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“A Gestação do Romance: Beckett, a Psicanálise e Murphy”, Angelo Germino

O segundo texto¹ que irei abordar é Murphy, de Samuel Beckett, uma das obras mais elaboradas e trabalhadas do autor, concebida entre 1934 e 1937, e interrompida inúmeras vezes por conta de uma instabilidade psíquica. A gestação que dá à luz Murphy é muito dolorosa, porque durante esses anos, Beckett atravessa longos períodos de crises depressivas e frequentes ataques de pânico, seja pelo relacionamento conturbado com a sua mãe, pelas precárias condições econômicas, ou pela dificuldade de estabelecer relações com as pessoas ao ter optado por uma solidão nada saudável.

Provavelmente, essas foram as causas que levaram o autor a aproximar-se da psicanálise, em um período em que as teorias de Freud e Jung tinham um séquito enorme de admiradores, sobretudo entre os intelectuais. Inclusive, Ezra Pound definiu-se como “o único escritor mentalmente são na Europa”. De fato, em 1933, Beckett dá início a uma longa terapia que dura quase dois anos, composta de 133 sessões, com o célebre psicanalista Wilfred Bion. Discutiu-se muito sobre essa relação: um escritor desconhecido, pobretão, e que se tornaria um dos mais influentes intelectuais do século XX, e um jovem analista freudiano, destinado a ser uma das figuras mais influentes da pesquisa psicanalítica. O psicanalista Didier Anzieu, em uma biografia sobre o autor, afirma:

Este jovem não é apenas deprimido, obsceno, mordaz, pensativo; ele é, além de tudo isso, louco. Ou o foi. E poderia voltar a sê-lo, se as circunstâncias da vida o obrigassem a uma situação que lhe parecesse ser sem saída. Há ainda, a meu ver, uma dificuldade ainda maior: ele nega a sua loucura e não reflete acerca dela.

Anzieu destaca, ainda, como a terapia foi uma experiência fundamental para os percursos intelectuais dos “gêmeos imaginários”, assim denominados por Simon Beckett em um artigo. Tal expressão indica a sobreposição de interesses e influências recíprocas derivadas da transferência durante a terapia. Não por acaso, Murphy padece fortemente o influxo psicanalítico, devido não só ao, assim chamado, período bioniano, mas provavelmente, segundo a hipótese levantada pela psicóloga Eleonora Caponi, devido à participação em um curso de Carl Gustav Jung na clínica Tavistock e que durou cinco dias.

Beckett, “infiltrado” por Bion em um auditório composto em sua maioria por psicanalistas e psiquiatras de vários lugares, absorve as teorias fundamentais de Jung, especialmente sobre a estrutura da psique, sobre os processos psíquicos inconscientes, sobre a cisão e dissociação na neurose e psicose. Tudo isso afeta profundamente o artista que, a partir desse momento, intensifica as leituras psicanalíticas, fazendo-as confluir em Murphy, livro que estava sendo escrito por aqueles anos.

O romance pode ser definido como uma caleidoscópica Comédie Humaine da psiquiatria: Neary (o velho mestre de Murphy), um “esquizoide espasmódico, um touro jônico”; Wylie (um estudante de Neary), que se embriaga sempre que pode; Celia (companheira de Murphy) é uma prostituta; Bom (enfermeiro do manicômio), um sádico; a senhorita Counihan (apaixonada por Murphy e amante de Neary), “uma doidona de astenia apolínea”; todos esses personagens extravagantes lançados à procura desesperada de Murphy, o protagonista, plasmado com alguns componentes autobiográficos do autor, como a origem dublinense e a mudança a Londres, a precariedade econômica, a profunda erudição e inadaptação à vida. Beckett contrapõe o dinamismo frenético dos personagens em busca de Murphy com a imobilidade deste, fazendo com que aqueles atuem, paradoxalmente, como fantoches superficiais, enquanto Murphy aparece como um “Morfeu contemplativo”, desvinculado de qualquer lógica racional, empenhado completamente em uma espécie de paz interior, à procura da liberdade total. Esse estado de suspensão do real é atingido por Murphy através de uma prática um tanto quanto singular: sentado em uma cadeira de balanço amarrado com tiras de pano; esse é o método com o qual aprende a entrar no “pequeno mundo”, na interioridade mais pura da mente distanciada do mundo externo. A cadeira torna-se, assim, “uma alegoria do seu desejo solipsista de abstração”, e o simbolismo consiste tanto no dinamismo estéril próprio do objeto (a cadeira se move estando parada), quanto na rememoração do balanço do berço que adormece o recém-nascido e, portanto, a não consciência de si. A menção à cadeira é repetida várias vezes ao longo do romance, sobretudo no primeiro capítulo, em que as referências estão presentes em toda a sessão. Inclusive, no início, o autor explica a sua importância:

Sentava-se assim porque lhe dava prazer. Em primeiro lugar, porque lhe dava prazer ao espírito, liberdade de espírito. Só depois de ter o corpo calmo lhe era possível viver em espírito, como o que vem descrito no capítulo seis. E a vida do espírito dava-lhe prazer, um prazer tal que prazer não é bem a palavra. […] Deu balanço à cadeira até ao máximo da oscilação, depois abandonou-se. Pouco a pouco o mundo, o grande mundo onde se apregoavam Quid pro quo e em que o sol nunca se punha duas vezes da mesma maneira, extinguiu-se para dar lugar ao pequeno mundo descrito no capítulo seis, e no qual podia amar-se a si próprio.

Nessa citação, fala-se do “pequeno e do grande mundo”: os quais não são outra coisa senão a interioridade e a exterioridade, a profundidade e a superficialidade, o íntimo silêncio do eu em contraposição aos “apelos dos vendedores ambulantes do mundo externo” e, por fim, o abstrato e o físico. Em minha opinião, essa díade é reforçada também pela contraposição de Murphy, contemplativo até a catatonia, com Célia, que faz da carnalidade a sua própria profissão. Pertencem a esse pequeno mundo da interioridade tanto Murphy, que constantemente repete que não faz parte do “grande mundo”, mas sim do “pequeno”, quanto os internos do manicômio, definidos como os seus “irmãos”: anti-heróis da inatividade que se contrapõem ao grande mundo do ativismo, no qual se está “com a inestimável prerrogativa de se surpreender, de amar, de odiar, de desejar, de alegrar-se e de choramingar”. Murphy, e sobretudo o próprio Beckett, estão convencidos da inutilidade do agir humano (veja-se Esperando Godot). Logo, o único consolo é o refúgio (ou a abertura) ao “pequeno mundo” do próprio eu e, talvez, prestando uma atenção nabokoviana aos detalhes, o protagonista se amarra com as tiras de pano em uma cadeira justamente para se afastar das tentações e seduções do mundo externo.

Uma última consideração deve ser feita. Antes de mergulhar na intrincada mente do protagonista, é acerca de outro elemento recorrente no texto, os números irracionais, que para um apaixonado pela geometria e pela simbologia como era Beckett, não se trata de algo meramente casual. De fato, Murphy é definido em dois momentos como sendo “surd”, isto é, um número irracional, porque o seu comportamento foge do normal e também por não existir uma lógica, uma divisão entre a realidade e a sua percepção; prova disso é que o narrador onisciente se vê obrigado a explicar como funciona o espírito do protagonista.


O ESPÍRITO LOUCO DE MURPHY

A psicologia de Murphy ocupa todo o capítulo VI. Depois disso, Murphy sai de cena até ser apresentado ao seu novo emprego no Manicômio Misericórdia Mental Madalena, que para o protagonista não representa outra coisa senão “um local de cura”. Nesse ponto do romance, como o autor mesmo afirma, é preciso dar um sentido à expressão “o espírito de Murphy”, repetida diversas vezes e descrita com uma precisão de detalhes digna de um psiquiatra. Eis a sua definição:

O espírito de Murphy imaginava-se a si próprio como uma grande esfera oca, hermeticamente isolada do universo exterior. Isto não constituía um empobrecimento, uma vez que não excluía nada que ele próprio não contivesse. […] A experiência mental era distinta da experiência física, os seus critérios não eram os da experiência física, o acordo de uma parte do seu conteúdo com o fato físico não conferia qualquer valor a essa parte. […] Assim, Murphy sentia-se dividido em dois, um corpo e um espírito.

Beckett parece querer mostrar, por meio de Murphy, a possibilidade de viver o dualismo cartesiano entre corpo e espírito sem a necessidade de sua integração; portanto, as duas entidades, espírito e corpo, não se comunicam, visto que aquele se encontra hermeticamente fechado no segundo, pois, como afirma cartesianamente o velho Neary, a sua glândula pineal está reduzida a zero. É interessante perceber o modo como o autor simplifica a dinâmica da cisão, antecipando de forma surpreendente as teorias de Bion sobre este fenômeno, que será definido mais tarde como splitting. A relação advinda entre soma e psique não é apenas objeto das pesquisas de Bion, mas também das conferências de Jung no Instituto Tavistock, e é possível que a discussão dessa dicotomia tenha influenciado a concepção do romance. De fato, para Jung:

[…] psique e corpo são um par de contrários, e como tal, são a expressão de um ser cuja natureza não é cognoscível mediante a aparência material, nem mesmo mediante a percepção interior. […] Acomete-nos a dúvida de que, no fim das contas, essa divisão entre psique e corpo não seja senão um procedimento intelectivo feito com o intuito de adquirir consciência, uma separação indispensável para o conhecimento, de um mesmo fato em dois, para o qual nós justamente temos uma existência independente.

As afinidades são evidentes comparando as duas passagens citadas, mas tornam-se mais acentuadas quando comparadas com o trecho seguinte, no qual se descreve a tricotomia da mente do protagonista:

Havia as três zonas, a luz, a meia-luz e a escuridão, cada uma com a sua especialidade. Na primeira, as formas com paralelo, uma radiosa resenha da vida de um cão, os elementos, da experiência física ao serviço de novos arranjos. […] Na segunda, as formas sem paralelo. Aqui, o prazer era a contemplação. […] A terceira, a escuridão, era um fluxo de formas, um perpétuo formatar e desfazer de formas. […] A luz continha os dóceis elementos de uma nova multiplicidade, o mundo do corpo separado em peças de um brinquedo; a meia-luz, estados de paz. O escuro não continha elementos nem estados, mas apenas formas que devinham e se desmoronavam em fragmentos de um novo devir, sem amor nem ódio, sem qualquer princípio de modificação inteligível.

A existência independente da qual fala Jung: o inconsciente não é senão a zona escura beckettiana, na qual não é possível que ocorra a síntese entre a aparência material e a percepção interior, da mesma forma que acontece entre a luz e a penumbra (meia-luz). Segundo a psicóloga Stefania Resta, também são identificáveis influências freudianas, visto que as três zonas citadas são assimiláveis à tripartição entre consciente-pré-consciente-inconsciente teorizada por Freud. Da mesma opinião é Gabriele Frasca, que afirma que a zona de luz corresponde ao primeiro estágio freudiano; a penumbra (meia-luz) ao segundo; enquanto que a zona escura é definida como “leibniziana”, onde não se pode ser livre, mas apenas uma “fina poeira na escuridão da liberdade absoluta”. A zona livre, pelo contrário, “superfície que reflete sem reflexo”, pode ser obtida apenas quando o movimento da cadeira de balanço (note-se também aqui a importância do objeto) “se faz sempre mais veloz e menos amplo, atingindo o momento em que a velocidade máxima se torna um ponto de repouso”.


O MANICÔMIO E OS INTERNOS: MARTÍRIO DA LOUCURA

O capítulo IX começa com a descrição de uma clínica psiquiátrica, o Manicômio Misericórdia Mental Madalena, onde Murphy é admitido como enfermeiro no lugar do seu amigo Ticklepenny, que abandona o cargo por temer que o contato com os internos o possa levar à loucura. A capacidade de descrição e caracterização dos pacientes internados, desde o “amável esquizofrênico Endon” ao catatônico Clarke, não são apenas o resultado do estudo pessoal da psicanálise e do encontro com Bion, mas também fruto das numerosas visitas feitas por Beckett ao Bethlem Royal Hospital e das frequentes conversas com o amigo e psiquiatra Geoffrey Thompson acerca dos vários pacientes por ele tratados. Em relação aos recuperados, Murphy sente um profundo respeito e uma sensação de “indignidade”, pois “todos os pacientes lhe davam a impressão daquela indiferença autorreferencial às contingências do mundo contingente que tinham escolhido para sua própria felicidade, mas obtida apenas em raras ocasiões”. Porém, o desdém em relação ao “poder psiquiátrico”, como o define Michel Foucault, é evidente:

Assim, era necessário que cada hora passada nas enfermarias aumentasse, ao mesmo tempo que a sua estima pelos pacientes, o seu desprezo pela atitude livresca que se lhes opunha, pelo conceptualismo pseudo-científico que fazia do contato com a realidade exterior o índice de saúde mental. […] A função do tratamento era deitar uma ponte sobre este abismo, transferir o doente da sua própria estrutura perniciosa e privativa para o mundo glorioso das quantidades discretas.

Analogamente, para o filósofo francês, não reside no saber psiquiátrico (“atitude livresca”) a revelação do enigma da loucura, porque a psiquiatria tornou-se uma “instância geral de defesa da sociedade contra tudo aquilo que carrega estigmas degenerativos e anormalidades perigosas […] mecanismo de controle e de governo das populações.”

Uma pergunta surge naturalmente: qual é o critério de identificação da loucura? Quem pode definir loucura e normalidade? Foucault, em seus estudos, desde A história da loucura na idade clássica até O poder psiquiátrico, identificou no século XVIII o momento chave no qual se constituiu o par médico-doente que organiza, valendo-se de novas modalidades, o mundo da loucura, através de uma projeção dupla: o doente portador de sua doença e o médico capaz de exterminar esse mal. É nesse ponto que “a loucura é incluída como uma doença mental”, enquanto no mundo clássico ela não existe, porque não há relação entre o louco e a sua loucura, “tida como símbolo de escolha divina e sinal de transcendência imaginária, o que permitia a sua tolerância no seio da sociedade”. A passagem drástica do sagrado ao profano parece:

[…] marcada pelo advento dos estados modernos, das grandes monarquias nacionais, dos seus aparelhos de controle dos territórios, da administração da segurança e das gestões das populações através dos dispositivos policiais, nos quais novas exigências são impostas. Em primeiro lugar, a redução de tudo aquilo que pode representar um elemento de perturbação e de desordem social. É a época onde a loucura transforma-se em objeto de reclusão e confinamento, em um espaço de exclusão indiferenciada. É a época do grande confinamento nos manicômios.

Deve-se ter em conta que o manicômio não é um lugar de livre observação, diagnóstico e terapia, mas, acima de tudo, um espaço judiciário, onde se é acusado, julgado e condenado pela figura do médico, executor do encontro entre o poder de soberania e de disciplina, que aplica os seus instrumentos de poder: linguagem, transferência e fármaco.

Paralelamente, Beckett também é consciente desse poder. De fato, ele afirma ironicamente:

Na M. M. M. M., não havia fatos, à parte os sancionados pelo médico. Assim, para dar um exemplo simples, quando um doente morria súbita e flagrantemente, como por vezes acontecia mesmo na M. M. M. M., não devia permitir-se qualquer suposição neste sentido ao mandar buscar o médico. Nenhum paciente estava morto enquanto o médico não o confirmasse.

Murphy, por sua vez, considerava o manicômio como uma igreja, onde se está em comunhão com os seus consanguíneos, os internos que pertencem ao “pequeno mundo” constantemente buscado por ele. Dessa estrutura, Murphy amava “a absoluta impassibilidade dos esquizofrênicos superiores”; as celas lotadas, sem janelas, como uma mônada, “a representação mais adequada daquilo que não se cansava jamais de chamar de pequeno mundo”. Além disso, Murphy se alegra por conseguir estabelecer uma boa relação com os pacientes, “marco indicador apontando para eles. Significava que encontravam nele o que tinham sido, e ele, neles, o que viria a ser. Significava que só uma psicose em todo o seu esplendor poderia consumar a longa greve que tinha sido a sua vida.”

De todos os internos, um em particular chamava a atenção de Murphy “como Narciso na fonte”: o senhor Endon, um esquizofrênico que geralmente, por causa das vozes que ouvia em sua mente, tentava suicidar-se através da apneia, o que era fisiologicamente impossível.  Será com ele que Murphy jogará uma estranhíssima partida de xadrez, que põe fim à sua esperança de ser percebido como louco entre os loucos: esta cena parece evocar a célebre partida cinematográfica entre a Morte e o Cavaleiro no filme Sétimo selo.

O TABULEIRO DO ABSURDO: XEQUE-MATE À LOUCURA

Assim como Nabokov, Beckett era fascinado pelo jogo de xadrez, talvez por ser um jogo que combina o livre jogo da imaginação com as regras rígidas. Esse paradoxo entre liberdade e restrição é uma noção muito beckettiana; o fato de que o ser se encontra ao mesmo tempo livre e aprisionado, capaz de beleza e condenado.

“Livre” e “condenado” são os termos adequados para descrever o problema enxadrístico do movimento: o primeiro indica a liberdade de poder mover qualquer peça, o segundo a condenação, porque cada movimento representa um avanço em direção à derrota, pois debilita a estagnação perfeita da posição inicial. De fato, de tal natureza eram os matches estudados por Beckett e pelo psiquiatra Thompson, segundo os quais, a partida ideal seria aquele em que nenhuma das peças fosse movimentada, pois desde o primeiríssimo lance, o fracasso e a derrota seriam inevitáveis; resulta evidente para o escritor que o destino dos jogadores de xadrez é análoga àquela do homem, porque os lances de ataque e contra-ataque são vãos, assim como o agir humano, destinado desde a primeira ação a distanciar-se da beatitude da posição inicial, da vida intrauterina desconhecida e beata.

Na partida entre Murphy e o senhor Endon, a loucura não apenas parece reinar soberana entre os dois sujeitos, mas também entre os objetos, dado que a partida é jogada entre os muros de um manicômio; de fato, os estranhíssimos jogadores executam quarenta e três lances de brilhante não-comunicação, descritos pelo autor utilizando a notação algébrica e comentados com incrível sarcasmo.

O absurdo consiste no fato de que Endon, como bom esquizofrênico que é, não repara minimamente na presença de seu adversário, continuando a movimentar as peças de uma maneira amalucada, até retorná-las à posição inicial. Murphy busca imitar a tortuosa geometria de Endon, mas como não consegue, começa a lançar uma série de ataques suicidas para que as suas peças sejam capturadas e, dessa maneira, tentar alguma forma de comunicação. Mesmo quando Murphy se encontra totalmente perdido no lance trinta e quatro e o xeque-mate é inevitável, Endon não se importa, e continua a dispor as suas peças de modo paciente e ordenado.

A estudiosa Francesca Gagliardo destaca que a falta de lógica nos lances efetuados serve para criar jogos de simetrias que evidenciam as personalidades dos jogadores: o estilo rigoroso e ordenado de Endon se reflete em um comportamento de plácida calma, enquanto Murphy, não obtendo êxito em imitar os lances do seu adversário, perde o controle derrubando as peças, “revelando uma tendência esquizofrênica que antecipa a sua loucura”. A partida, então, assume um valor de profunda indagação psicológica, como constata Bair:

O que interessa destacar nessa partida é a renúncia de Murphy após o lance quarenta e três do senhor Endon, quando ele poderia ter forçado o seu adversário a enfrentá-lo ou a abandonar a partida. Com esse lance, Endon deveria ter capturado a dama de Murphy ou alterado a simetria das suas peças; não poderia ignorá-lo, e teria sido, então, forçado a reconhecer a existência de Murphy. O fato de que Murphy tenha optado por abandonar a partida, demonstra que ele se reconhece derrotado em algo mais do que apenas na partida de xadrez: ele é derrotado pelo próprio senhor Endon, e é obrigado a reconhecer que entre eles não se estabelecerá jamais uma comunicação.

O senhor Endon é incapaz de perceber mentalmente a existência de outro ser humano; Murphy, após ter abandonado a partida, segura a cabeça de Endon entre as suas mãos, trazendo-a a um palmo da sua. Encarando-o fixamente nos olhos, ele se dá conta de que jamais conseguirá atingir aquele estado mental, e percebe algo como “um átomo no não-visto do senhor Endon”; “ubi nihil vales ibi nihil velis” é o erro de Murphy: procurar algo lá mesmo onde nada se pode obter: tentar chegar ao estado de graça do senhor Endon (a perfeição da zona escura), esforçar-se em atingir aquele estado mental sem, no entanto, abandonar completamente o controle racional (a zona de luz).

Depois dessa descoberta terrível, Murphy deita “o amável esquizofrênico) na caminha, e tomado pela loucura, se despe e sai da clínica. Completamente nu, deitado na grama, tenta formar uma imagem de Célia, depois da mãe e do pai, e, por fim, de toda criatura que ele tinha encontrado em sua vida, humana ou animal; mas tal esforço imaginativo revelou-se totalmente em vão: como no Juízo Final de Hieronymus Bosch, o único que Murphy consegue ver são:

Pedaços de corpos, de paisagens, de mãos, linhas e cores que não evocavam nada, surgiam na sua frente, subiam e desapareciam […] A sua experiência aconselhava-o a parar com isto antes de ter atingido as camadas mais profundas.

Segundo Bion, é a parte psicótica da consciência que produz objetos bizarros: o psicótico não transita em um mundo de sonhos, mas em um mundo de objetos, que são os mesmos que ele discute na descrição da alucinação psicótica de uma mente esquizofrênica, definidos como:

Presença ameaçadora de fragmentos ejetados que formam uma espécie de inúmeras órbitas, no centro das quais se encontra o paciente […] Esses objetos bizarros, simples e primitivos, assumem, por isso mesmo, certas formas que, observadas pela parte não psicótica da personalidade, possuem todas as características da matéria, dos objetos anais, dos estímulos sensoriais, das ideias e do super-Eu.

Bion descreveria Murphy desta maneira: um paciente afetado por delírios psicóticos encoberto por uma aura esquizoanalítica, que só encontra conforto na cadeira de balanço. Durante o ritual do vaivém, utilizado por Murphy como paliativo após o xeque moral que lhe fora infligido por Endon, enquanto o estado de repouso se difundia lentamente pelo corpo e pela alma, um vazamento de gás provoca uma explosão, e apenas nesse momento Murphy encontra a sua liberdade.

[1] O livro Scacchi Matti está composto por três capítulos, dedicados respectivamente a Vladimir Nabokov, Samuel Beckett e Stefan Zweig, e a relação deles com o jogo de xadrez. O autor, Angelo Merino, permitiu-me gentilmente a tradução do segundo capítulo dedicado à análise de Murphy de Samuel Beckett.

TRADUÇÃO DE JUAN MANUEL TERENZI DO CAPÍTULO 2 (“LA GESTAZIONE DEL ROMANZO: BECKETT, LA PSICOANALISI ED IL MURPHY”) DO LIVRO:

GERMINO, Angelo. Scacchi Matti. Analisi di tre folli deliri nel Gioco dei Re. Cosenza: Santelli Editore, 2018, 76 pp.

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Angelo Germino

É amante da literatura comparada. Formado em 2020 com nota máxima na Alma Mater Sudiorum (Universidade de Bolonha). Em 2017 colabora com a editora Santelli, publicando o livro Scacchi Matti: analisi di ter folli deliri nel Gioco dei Re.

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Juan Terenzi

(1982) é escritor, tradutor e pesquisador. Graduado em engenharia química, letras/espanhol e filosofia. Doutor em filosofia com a tese “Linguagem, voz e identidade: Beckett em diálogo”. Atualmente finaliza a graduação em letras/italiano e se dedica à tradução e à autotradução.

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