A morte pode ser percebida de diferentes formas. É possível encará-la, por exemplo, como um fenômeno estritamente biológico ou recorrer a alguma explicação religiosa que verse sobre sua dimensão espiritual. Todavia, em alguns casos, prefiro pensar de forma semelhante ao entendimento produzido por algumas comunidades africanas e ameríndias para as quais a morte está associada à ideia de esquecimento. Ou seja, nessas culturas, aquele que biologicamente não está mais presente entre os seus, mas que continua a ser lembrando, reverenciado, tendo seu nome pronunciado e sua história contada, permanece vivo. É nesse sentido que o título do presente texto brada: “Viva Nelson Sargento!” e que jamais seja esquecido.
Na manhã do último 27 de maio, o mundo do samba chorou o falecimento desse grande sambista, mais uma vítima da Covid-19 em nosso país – logo ele que, durante toda sua vida, contrariou as estatísticas, não escapou desta. Veio ao mundo, em 1924, como Nelson Mattos, mas, dito assim, provavelmente, quase ninguém saiba de quem se trata. Nem aqueles que vivem lá pelas bandas do Pindura Saia, Buraco Quente, Curva da Cobra, Telégrafo e Chalé (locais que formam o complexo do Morro da Mangueira) reconheceriam, de primeira, o nome de batismo de uma das figuras mais proeminentes e queridas da região. Isso porque o sobrenome “Mattos” logo cedeu lugar ao “Sargento”, em referência à última patente alcançada por ele no período em que integrou as fileiras do Exército brasileiro (1945-1949).
Que o leitor, entretanto, não se engane: de “milico” esse Sargento tinha bem pouco (inclusive, não era de prestar continência para qualquer Capitão que está por aí). Servir às Forças Armadas foi a saída encontrada pelo jovem compositor que buscava construir uma carreira profissional respeitada e driblar as dificuldades financeiras. Apesar de curta, a passagem pelo exército marcou sua trajetória a ponto de lhe render o nome artístico que o projetou como “a mais alta patente do samba”[1].
Nascido na cidade do Rio de Janeiro, o menino preto, pobre e franzino cresceu pelas ruas do Morro do Salgueiro e foi ali que teve o seu primeiro contato com o samba. Aos 12 anos mudou-se com sua mãe para a Mangueira, lá ele conheceu Cartola, Carlos Cachaça, Nelson Cavaquinho e muitos outros. Não tardou para ser levado para a escola de samba Estação Primeira de Mangueira, onde passou a integrar a ala dos compositores e, posteriormente, ocupou as posições de baluarte e presidente de honra da agremiação.
Na verde e rosa assinou diferentes sambas-enredo. O primeiro foi em 1949, ano em que a Mangueira venceu o carnaval com “Apologia ao mestre”, composição que Nelson Sargento fez com seu padrasto Alfredo Português. Emplacou ainda muitos outros sambas na escola, com destaque a “Cântico à natureza”, de 1955, que também produziu em parceria com o já mencionado Alfredo Português e com outro ícone da Mangueira: Jamelão. Embora a escola não tenha vencido o carnaval no referido ano, os versos “Oh! primavera adorada/ Inspiradora de amores/ Oh! primavera idolatrada/ Sublime estação das flores” são lembrados e cantados até hoje pelos mangueirenses.
Nelson, como ele próprio dizia, conseguiu “colher as flores em vida” (já que obteve o reconhecimento da classe artística, recebeu diferentes prêmios, além de colecionar elogios e homenagens públicas), mas, também, enfrentou muitas dificuldades até conseguir sobreviver da arte. Ao longo de sua trajetória teve que exercer outros ofícios, entre eles, foi pintor de parede, operário em uma fábrica de vidros e militar, como já mencionado. Mas nunca deixou de lado o sonho de viver da música, e foi no samba que acabou alcançando projeção como um grande artista da cultura brasileira.
No bar Zicartola, ponto de encontro de muitos bambas nos anos 1960, Nelson Sargento começou a alçar novos voos. O estabelecimento era frequentado por Zé Kéti, Paulinho da Viola, Silas de Oliveira, Elton Medeiros, Nara Leão, Tom Jobim, entre outros. Muitas oportunidades surgiram para Nelson ali, como o convite para participar do musical Rosa de Ouro e, também, para integrar dois conjuntos: A Voz do Morro e Os Cinco Crioulos [2].
O seu primeiro álbum solo, Sonho de um sambista, só foi gravado tempos depois, em 1979, quando ele já estava com 55 anos de idade. Ao longo da carreira, Nelson Sargento compôs muitos sambas. Grande parte de suas letras refletem a simplicidade, a criatividade e o bom humor que o sambista tinha de sobra, é o caso, por exemplo, de Falso amor sincero, que nos diverte com versos simples como “O nosso amor é tão bonito / Ela finge que me ama / E eu finjo que acredito”. Outras composições refletem questões sociais e identitárias – torcedor apaixonado do Vasco da Gama, escreveu a canção “Casaca, casaca”, que na letra ressalta a luta do seu time do coração contra o racismo (lembrando de um episódio no qual o clube se posicionou contra a exclusão de jogadores negros, contrariando a pressão feita pela federação carioca de futebol).
De todas as suas composições, “Agoniza, mas não morre” foi aquela que ficou mais conhecida, alcançando uma grande repercussão a ponto de se tornar um hino entre os sambistas (quase que obrigatória em qualquer roda de samba). Gravada pela primeira vez em 1978, na voz de Beth Carvalho, a letra aborda a força e a resistência do samba frente ao processo de marginalização e descaracterização que sofreu ao longo do tempo. Com a franqueza de quem vivenciou aquilo que canta, Nelson Sargento aborda nessa canção a história do gênero musical e traduz o sentimento dos sambistas diante das transformações presenciadas. O resultado é uma obra sensível, capaz de tocar o coração de qualquer apaixonado pelo samba: “Samba/ Agoniza mas não morre/ Alguém sempre te socorre/ Antes do suspiro derradeiro/ Samba/ Negro, forte, destemido/ Foi duramente perseguido/ Na esquina, no botequim, no terreiro”.
Além de compor e cantar, Nelson também se dedicou a outras artes: foi pintor, ator e escritor. Nas artes plásticas, identificado com o estilo Naif, retratava em telas a vida no morro e as rodas de samba, teve seus quadros apresentados em algumas exposições. No cinema, atuou nos filmes O Primeiro Dia, de Walter Salles e Daniela Thomas, Orfeu, de Cacá Diegues, e protagonizou o curta Nelson Sargento da Mangueira, dirigido por Estêvão Pantoja. Por fim, escreveu dois livros: Prisioneiro do Samba e Um certo Geraldo Pereira. Como ele mesmo dizia, sem falsa modéstia, “um artista quase completo”.
O sambista deixa um grande legado. Ficam as lembranças “do negro forte e destemido”, de estilo elegante, de voz rouca e retinta, de bom humor e de uma disposição ímpar para estar em cena. Nelson Sargento representava uma espécie de último elo com um tempo no qual o samba e o sambista viviam uma realidade muito diferente da atual. Testemunhou muitas transformações, viveu e aprendeu com os grandes e tornou-se um deles. E, quando a maioria dos seus companheiros de jornada já haviam partido, ele insistia em permanecer entre nós, tal qual um griô foi responsável por manter viva a memória do grupo e lembrar a todos que esse gênero musical tem no seu DNA a resistência e por isso ele pode até agonizar, mas nunca morrer.
Referências:
[1] DINIZ, André; CUNHA, Diogo. Nelson Sargento: o samba da mais alta patente. Rio de Janeiro: Editora Olho do Tempo, 2015.
[2] DICIONÁRIO Cravo Albin da música popular brasileira. Rio de Janeiro: Instituto Cultural Cravo Albin, 2002. Disponível em: <https://dicionariompb.com.br/nelson-sargento>. Acesso em: 10 jun. 2021.
Ynayan Lyra
é doutorando em História pela Universidade Estadual Paulista (UNESP/Assis), instituição pela qual também concluiu a graduação (2014) e o mestrado (2017) em História.