Por Sara Figueiredo Costa
Foram quase treze anos de pesquisa, entre livros, cartas, jornais e outros documentos para compor uma biografia que, ao longo de mais de mil páginas, procura traçar o percurso da vida de Fernando Pessoa e cruzá-lo com a sua extensa obra. Antes disso, já Richard Zenith era um dos mais conceituados estudiosos da obra pessoana, tendo traduzido vários dos seus textos para o inglês e ajudado a fixar em edição obras como o Livro do Desassossego. Conversámos com o autor de Pessoa – Uma Biografia para tentar desvendar um pouco mais sobre esse grande poeta da língua portuguesa.
Em 1896, Fernando Pessoa sai de Lisboa, cidade onde nasceu, e ruma a Durban, na África do Sul, a bordo de um navio. Acompanham-no a sua mãe, Maria Madalena Pinheiro Nogueira, a caminho de uma nova vida junto do segundo marido, João Miguel Rosa, e o seu tio, Manuel Gualdino da Cunha, amparando os oito anos do rapaz que haveria de ser a voz maior da poesia portuguesa do século XX. Podia dizer-se que, nessa altura, Fernando António Nogueira Pessoa ainda não suspeitava que alcançaria tal grandeza, mas a verdade é que os seus apontamentos infantis, entre jogos, charadas e personagens inventadas, já guardavam o propósito de alcançar a genialidade que haveria de o empurrar pela vida fora. Não evitou os muitos tombos, nem sequer as quebras de confiança que o assaltaram perante poemas que achou mal conseguidos ou perante a incapacidade de se afirmar como um grande poeta em língua inglesa – tarefa a que se dedicou com esmero. Apesar disso, aqui estamos, oitenta e sete anos depois da sua morte, lendo-o e discutindo-o na posição de autor canónico, reconhecido, aparentemente imortal.
Nos últimos anos, Richard Zenith mergulhou no espólio do autor de A Mensagem e, munido do vasto conhecimento que já detinha sobre a sua obra, compôs uma nova biografia de Pessoa. Fê-lo em inglês, sua língua materna, e a edição da Liveright acabou por integrar a lista de finalistas do prestigiado prémio Pulitzer. Fernando Pessoa – Uma Biografia publica-se agora em português, com chancela da Quetzal, e as suas páginas guardam um percurso atento ao contexto e aos detalhes que foram definindo a existência de Pessoa e alicerçando a construção da sua imensa obra.
Separar a vida de Pessoa daquilo que a sua mente criava ia transformando em escrita, em tantas escritas feitas a diferentes vozes, é uma tarefa inalcançável, como explicou Richard Zenith: «Acho que Pessoa é um escritor cuja vida está intimamente ligada à sua obra. Tem essa obra monumental, grande em qualidade, mas também em diversidade, com tantos géneros, tantas vozes, e escrever a biografia era uma tentativa de chegar ao homem “civil”, mas também à imaginação, à mente desse homem. A ligação entre vida e a obra… diria que é mesmo uma obra-vida, ou vida-obra, porque a obra de Pessoa está cheia de autobiografia, normalmente de uma forma distorcida, mas conhecendo a sua vida, isso ajuda-nos a perceber a obra e o porquê da obra e o génio e significado dessa obra.» Para além desse exercício de aproximação íntima, Zenith deposita outras esperanças no trabalho que agora publicou: «Espero bem que possa ajudar-nos a apreciar a obra de Fernando Pessoa. E também a convencer certos leitores de que a obra de Pessoa vale a pena, porque há pessoas que não se sentem muito atraídas pela poesia e talvez pela vida do homem possam ficar convencidas de que vale a pena.»
O nascimento dos heterónimos
O livro de Richard Zenith não é a primeira biografia de Fernando Pessoa. Vários autores se dedicaram a traçar a vida deste autor, nomeadamente o crítico João Gaspar Simões, que publicou, em 1950, uma abordagem biográfica a Pessoa que se explanava em modo de tese, recorrendo a leituras da psicanálise freudiana para interpretar a vida e a obra do biografado. Ao longo do seu livro, Zenith cita frequentemente Gaspar Simões, que chegou a conhecer Fernando Pessoa e da sua obra fez uma atenta leitura, mas o que se percebe lendo esta nova biografia é que muitos dados sobre a vida e as particularidades dos escritos de Pessoa não estavam ainda disponíveis na década de 50 do século passado. Graças à disponibilização do espólio pessoano para consulta e ao trabalho dedicado a que vários investigadores se têm entregue ao longo das últimas décadas, há agora outros documentos acessíveis e novas leituras a fazer a partir das edições críticas que estes investigadores foram fixando.
Já neste Pessoa – Uma Biografia, Richard Zenith traz aos leitores uma série de novos factos sobre a vida de Pessoa, sendo um dos mais relevantes a sua relação com o tio Cunha, familiar com quem o autor passou muito tempo quando era uma criança, antes de ir para a África do Sul, e com quem manteve correspondência depois de se instalar com a mãe e o padrasto em Durban. Até agora, acreditava-se que o tio Cunha não seria muito dado às leituras, mas Richard Zenith prova o contrário, estabelecendo inclusive a importância deste familiar na criação dos heterónimos pelos quais Pessoa haveria de ficar conhecido: «A sobrinha de Fernando Pessoa, Manuela Nogueira, que ainda vive, publicou um livro alguns anos atrás com imagens e documentos que tinha em seu poder, incluindo uma carta desse tio Cunha, que acompanhou pessoa e a mãe a Durban. Entre cartas, pesquisa em jornais e outros documentos, percebe-se isso. Depois, o tio Cunha voltou para Lisboa, mas escrevia para o sobrinho em Durban, e a Manuela Nogueira publicou uma ou outra dessas cartas, e há outras não publicadas, a que tive acesso. Nessas cartas, percebem-se os jogos que tio e sobrinho mantinham e que continuaram através das cartas. Um dos primeiros heterónimos, autores-fictícios – neste caso, não sei se autor é a palavra, talvez companheiro – é um tal capitão Thibeaut. Numa carta do tio Cunha há uma referência a esse Thibeaut, ainda que escrito de outra maneira, e aí temos uma prova de que o tio estava envolvido nessa criação de outros eus, como Pessoa mais tarde lhes chamaria.»
Quanto aos heterónimos, o mais recente biógrafo de Pessoa abre o livro com uma lista de nomes escolhidos entre os tantos que foram criados pelo poeta, mas não valoriza demasiado uma eventual contabilidade fechada sobre quantos seriam: «Há várias listas. Teresa Rita Lopes fez há muitos anos uma lista com 62 nomes. Depois, eu e o Fernando Cabral Martins listámos de 106, e outra lista com mais ainda… Tudo isso é muito discutível, porque há heterónimos, há autores fictícios, mas mesmo a noção de autores fictícios é complexa, porque pode ser só um nome que Pessoa criou e sob o qual pensou escrever alguma coisa, mas não escreveu realmente. Há muitos nomes assim, que foram projectos, que tiveram títulos de livros, mas que não aconteceram. Por exemplo, há uma Olga Baker com três títulos, mas os livros nunca foram escritos. E há uma série de nomes de pessoas que assinavam as charadas dos jornais que Pessoa fazia quando era adolescente. Então, tento dissuadir esse interesse em contabilizar os heterónimos, porque é um bocado inútil. Se quisermos um número, diria que há entre 20 ou 30 nomes, entre heterónimos e autores fictícios, com uma obra, pequena ou grande, mas relevante.»
A arca interminável
Mais interessante do que contabilizar heterónimos é mergulhar no processo da sua criação, alo que Zenith faz ao longo do livro, apresentando os nomes da vasta galeria de autores fictícios que Pessoa foi imaginando ao longo da vida. Nuns casos, deu-lhes uma biografia e produziu obra em seu nome, como aconteceu com a tríade composta por Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos, mas noutros são nomes cuja história não conhecemos, ou conhecemos apenas parcialmente. Esses nomes foram surgindo ao longo dos anos, saídos da arca onde Pessoa guardava os seus papéis, entre os quais há obras completas, poemas e textos soltos, mas também uma imensidão de apontamentos, esboços, notas para obras nunca escritas, identidades que nunca chegaram a ter uma vida. Dessa arca que parecia infinita, Richard Zenith não acredita que saiam muitas mais surpresas: «Penso que o espólio já está muito investigado e transcrito. Há ainda documentos inéditos, como apontamentos e outras coisas pequenas, mas não obras literárias que vão mudar a nossa visão de Pessoa enquanto escritor. Fora do espólio, há algumas cartas inéditas, sim, e haverá outras coisas, mas não creio que muito surpreendentes.» Apesar disso, deixa a ressalva: «Bem, Pessoa surpreende sempre, mas não me parece honestamente que vão aparecer imensos factos novos. Dito isso, nunca se sabe. Pode haver outras fontes, coisas desconhecidas, em colecções privadas que possam surgir, claro. Mesmo se nada mais surgir, Pessoa vai sempre encerrar um mistério, coisas de que podemos falar muito sem concluir nada definitivo. Ficará sempre alguma coisa misteriosa, que não percebemos totalmente. Há uma carta que Pessoa escreve em 1906, em nome de um heterónimo chamado Gaudêncio Nabos, quando já tinha voltado para Lisboa. Nessa carta, Gaudêncio Nabos fala dos amigos de Pessoa em Durban, o que lhes aconteceu depois de Pessoa partir. Quando li essa carta a primeira vez, como conto na biografia, pensei que tudo aquilo era real. E é ainda mais curioso quando percebemos que era tudo inventado… O que lhe passava pela cabeça? Que significado tinha aquilo? Nunca vou perceber.»
Um escritor em fermentação permanente
Uma das linhas que atravessa a vida e o processo de criação de Fernando Pessoa é a frustração. Pode parecer estranho quando olhamos hoje para obra deixada pelo autor, reconhecendo a sua imensa importância na constelação da literatura mundial, mas são inúmeras as anotações, entradas de diário e cartas em que o autor desabafa a sua incapacidade de concluir tantos dos seus projectos. Foram muitas as revistas que Pessoa planificou e nunca fez publicar, bem como muitos são os heterónimos que inventou e para os quais definiu tarefas de escrita que nunca aconteceram. Richard Zenith confirma este sentimento, mesmo que não tenha registado na sua longa biografia todos os projectos pessoanos que ficaram pelo caminho: «Pessoa tinha sempre muitas ideias para revistas, esboçava títulos, artigos, poemas, e que nunca apareceram. Por exemplo, a “Tabacaria” era para ser publicada numa dessas revistas que nunca se concretizaram e depois acabou por ser publicada na Presença, anos mais tarde. E na biografia só falo de algumas dessas revistas, há muitas mais! A certa altura, digo qualquer coisa sobre isso, porque se os leitores ficam frustrados por saber de todos estes títulos que nunca se concretizaram, Pessoa também ficava frustrado. Tanto é que inventou o Barão de Teive, heterónimo suicida, cuja grande frustração era escrever muito mas não conseguir acabar nada, e esse é o motivo principal para pôr fim à sua vida. Ao mesmo tempo, era assim, Pessoa tinha de escrever, era um escritor em fermentação permanente, estava sempre a imaginar novos projectos.»
O caso do Barão de Teive é ilustrativo da relação de Fernando Pessoa com os heterónimos, a quem tantas vezes permitia que vivessem aquilo que o próprio autor de carne e osso não conseguia viver, como conta o seu biógrafo: «O primeiro projecto de Pessoa publicar livros dos vários heterónimos aparece por volta de 1920 e o título era Aspectos, que é um título revelador, porque eram realmente aspectos dele próprio, coisas que vivia, sentia, e coisas que não vivia mas teria gostado talvez de viver. É interessante notar que com algumas raras excepções – como Maria José, que é mulher, mas acaba por ser a excepção que confirma a regra – os heterónimos são todos homens, solteiros, não muito diferentes do próprio Fernando Pessoa. E Maria José é uma mulher, mas em muitas coisas é como Fernando Pessoa, sempre a olhar pela janela, a olhar para a vida, como Pessoa fazia, e apaixonada por este serralheiro que se chama António, que também é um dos nomes de Fernando Pessoa. Há muito de Pessoa em todos estes personagens.»
Esta relação imbricada de Fernando Pessoa com os seus heterónimos e, por extensão, da vida de Pessoa com a sua obra, leva Richard Zenith a defender, perto do fim do seu livro, a tese de que Pessoa foi sobretudo um experimentalista, e que os heterónimos, a política, o interesse pelo esoterismo, a relação com Ofélia, tudo seriam experiências de alguém cuja vida quotidiana estava longe de ser tão enfadonha como os manuais escolares nos ensinaram, não sendo igualmente uma vida repleta de paixões, entregas, aventuras. Zenith confirma essa ideia, dizendo que «Pessoa era uma espécie de cientista, fazia essas experiências, e a matéria-prima era a sua própria vida.» E continua: «Essas experiências eram um bocado como o Dr. Jekyll, mas no caso de Pessoa não se criou propriamente um monstro, e sim muitos personagens, todos eles muito curiosos. Essas experiências de Pessoa eram uma forma de auto-conhecimento, de explorar todos recantos da sua pessoa, e ao mesmo tempo eram uma maneira de aumentar, expandir, essa pessoa que era Pessoa.»
Através dos livros da biblioteca pessoal do autor, dos tantos textos que escreveu e de uma imensidão de documentos, alguns já conhecidos, outros agora revelados, Richard Zenith estabelece uma nova aproximação a essa figura maior da poesia portuguesa. Da infância em Durban ao regresso a Lisboa, dos primeiros escritos à Mensagem, o único livro que publicaria em vida, passando pelos heterónimos, as deambulações lisboetas, a política, os cafés e quem os frequentava, a aventura de Orpheu e do Modernismo, tudo se organiza entre a clareza dos factos apurados e as possibilidades em aberto que as lacunas não deixam preencher. Percorremos a vida de Fernando Pessoa como nunca antes o tínhamos feito, mas sobretudo aproximamo-nos dessa ideia de uma vida inseparável da obra. E de uma obra sempre em construção e sempre muito inacabada, nas palavras de Zenith, que resume assim uma criação difícil de resumir: «Claro que há centenas de poemas lindíssimos e bem acabados, mas as grandes obras, como o Livro do Desassossego, não foram terminadas. E o que ficou foi uma obra vasta e muito aberta, que pede, de certa forma, a nossa participação. Isto é, é lendo essa obra que, com a nossa imaginação, conseguimos talvez sentir onde Pessoa queria chegar, e percebemos que há lugares onde talvez as palavras nunca conseguiriam chegar. Pessoa vai naquela direcção, e nós também, para zonas além das palavras. Acho que isso é um dos atractivos da obra de Pessoa.»
*Entrevista publicada a 26 de junho de 2022 no jornal Ponto Final (Macau), no suplemento literário Parágrafo, editado por Sara Figueiredo Costa. Clique
Sara Figueiredo Costa
(Lisboa, 1978). Estudou Literatura e Linguística na FCSH – Universidade Nova de Lisboa, onde se licenciou e fez o mestrado. Desde 2002, é jornalista free-lancer, escrevendo sobretudo sobre temas culturais. É crítica residente no Expresso, onde escreve sobre banda desenhada e ilustração. Na revista Blimunda, assina mensalmente reportagens, entrevistas e crítica literária. É editora do suplemento literário Parágrafo, publicado pelo jornal Ponto Final (Macau). Tem colaboração dispersa e pontual noutras publicações.