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Aldous Huxley e a Mescalina – Por Leonardo Stockler

A contribuição de Aldous Huxley (1894 – 1963) para o campo da psiconáutica é indiscutível e o seu impacto na cultura popular, tampouco, inigualável. Tendo não apenas contribuído para toda uma nomeação própria da experiência com substâncias alucinógenas, Huxley inspirou outros artistas com as suas visões, com a sua curiosidade, além de ter ainda explorado ficcionalmente a dualidade terrível das drogas melhor do que nenhum outro escritor.

Os exemplos anteriores da estranha e ambígua aventura psicodélica, De Quincey e Baudelaire, já estavam vinculados a uma rede intertextual de referências. Huxley integrou e expandiu esta rede, levando-a na direção dos sábios e dos místicos. Colocou ao alcance de toda uma cultura que emergia os versos de William Blake, as imagens de Shiva e Vishnu, e os koans dos mestres zen.

São três as principais obras de Aldous Huxley em que o tema dos psicodélicos é abordado de frente: As Portas da Percepção (1954), na qual encontramos o famoso relato de sua experiência com mescalina, e um belo ensaio sobre o misticismo e a arte; Admirável Mundo Novo (1932), a também muito conhecida distopia científica em que os seus habitantes se satisfazem e afastam o tédio com o soma; e A Ilha (1962), romance que se passa numa sociedade descrita de modo inverso àquela do romance distópico, ou seja, um lugar onde todas as potências humanas são desfrutadas na sua completude, para a qual o uso de cogumelos serve na produção de experiências místicas cheias de significado positivo.

Aldous era neto de Thomas Huxley (1825 – 1894), cientista de grande relevância no campo evolucionista e patriarca de uma notável família de intelectuais com grande destaque na sociedade britânica. Suas áreas de interesse eram muitas, e, dono de uma erudição impressionante, contribuiu para a tradução e a difusão de algumas ideias orientais no hemisfério ocidental. Seu trabalho, alinhado a uma perspectiva monomítica, se caracteriza pela comparação das tradições religiosas e místicas do ocidente e do oriente, sempre em busca de semelhanças e pontos em comum.

Esta erudição, longe de se ocultar, foi diretamente mobilizada para a interpretação do fenômeno dos psicodélicos e da experiência alucinógena. Poder-se-ia dizer, aliás, que uma das motivações para a experimentação surgiu do interesse mais intenso de encontrar alguma forma de experimentação surgiu do interesse mais intenso de encontrar alguma forma de experiência numinosa ou mística. À leitura saborosa do seu relato com a mescalina não deveria passar desapercebido o modo pelo qual a interpretação de Huxley, e todo o significado de sua experiência, se condicionam a um juízo bastante calcado nos “traumas” ontológicos de sua formação protestante. Preenchido pelo sentido de uma sensação imanente, Huxley colocou à prova todas as referências às experiências de místicos e profetas de variadas eras para tentar descrever aquilo que sua consciência visitava. Entusiasmado pelo brilho de sua gnose, imaginou ter sentido e encontrado aquilo que sempre esteve para ser descortinado nos enigmas dos mestres budistas, a integração entre sujeito e objeto, a suspensão dos conceitos classificadores, a contemplação da realidade por trás do véu de Maya.

Décadas depois, os estudiosos da área produziram um consenso interessante a respeito do relato de Huxley. Ele aponta para algumas características típicas: a primeira, é a tendência para as associações e conexões que nos levam a buscar significado no repertório da vizinhança semântica mais próxima, e que costuma ser o jargão místico. Esta tendência perpassa todo o comportamento contracultural sessentista dentro do qual a experiência psicodélica funcionou como tensionador, posto que colocava lado a lado, num jogo de espelhos de significação, a cultura ocidental e a oriental. A segunda tendência, um tanto mais involuntária, e mais estrutural, é a de condicionar a experiência a um certo repertório já pré-estabelecido de expectativas conceituais. No campo de pesquisas da área, este é um tema muito pertinente, porque tem levado os pesquisadores a buscar por novos experimentos com pessoas que não possuam qualquer ideia pré-concebida sobre o efeito destas substâncias, estando, portanto, livres de quaisquer influências e expectativas.

Ainda que não se possa pretender genericamente que os psicodélicos de fato forneçam tudo aquilo que Huxley imaginava experimentar durante a sua viagem com a mescalina, o relato serve para que o escritor britânico compartilhe conosco toda a trajetória de sua mente na direção das conexões e insights mais interessantes.

Mas tanto o seu interesse era anterior à experiência, como também as suas especulações. Em Admirável Mundo Novo, escrito décadas antes, Huxley descreveu uma sociedade em que a ciência e a razão teriam alcançado tamanho sucesso no controle da vida, que absolutamente nenhum aspecto ou esfera da existência escaparia da sua vigilância e das suas soluções. Determinados desde o berço pela conveniência do sistema em que vivem, que os divide em castas e funções, os indivíduos desta sociedade futura, nos seus momentos de tristeza, tédio, ansiedade, depressão, desamparo e solidão, poderiam desfrutar de uma droga capaz de produzir empatia e conexão entre eles. O seu nome é o mesmo nome dado à bebida mágica dos deuses hindus, o soma, muitas vezes mencionado nos Vedas, onde funciona como um catalizador dos superpoderes dos deuses.

Nesta obra temos a chance de ver Huxley explorando aqueles aspectos da droga que funcionariam positivamente dentro de uma sociedade ordenada e controlada – o entorpecente enquanto recurso de manutenção, trabalhando para sufocar os potenciais disruptivos de ordem psicológica que brotam espontaneamente nos indivíduos submetidos a um tal regime social. O sentido desta experiência não seria tão potencialmente perigoso quanto de fato foi durante a deflagração do LSD na cultura americana dos anos 60, durante a Guerra Fria, onde pôde desestabilizar algumas estruturas e potencializar certos conflitos.

Na sua correspondência com George Orwell, quando contemplamos de forma mais explícita a dessemelhança das mensagens entre a obra de um e a do outro, a conclusão sugere que a distopia de Admirável Mundo Novo, muito mais próxima do mundo contemporâneo, se manteria pela eficiência dos mecanismos e instrumentos de distração e produção de prazer. A prisão social construída ali se mantém graças à capacidade que a gerência adquiriu na administração dos desejos de seus habitantes, que vivem satisfeitos. Neste lugar não é necessário sequer o uso da força, da opressão policial, ou do terror e do medo.

Já em A Ilha, última obra que Huxley publicou em vida, temos a chance de vê-lo se redimir para longe de um futuro tão indesejável. Aliás, não seria incorreto dizer que neste último trabalho, o autor se dedicou a expressar a mensagem mais otimista e positiva que ele poderia transmitir para a humanidade. Se ele tivesse podido reunir numa pedagogia ficcional tudo aquilo que aprendeu e gostaria de ensinar aos outros, esta obra sintetizaria os seus esforços.

E, justamente porque as utopias não interessam tanto quanto as distopias, este romance não alcançou a popularidade e a mesma fortuna crítica que Admirável Mundo Novo. Porque, de fato, enquanto romance, não possui os mesmos méritos e a mesma qualidade que o seu predecessor. Se nos atermos, contudo, à mensagem, não poderemos deixar de ficar emocionados e profundamente convencidos de que a mente de Huxley era uma das mentes mais brilhantes de seu tempo.

Em A Ilha, a experiência produzida pelo uso de cogumelos já se coloca como algo disponível para os indivíduos nos momentos fundamentais de sua vida, como recurso para a abertura de sensibilidades, para mergulhos meditativos num fundo subjetivo e interpessoal, ou mesmo para aquilo que o autor descreve como um tipo de transcendência, de grande significado para a compreensão da morte, por exemplo.

Este uso, bastante diferente daquele conferido ao soma na distopia futurista, é um catalisador para experiências espontâneas, de libertação e abertura ontológica. Os cogumelos, por sua vez, são facilitadores da sabedoria, tendo seu uso empregado inclusive no estudo e na observação de figuras espirituais de tradições budistas e hindus. Naquela sociedade tão saudável, os chamados à consciência estariam sempre disponíveis nas atividades humanas, no exercício do trabalho, nos esportes, e até mesmo no ambiente circundante da natureza viva da ilha.

É verdade que desde De Quincey, com as suas visões de um oriente terrível, e em Baudelaire, pela aura orientalista inebriante do próprio haxixe, a experiência psicodélica sempre esteve marcada por uma ordem de alteridade. Huxley também não se furtou à exploração desta outridade descortinada pelas alucinações da psiconáutica. Ele, na verdade, trabalhou para sublinhar este aspecto quase que inerente à aventura da consciência alterada, e que é, afinal, a contemplação dos seus antípodas.

O que é a mescalina e como foi, afinal, a experiência de Huxley com a ela? A mescalina é uma substância derivada de um cacto comum à flora semiárida do México e dos estados americanos fronteiriços, o peyote. Amplamente usado pelos indígenas em rituais xamânicos, tem um sentido sociocultural semelhante ao da ayahuasca, levando seus usuários à contemplação de visões premonitórias ou mesmo a um acesso ao mundo dos espíritos, dos animais, e dos mortos. Pode ser ingerida a partir da digestão de seus botões, mastigando-os, ou através de uma beberagem. Na metade do século XX, esta substância era explorada cientificamente por psiquiatras americanos que a administravam através de cápsulas.

Huxley teria tomado conhecimento desta substância ao ler publicações acadêmicas e relatos de experiências, principalmente através da Native American Church. Em abril de 1952 ele teria iniciado uma correspondência com o cientista Humphry Osmond, expressando o seu desejo de ser submetido a uma experiência, e expondo para ele as suas motivações intelectuais e espirituais – sobretudo, o desejo por um incremento na sua consciência.

Em maio de 1953, na companhia de Osmond e de sua mulher, em sua própria casa, Huxley teria se submetido à sua primeira experiência com psicodélicos. O relato que ele fez da ocasião, por sua vez, é praticamente exaustivo. O britânico, “ávido por ser cobaia” do experimento, tomou 4/10 de 1 grama. Essa primeira tentativa deve ter resultado num efeito prolongado de quase 11 horas. Na primeira destas horas, a atenção de Huxley ficou retida nas luzes, na geometria e nas formas.

“Meia hora depois de engolir a droga, tomei consciência de uma lenta dança de luzes douradas. Pouco depois, surgiram suntuosas superfícies vermelhas que inchavam e se expandiam a partir de brilhantes nódulos de energia, os quais vibravam com uma vida geométrica continuamente cambiante. Num outro momento, o ato de eu fechar os olhos revelou um complexo de estruturas cinzentas dentro das quais pálidas esferas azuladas adquiriam intensa forma sólida e, uma vez surgidas, deslizavam silenciosamente para cima, saindo do meu campo de visão”, descreve o britânico nas primeiras páginas de seu relato.

Logo em seguida, contemplando um vaso com uma planta, o britânico mergulhou numa perspectiva que, na falta de melhores termos, poderia ser descrita como um tipo de “imanência total” – uma contemplação sem a mediação da linguagem, tal como deve ter sido para os habitantes do Jardim do Éden, a vida no paraíso sem a corrupção das palavras e do conceito.

Essa contemplação o levou à formulação de um juízo por sobre quase toda a fonte da filosofia ocidental, mais precisamente sobre a metafísica. A acusação recai sobre Platão, o “infeliz Platão!”, que “isolou o ser do vir a ser”. Os efeitos dessa contemplação total do vaso com a planta disparou em Huxley uma busca pelas referências que sua erudição até então havia compilado acerca de tudo aquilo que o gênero humano tipificou como um certo “estado de graça”. Ora, este sobrevoo, esta visão panorâmica sobre a filosofia ocidental parece recair, como já observamos, num juízo particularmente negativo sobre a ontologia greco-medieval, decisivamente marcada por uma cisão dualista do Ser, que outorga a uma outra realidade, transcendental e intangível, uma substância mais verdadeira do que esta calcada na experiência fenomênica do mundo material – na ontologia protestante essa outra realidade, superior à nossa, se afigura na imagem do Grande Ausente, um deus que não se comunica com as criaturas pecadoras caídas no mundo na matéria tão mais abaixo.

Resta que a experiência com a mescalina devolve ao Ser a possibilidade de se reintegrar a este núcleo. A potência que ela deflagra no campo da intuição de Huxley é tão vasta que destrava em sua mente a possibilidade de compreensão de um Koan, um enigma budista que se move na direção contrária à da razão. O seu veredito: “o corpo búdico é qualquer coisa que eu quiser imaginar”, seja a grama, a cerca, a árvore, ou até mesmo um carro.

Essa experiência, vivida na sua intensidade por um indivíduo com uma mente tão filosófica como Huxley, não pode obstar do espírito a sua tendência para a especulação. Ainda que firmemente ativa na imanência corpórea, a riqueza da experiência tende a levar os sujeitos a redefinirem sua existência, posto que se tornam capazes de experimentá-la em outras condições. Uma tal experiência levou Foucault a redirecionar sua filosofia para a Antiguidade, e o seu investimento acabou por produzir um dos insights filosóficos mais interessantes das últimas décadas, aportando na definição do “princípio do cuidado de si”, algo que sequer havia sido tocado por outros tão brilhantes historiadores da antiguidade.

Ora, é, pois, desde a Antiguidade, que filósofos como Aristóteles se preocupam com as categorias sob as quais é possível apreender o Ser. E, diante de uma experiência psicodélica, parece mesmo que estas categorias chegam perto de se confundirem. Huxley, então, pensava dentro de quais termos? Intensidade da existência? Profundidade do significado? Relações dentro de um padrão? Esta percepção não poderia deixar de suscitar perguntas bastante estimulantes: de que modo a experiência psiconáutica refunda a linguagem? Quais partes da linguagem religiosa ela amplia ou traduz?

Uma tal percepção, sem a mediação da linguagem, parecia entregar ao britânico uma oportunidade muito especial de viver segundo princípios espirituais perenes: um olhar desinteressado e não-utilitário seguido de uma visão sacramental da realidade – uma visão acompanhada de uma luz interior e de um sentido infinito. Sua experiência é muito mais otimista, mais saudável e iluminada que a de um De Quincey ou um Baudelaire. Neste lugar especial do mundo, as sensações não se subordinariam automaticamente aos conceitos, e a mente simplesmente não se fixava naquelas coisas que não valiam a pena e que, naquele momento, pareciam apenas distrações. Eis aí outro aspecto curioso das experiências psicodélicas: a maneira com que elas modificam a gravidade dos nossos problemas e de certas interações que, vistas sob uma determinada perspectiva, se tornam banais. O aumento da percepção das cores, ou seja, a efervescência sensorial provocava uma outra ordem de inferência, ainda: a sensação de que o Todo está em cada uma das coisas – um tipo de holismo bastante eficiente.

Essa experiência sensorial e perceptiva, como se vê, tem consequências teóricas. Huxley não pôde deixar de fazer certas inferências, imaginando que, nesta experiência, se esconde aquilo que outros místicos de outras eras e de outras tradições chegaram a aventar: são aqueles que o britânico chama de “conhecedores da esseidade”. O termo, traduzido desta forma para o português, encontra outros correlatos, sendo, o original, hecceidade. Trata-se, afinal, de um conceito filosófico pelo qual uma coisa pode ser conhecida a partir das qualidades e características que a tornam única. Perceber a coisa na sua hecceidade é, afinal, ir para além do fenômeno, integrando-se no númeno, a coisa em si mesma, uma contemplação absoluta e objetiva que ultrapassa qualquer mediação.

É claro que, dispondo de uma tal capacidade, quase que um superpoder filosófico de síntese, certos aspectos do mundo perderiam a sua carga de valor no campo da experiência humana como um todo. O que se quer dizer com isso? Pois bem, se a arte possui algum sentido religioso para a vida, é precisamente o de levar os indivíduos à contemplação de alguma coisa muito além das categorias cotidianas da percepção. Neste caso, haveria sempre a permanência de algum conteúdo religioso ou espiritual no mundo da arte. Todavia, em vista de uma experiência deste grau, nesta dimensão, a arte, no entendimento de Huxley, seria “apenas para principiantes”. Existiria, afinal, um olhar transfigurado na arte, e a percepção do artista, desvinculada das questões utilitárias, chegaria, pelo menos em parte, a uma “mente integrada” – o reino do transindividual.

Um indivíduo que se forma numa busca filosófica tão premente, tão abrangente, não pode se furtar ou permanecer indiferente aos efeitos ontológicos desta experiência psicodélica. Huxley, portanto, afirma: “é assim que devemos ver”; “é assim que as coisas realmente são”. Mas essa bem-aventurança da mente não pode responder às questões mais práticas e mais imediatas da vida material, posto que ela instaura uma outra temporalidade dentro da qual não podemos corresponder às exigências e demandas da coletividade ou do nosso próprio corpo.

Que função esta experiência poderia alcançar caso o uso de psicodélicos se difundisse na sociedade? Huxley foi, talvez, um dos primeiros a advogar em defesa de um uso recreativo destas substâncias. Experiências positivas produziriam nos indivíduos uma conversão no olhar: uma atenção maior para as coisas simples e despretensiosas, tal como o Koan budista que enxerga o corpo do Dharma em todas as formas. Esta é, por definição, uma postura contemplativa com consequências éticas importantíssimas para a vida. Huxley, portanto, evoca Blaise Pascal, ao sugerir que um olhar contemplativo, e uma ética contemplativa, inibem as virtudes negativas que levam para o mal. O olhar para dentro e a contemplação do vazio (sunyata) subjacente a todos os agregados, instauraria uma outra orientação para a existência, certamente mais desapegada e menos ambiciosa. Mais uma vez, a referência a um conceito espiritual oriental é trazida à baila para dar sentido e significado à experiência de Huxley.

Se existe, ainda, um paraíso, ou melhor, um “lado paradisíaco da mescalina”, ele está nesta instância impossível de ser colocada em palavras: o maravilhoso é sempre inefável – mas hoje, tanto tempo depois, com uma cultura psicodélica já bastante difundida, costumamos fazer alguma ideia daquilo que as pessoas querem dizer por “algo que não pode ser descrito”. Huxley, na poesia de seu relato, produz metáforas curiosas: “a percepção engoliu o conceito”.

Mas todo paraíso também pressupõe um inferno. A ameaça do pânico ficaria guardada no medo de desintegrar-se numa realidade maior que a mente: a dissolução do ego, tal como costuma ser relatado nas experiências psicodélicas mais variadas, existe num lugar entre a recusa e a entrega, a retração, motivada pela sobrevivência psíquica, e a expansão, conduzida pelo desejo de fundir-se num todo.

É assim que se sentem os loucos? Huxley faz a pergunta, inibido, enquanto sente sua consciência recuar diante da “Pura Luz do Vazio”. A compreensão da loucura vem sublinhada com um comentário de um livro tibetano: “que tua mente não se perturbe”. É a instrução que consta no Livro dos Mortos: nos estágios transitórios da consciência, o monge budista deve se lembrar do treinamento, não se seduzir pelas formas belas, nem sentir aversão diante das formas monstruosas.

Huxley também não poderia deixar de reportar-se aos psiconautas que vieram antes dele. Seu diálogo não se restringe aos místicos. A referência mais explícita diz respeito a Baudelaire, e vem sob a forma de um enunciado incontestável: “a humanidade é incapaz de dispensar os paraísos artificiais”. Tal como o francês havia sugerido, neste desejo se expande a vontade de transcender o ordinário e penetrar o infinito divino. Mas uma metáfora inédita aparece aqui: estas substâncias, estes paraísos artificiais, são como que “portas na muralha” para além do reino do mundano e do comum. Se o uso destas substâncias traz consigo algum pecado moral, tal como havia dito Baudelaire, a consciência humana tampouco pode se furtar aos seus riscos inerentes, uma vez que “a convicção do inferno nunca impediu o pecado” de se consumar. Se os riscos são muitos, afinal, a questão toca um outro ponto: como podemos abrir novas e melhores portas nas muralhas?

O uso recreativo, não obstante, levaria os seres humanos a desenvolver novas drogas, mais perfeitas, menos perigosas. Aliás, uma substância natural como a mescalina, poderia, até mesmo levar os indivíduos a um “cuidado de si”, tal como auferido por Foucault, em virtude de um fato incontestável: a experiência é, em si mesma, esclarecedora, e traz para a atenção do indivíduo certos aspectos fulcrais para uma estética saudável da existência, o cuidado com o corpo e com a mente.

Huxley não é nem um pouco tímido nas suas afirmações. As drogas, para ele, dentro de um uso inteligente e esclarecido, funcionariam como um substituto químico da religião. E, curiosamente, qualquer um que se dedicasse a esta experiência, poderia concluir que até mesmo a mescalina é muito mais compatível com as ideias e princípios cristãos do que o álcool. Se não podemos falar de uma “iluminação”, tal como Timothy Leary falava sem o menor pudor ou critério, temos aqui algo próximo a uma “graça gratuita”. E as drogas abririam um novo campo de sensibilidade, levando os indivíduos na direção de experiências e percepções independentes da linguagem – algo de extremo valor num mundo onde a educação é quase sempre verbal e “as pessoas só prestam atenção nas palavras”. Mais do que isso, seria imprescindível para entregar o humano de volta para si mesmo (um dos sentidos possíveis à palavra religare): “não podemos viver sem a percepção direta e assistemática”. É isso que Bergson queria dizer com uma filosofia mais intuitiva? Não sabemos.

A segunda parte do relato de Huxley é, basicamente, um ensaio, e recebe o nome de Céu e Inferno. O nome, na sua gravidade, não está nem um pouco deslocado do campo da experiência psiconáutica. Tanto De Quincey quanto Baudelaire chegaram a contemplar esta dualidade inerente às alucinações e delírios.

Mais do que os seus predecessores, Huxley refletiu sobre a atividade psiconáutica de um tal modo que sua contribuição é a própria referência que define e consolida este campo. Foi na sua correspondência com Osmond, afinal, que o próprio termo “psicodélico” foi cunhado – pela junção dos termos gregos psyché e deleín, dando origem a algo como “a mente/alma que se mostra”.

As reflexões de Huxley, por sua vez, encontram metáforas psicológicas muito refinadas, principalmente no seu raciocínio sobre os antípodas da mente. Antípodas, pois, é uma palavra que significa, basicamente, “contrários”. Este significado, contudo, tem uma origem aplicada à geografia. O Japão é um antípoda do Brasil. O Polo Norte é um antípoda do Polo Sul. Se o objeto do raciocínio de Huxley, entretanto, é a mente humana, quais seriam, afinal, os seus antípodas? Tudo aquilo que escapa da nossa familiaridade, tudo aquilo que vai além da nossa imaginação e dos nossos conceitos. Assim, por exemplo, se estamos familiarizados com os cães, os gatos, as vacas e os bois, animais considerados exóticos à nossa realidade, tal e qual os cangurus, as equidnas, e os ornitorrincos, aparecerão para nós como antípodas. É com o auxílio destas substâncias alucinógenas, como a mescalina e o LSD, que temos a oportunidade de visitar os antípodas da nossa mente.

A metáfora cognitiva empregada por Huxley esconde um motivo comum à aventura de quase todos os psiconautas: a inclinação para a perambulação. Ou seja, a viagem psíquica tem tudo a ver com a viagem física – essa tendência, contudo, tornou-se muito mais explícita entre os beatniks, mas já era um fato na trajetória dos etnobotânicos que despencavam da Europa para a América do Sul, África ou Ásia. Para o psiconauta o Novo Mundo é aquela região longínqua que só conseguimos acessar durante os estados alterados da consciência. Nestes lugares existem seres impossíveis, habitantes simbólicos dotados de uma inteligibilidade própria e funcionando segundo suas regras particulares. O naturalista da mente, Huxley sugere, deve ir a este Novo Mundo e depois voltar: o retorno, pois, é fundamental – a experiência psicodélica estaria esvaziada de sentido se não se integrasse numa comunidade mais abrangente de significados e trocas. Seria, nestas condições, apenas um tipo mais excêntrico e mais pessoal de loucura.

Se existe um itinerário como este, há protocolos, receitas, procedimentos que se fabricam para aperfeiçoar a experiência. Uma linguagem própria, um comportamento próprio, um estilo mental adequado que funciona para desinibir aquilo que se ofusca diante da força impositiva e hierarquizante da linguagem e seus conceitos – Leary, posteriormente, abordou tudo isso no livro A Experiência Psicodélica. As visões que se revelam neste estado carregam consigo um esplendor capaz de reencantar e transfigurar toda a existência cotidiana. É a este esplendor que Huxley se refere ao falar de luzes e cores “preternaturais” – um espectro oriundo de uma ordem de realidade superior, atávica, quase ideal. Não é ideal porque cada visão, e cada experiência, é única – um particular que só se integra no universal porque possui uma identidade inesgotável.

Estas visões seriam, segundo Huxley, pequenos vislumbres dos paraísos mencionados em diferentes religiões. Mas não se trata, é claro, dos mesmos paraísos. A forma que encontramos para descrever aquilo que vemos neste estado, é que é a mesma: referências a joias nos paraísos budistas, por exemplo, não dizem respeito a joias de fato. É apenas por comparação que tomamos emprestado das joias as suas características, enquanto estratégia cognitiva, para dar sentido às luzes infinitas destes momentos.

Este acesso ao inefável, como já se imagina, não é um acesso restrito aos psiconautas, e nem se pode obtê-lo apenas pelo uso de substâncias. Neste ponto, Huxley está a considerar certas condições espirituais do mundo antigo que hoje encontram algum respaldo na antropologia e na história das religiões. Tomemos o caso dos profetas do Velho Testamento, desprovidos de uma dieta balanceada e frequentemente lidando com deficiências vitamínicas ou proteicas. Numa situação mais extravagante e mais explícita, há o caso do ascetismo indiano. Em ambas as circunstâncias, encontramos o jejum como um hábito tipicamente espiritual. O jejum e a fadiga, pois, seriam capazes de desencadear certos estados psíquicos abertos para a contemplação dos antípodas da mente. Estes estados possuem alguma conexão com a fabricação de profecias – e a descrição da maneira pela qual estes sujeitos profetizavam no deserto, em textos como Samuel ou Juízes, nos dá um indicativo da continuidade entre esta função espiritual e aquela dos xamãs. As evidências mais contemporâneas de que a sarça ardente seja um parente da jurema preta corrobora com esta ideia e aponta para a presença de elementos intoxicantes e alucinógenos na produção de estados proféticos e visões religiosas entre os israelitas e mesopotâmicos.

Mas se é possível ter estes vislumbres do paraíso, também estas substâncias entregam aos indivíduos uma possibilidade de contemplação do inferno. Assim como para Jorge Luis Borges, portanto, o inferno é uma visão, e não uma sensação. Uma visão, todavia, pode provocar uma sensação, seja de asco ou de atração. Se nos paraísos a individualização se dissolve, nos infernos ela se intensifica – e a sua ideia, ou seja, o conceito de inferno, se origina das condições desfavoráveis vividas ou contempladas pelos sujeitos. Neste caso, em oposição à experiência mística, temos as experiências visionárias que, ao contrário das primeiras, podem ser classificadas e interpretadas segundo códigos de oposições. Estas visões possuem, por sua vez, uma conexão direta com as emoções que afloram nos indivíduos durante a jornada psicodélica.

A contribuição de Huxley, portanto, apesar de suas falhas, tem um lugar de destaque na constituição do campo da psiconáutica. Quase como um herói psicodélico, ele teria partido deste mundo, já no seu leito de morte, ingerindo o LSD por uma última vez, através de uma dosagem intramuscular administrada por sua própria mulher. Suas contribuições foram vastas para diferentes áreas – tendo chegado mesmo a visitar os irmãos Villas-Boas na reserva do Xingu, onde discutiram pajelança e comeram carne de anta. E, deste modo, as contribuições de Huxley são válidas não apenas porque suas reflexões sejam originais e bastante sólidas, carregadas de sentido, mas também porque elas apontam para o futuro, introduzindo e antecipando comportamentos e ideias. Foi ele, talvez, o primeiro a apontar para a confluência entre o misticismo e a química – uma combinação que hoje em dia é praticamente impossível de ser desfeita, e pela qual podemos olhar para os cientistas da mente da mesma forma pela qual compreendemos, por exemplo, os xamãs indígenas. Se estas operações guardam algum sentido transcendental, não se restringindo apenas a um uso recreativo, é algo que já estamos vendo com o avanço e a popularização das terapias com psicodélicos.

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Leonardo Stockler

É historiador formado pela Universidade Estadual Paulista e mestre em Ciência da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Sua área de pesquisa são as religiões e filosofias orientais, principalmente o hinduísmo, tantra, yoga e o budismo.

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