaços em extenuação
Esses estupores adquiriram garras e caninos afiados como lâminas
Que rasgam os músculos e esperam risonhos que me contorça
Aguardando na fila em penitência para a entrada na cremação

Os bichanos olham-me fixamente como se adivinhassem
A vibração deturpada com que me congelo fintando a dor
Por entre arrepios de frio que me cortam em pedaços
Inventando circulações de física quântica
Abrindo e fechando portais de ecos melindrados
Com a incoerência traidora da espécie humana
E uma parte de mim se desprende e enreda por outros espaços

Como conseguimos sobreviver perante tamanha estupidez
Em alternativas esquizofrénicas pulando em andarilhos de louva-a-deus
Cegueira crua e dura convencidos da posse eterna do paraíso
Assinamos um pacto com a química em diabólico jogo estético
Camuflado por mecanismos de contenção e libertação que a ciência refez

A espera conduz-me a outras pistas acidentadas de múltiplas probabilidades
Pois ainda se pavoneia o silêncio nas ruas salteadas pelo desespero
Em rotações aleatórias infiltram-se enguias nos muros escorregadios
Onde a falta de sentido estende lençóis de libido adiada
Arrasando a individualidade nas masmorras do horror
Em intermitências de incógnita por detrás das mascarilhas abafadiças
Perante um vírus em órbita sem ética empatia nem pudor


Insónia

A emergência da catástrofe resgata anónimos sem ninho
Soterrando cadáveres em ilhas vazias assombradas
Onde a putrefação excedeu a sobrevivência no esquecimento nos nomes
E as lágrimas de insónias perderam o sal nas masmorras da crueza social

No desencanto indiferente em intermitências de desamor
Os corpos escondem-se no escuro amordaçado dos cubículos
E na fluorescência hipnótica espertina dos ecrãs inundados de suor
Os olhos cansados contemplam um sol radiante e aconchegante
Acalentando cérebros e corações esperançados num mundo de esplendor

Lábios fissurados sangrando anunciam o caos pandémico
De um planeta estático esperando em vigília a descontaminação
Enquanto os suicidas regressam à proteção falsa do útero materno
Transferindo o salto para lá da percecionada dimensão
Loucas baratas que rastejam no lixo sem cabeça
Escarafunchando sobre a pigmentação dos rostos despertos
Selados pelo temor da desmoralização das famílias
Desfeitas pela agitação silenciosa das chuvas ácidas em rios incertos

O veneno alastra queimando e desfazendo alvéolos pulmonares
Abafando os bramidos estrídulos da calamidade
Os fungos nas vidraças conspurcadas toldam a visão
Desenham esgares em planos arquitetados no desterro permitido
Germinam as madrastas nos muros corrosivos das fronteiras
Gozando libidinosamente com as valas comuns
Em cenários macabros de barbaridade compondo pútridas fileiras

As inseguranças produzem psicoses pintadas de alarmismos
Até as gaivotas se ausentaram das praias desertas
Onde o cloro da insanidade destrói a fauna e a flora
Apenas os pombos insistem em debicar o nada
Sobrevoando as ervas daninhas oprimindo a relva
Por entre o germinar de milhares de sementes
Repetindo o ciclo absurdo do mistério da potência ao ato

Em jardins abandonados onde o tempo parou
E os padrastos tresloucados homicidas atingem o alvo
Mesmo aqueles que fogem à salsada do pavor
E que o realizador macabro e supremo da película fúnebre crucificou


Estado de calamidade

Anunciam-se aos ventos catastróficos tempos espinhosos
Interioriza-se que a verdadeira praga
Aparece como bicho sem emoções humanas
Que dá pelo nome de industrialização capitalista
E como verme corrosivo vem-nos devorando o corpo e a alma
Ao longo das cintilações de extermínio do passado e presente
Que provocam flagelos cada vez mais mortíferos
Numa plataforma escorregadia indiferente ambiciosa e calculista

Triste maio que açaimas as bocas atabafando os prantos
Eliminando sorrisos e expressões faciais milenárias
Anulando a comunicação instintiva de quem capta um rosto por inteiro
Endurecendo a inquietude das ignorantes práticas sanitárias

O mundo atola-se na lama da precariedade da saúde pública
A nutrição harmoniosa aparece como utopia
Num povo sobrevivendo à míngua desdentado e contaminado
Pelas más condições de vida sem vigor e educação
Pois a ruína ecológica é fruto da insanidade
Da paranoia dos ditadores e dos trabalhadores em cega submissão

Crise pandémica refeita de múltiplos inimigos invisíveis
Em combate austero e cruel num esgrimir de forças desigual
Onde há um vírus que dá pelo nome de homem
Que se engole a si próprio se esquarteja e em sadomasoquismo se beija
Nas marés da delinquência e nos vulcões acesos em queda surreal

Raça parasita ferrando a próprio cérebro em metamorfose
Como lagartas repugnantes em lugares sombrios e carcomidos
Aguardando os voos das borboletas anunciadoras da descontaminação
Por céus límpidos de ar respirável com oceanos e continentes despoluídos

Picture of Ana Maria Rodrigues Oliveira

Ana Maria Rodrigues Oliveira

Nasce a 17 de fevereiro de 1960, em Portugal, no Alto Alentejo, no distrito de Portalegre e concelho de Castelo de Vide. Em 1986 finalizou a licenciatura em Filosofia, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa

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