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Godard: o Montaigne mecânico na magia da montagem – Por Flávio Viegas Amoreira

Quando lançou-se ao cinema de fato ele já tinha o dobro de idade de quando Rimbaud tinha parado de escrever e sumido passando pelos Alpes num canto onde Godard cresceu. Quando surgiu “Acossado”, Glauber jovenzinho já era cineasta e antes dos 30 já tinha dirigido suas obras-primas. Godard era um polímata da imagem, maturou sua poética até macerar todo resquício de excesso e condensar take por take a vida vivida, pensada, interpretada. O primeiro Godard a gente nunca esquece e assisti empoleirado quase menino “Alphaville” na década de 70. Godard era o livro; as telas, lombadas esquadrinhando perspectivas banais para o adensamento, impactava e cedia ao maravilhamento perenizado. Um esgar, uma piscada, uma batida de automóveis, algumas explosões inusitadas, cada tomada um coice, chacoalhão no senso comum por dentro do senso comum mal notado. O supremo Godard depois do arquetípico Godard de “Acossado” está em “O desprezo”: tudo contêm, as cores conspiram por Godard, Capri e Bardot naturezas exuberantes levam ao paroxismo da oportunidade do que se conta, mostra, encaixa. A música de George Delerue nos tocando tanto quanto o rol de metáforas fornecidas pelo estoque inesgotável desse Montaigne mecânico extraindo significado da sua magia de montagem. A questão do cinema eram as questões da fábrica de sugestibilidades: as dobras, fímbrias, os interstícios porque existe uma generosidade na entrega que torna os filmes de Godard um coletivo quase às vias do artista anônimo medieval com câmera na mão. Ele nos compõe corpos expostos de semiose, possibilidades, planos incertos, coitos interrompidos de anti-mimesis e preciso recorrer a seu correspondente em filosofia: mestre Deleuze em “Conversações” a nos dizer: ‘O objetivo de Godard é ver as fronteiras, isto é, fazer ver o imperceptível. O condenado e sua mulher. A mãe e a criança. Mas também as imagens e os sons. E os gestos do relojoeiro quando está na linha de montagem da relojoaria e quando está na sua mesa de montagem: nem o outro, mas também que os arrasta um e outro numa evolução não paralela, numa fuga ou num fluxo em que já não se sabe quem corre atrás de quem, nem para o qual destino. Toda uma micropolítica das fronteiras contra a macropolítica dos grandes conjuntos. Sabe-se ao menos que é aí que as coisas se passam, na fronteira entre as imagens e os sons, aí onde as imagens tornam-se plenas e os sons fortes demais. É o que Godard fez em ‘6 vezes 2’: 6 vezes entre os dois, fazer passar e fazer ver esta linha ativa e criadora, arrastar com ela a televisão´. Deleuze só com Proust captou tanto do valor e poder da arte quanto com Godard. É o preito duma arte para com outra arte alinhavando o intertexto eterno supralinguístico numa repetição devedora de Sísifo a Kierkegaard. O olhar feito idiossincrasia e tentativa de resolução e o diálogo soberano em Godard remetido a uma maiêutica contemporânea antepondo-se à cacofonia ágrafa que o mestre anuncia em “Adeus à linguagem”. Mistagogo da vídeo-arte confesso que desde a visão de Belmondo lendo na banheira até a estética do escombro em Sarajevo o ícone que me remete a Godard é o livro: toda arquitetura godardiana é o percurso da comunicação com mestres antecedentes e toda cornucópia de intelecção com o porvir. Um letramento através do olhar. Como mesmo sugeria era um compromisso incessante com a Arte, um ruminar de perceptos além de meros fenômenos culturais. A questão em Godard foi sempre o terceiro de nós interpretantes como em “Waste Land” de T.S. Eliot na interpretação de Blanchot: “Quem esse terceiro sempre ao teu lado? Quando observo, só vejo você e eu juntos. Mas ao longe na estrada branca. Sempre outro na tua cola. Escondido numa manta escura, sinistro. Não sei se homem ou mulher. Mas afinal quem é aquele do outro lado de ti?” Ao que ecôo com Borges de “Sete noites”: “Então aparece o número três, que completa as coisas. Se dois é uma mera coincidência, três é uma confirmação…” Godard foi esse regente ofertante de miríades rompendo a opacidade sem aura do Prometeu baudelairiano de Benjamin. Ele foi o mentor de atmosferas, o demiurgo de ambiências que nos dá alguma sacralidade no ordinário.  Saúdo-te, Godard, órfão nessa senda periférica que Glauber intuiu nova civilização terceiro-mundista.  Em cada coração e mente um Godard para chamarmos de nossos…

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Flávio Viegas Amoreira

Escritor, poeta e crítico literário. Colunista da seção “Terra em Transes” da Revista Piparote. Contato do autor: [email protected]

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