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“Ecos do Corso no cais”, conto de Flávio Viegas Amoreira


Foi-me contado por um velho embarcadiço, militante comunista e contador dos casos mais sólidos de todo movimento internacionalista no pós-guerra no agitado porto de Santos. Encabeçando as greves e recursos paredistas contra atracação e desembarque de navios franquistas nos idos de 1945 e 1946, fazia serão na Rua Xavier da Silveira bebericando parati da fonte dos acontecimentos no Bar do Rosinha, entre alambicados, nacos de chouriço, camaradas ociosos da faina descortinando o lusco-fusco do estuário para os lados do Forte do Itapema. Halterofiista nascido na Bacia do Macuco, conheceu estalagens em Java, inferninhos em Tânger, adquirira maleita em algum antro entre Belém e a Martinica. Por alguma contenda entre valentes fez-se marujo e com todos traços de banzo do vento noroeste voltou à terra cuidar dos pais já alquebrados da lida. Nem família, nem grande dinheiro, bebia sem descambar, caiu mesmo nos livros onde misturou-se algum ideal e fez-se bolchevique dos trópicos nos subterrâneos da liberdade. A cidade dormia para trás da ilha nos arrabaldes e além nos subúrbios que Borges, era seu nome de apresentação, mal conhecia crescido por migrantes da construção vindos da seca entre empórios de açorianos e madeirenses que serviam de antepasto ao centro alfandegário. Entremeio, as ruas da Boca e o comércio dependente da estiva guardavam as portas devassadas ainda que sem burburinho nas calçadas rente à maresia nua. Borges jiboiava, naquele tempo beliscar uma buchada depois dum armazém esvaziado ou dalguma cabotagem trazendo banana era sem culpa, o estômago suportava sem dó e ouvia conversa, alinhava o corpo, cochilava mesmo na mesa de honra do salão embaçado de lua. Falava idiomas, alguns dialetos, foi sedentarizando em Santos, agora o tempo maior era lembrança. Lia Conrad, Maugham, lia Chesterton, apreciava muito os italianos, Pirandello e Pitigrilli, tinha denodo em aprender de tudo sem descuidar das mulheres, da navalha quando preciso e da resistência a qualquer novo imperialismo. Já o conheci velho, sem hábito de cais, bebendo no que tinha sido o antigo Parque Balneário, uma vez mesmo num ônibus para São Paulo.

Mas o que me contou de marcante para ser escrito foi seu convívio com um Mr. Donovan, Charles Donovan, já passado dos sessenta no começo da Guerra Fria. Claro, olhos penetrantes, fazia algum serviço de despacho, deveria ser solteiro porque esticava noite adentro enquanto Borges ouvia seus relatos duma Santos inglesa, os primeiros brigues, bergantins e escunas dos incipientes trapiches da Companhia Docas nascente. Seu pai tinha sido engenheiro da São Paulo Railway, conhecera o Cônsul Britânico Richard Burton, mítico aventureiro citado no “Aleph”. Eram pai e filho descendentes de escoceses jacobitas, avesso à Coroa ainda cultivadores da cultura, talvez mais de Swift que de Kipling. Da conversa do marujo desterrado entre o halo de novas aventuras e o velho com o mundo para contar surgiam as mais inusitadas possibilidades de estórias. Uma causou impacto, era uma verdadeira corrida de bastão passada mais de um século entre o Donovan, que lutou em Gibraltar com Nelson, batalhou pela Libertação do Porto e numa missão obscura formou entre os oficiais de guarda daquele que era o homem-anátema dos ingleses. Sim! O avô daquele ‘gringo’ bronzeado como caiçara tragando cachaça com frutas de sítios de Piaçaguera palitando mamjubinha frita rondara por alguns anos a casa forte do Imperador em Santa Helena… Não eram rumores, não procedia como folclore, Borges foi por gerações certificando-se da saga familiar dos Donovan, o pai funcionário graduado da City destes burocratas que forjaram as metrópoles brasileiras dos bondes até a urbanização de bairros, passando pela impecável malha ferroviária que a febre do automóvel não soube manter como a jóia indiana fez com galhardia de faquir. O avô quase menino perdera um dedo em Trafalgar até voltar do inóspito rochedo depois daquele 5 de maio de 1821 com a História metida num reles esquife, o corso morto e a “era vitoriana” prestes a chegar. Donovan velho casara com uma irlandesa, ainda serviu como observador na Guerra do Paraguai e quisera o destino seu único varão daria na outra margem de onde servira no umbigo do Atlântico. Donovan contava detalhes da rotina de Napoleão entremeado com as ondas dum rádio Galena trazendo fácil pelo litoral tangos de estações uruguais. Borges ouvia, retinha nomes. A rotina do corso obeso, com o proverbial chapéu tricórnio, a tez amarelada, emaciado pelos suspeitos males do estômago e fígado lesionados. A mesquinhez do governador Lowe expunha o imperador deposto a constrangimentos típicos vindo dos corações medíocres. Pequenas perfídias, proibições esdrúxulas. Donovan Junior rememorava como fosse um encarnado pelo avô. Falava do Doutor O’Meara, clínico e cirurgião que atendia Bonaparte, Gaspar Gourgaud, fax totum e ajudante-de-ordens, o empolado general Bertrand, o Conde de Las Cases memorialista oficial do conquistador e o circunspecto General Montholon. Donovan chamava atenção para a facilidade em reter nomes e situações pela exigüidade desse séquito com algo patético tirante trajetória olímpica da figura central naquela quase que choupana ampliada. Borges dobrava a perna por baixo da mesinha estilizada por galões de óleo de cozinha, ouvia pedidos no longo balcão interno do Rosinha e o desembarque de mercadorias e azáfama de entregadores de pão em triciclos céleres na bruma desfeita da manhã. 

Donovan repositório daquele manancial familiar reportava uma noite de sentinela de Longwood o sítio-gaiola de onde o carcereiro Lowe manietava as peças da sua opereta nos estertores do protagonista. Fora na ocasião em que chegaram no porto improvisado da ilhota três mil volumes da biblioteca vinda do Palácio de Saint Cloud para alvoroço dos ratos que proliferavam naquele paraíso do fim do globo. Cerca de 4 mil quilômetros da costa da Bahia e 8 mil quilômetros de Paris, entre cálices de xerez e carne mal passada, Napoleão que prometera suas memórias ao seus bravos granadeiros, dividia-se entre acepipes e a segurança dos enormes caixotes com seus imediatos enquanto provisionava mesas dispostas para mapas com seu “valet de chambre”. Oficial de ligação com a administração da ilha, o velho Donovan podia perceber um retrato de Josefina, um relógio de ouro de Rivoli, um despertador de Prata num aparador que teria pertencido a Frederico II, um camafeu trançado com cachos dos cabelos de Maria Luiza e à mesa um jogo precioso de porcelana de Sévres. Convidado a cear, via Bonaparte esquecer as disputas continentais em nome da erudição: falavam da campanha do Egito, da vacina de Jansen e de novas obras de Goethe. O fascínio de Donovan perpetuara-se pelos mais de quarenta anos que Borges vivera, guardei comigo uma suspeita e um sonho frustrado. Era da conta do oficial escocês lastreada pela confissão do neto com maior veracidade científica que Napoleão teria sido envenenado gradualmente pelo papel de paredes com detalhes em guirlandas de mimosas e alfazema que ele mesmo, Donovan, entreviu muitas vezes edulcorando o leito derradeiro desse “Fausto” vivo. Assim, depois de tragar um cigarrinho indonésio, também aventara uma insurreição no Recife onde o ex-Imperador aportaria para fortalecer os confederados do Frei Caneca ou o assalto ao Rio de Janeiro sob a égide de João VI para o feito duplo de libertar o Brasil e proclamar um outro Império tricolor nas terras tórridas outrora de Villegagnon… Para rematar, conservo das tertúlias com o velho Borges, estivador de cultura inusual, uma relíquia que teria sido trazida dos despojos da velha casa forte no mesmo galeão que levou os ossos do corso atemporal: um dos muitos lenços manchados por seu infortúnio pouco correspondente aos insuperáveis triunfos. Nada disso soa macabro pela certeza do imorredouro élan de liberdade; nunca mais dispus de tipo como Borges, talvez esteja sequioso de outro romantismo no que escrevo…

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Flávio Viegas Amoreira

Escritor, poeta e colunista da seção "Terra em Transes", da Revista Piparote.

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