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Trecho de O fastio do Diabo, romance inédito de Ana Luisa Escorel

$ O Diabo andava muito desmotivado. E ainda por cima, constrangido a um vermelho eterno, excesso monocromático que não atendia, em nada, a extraordinária energia mental dele. O tempo todo tudo igual, nenhum ponto à volta que não fosse vermelho sangue, vermelho escuro, vermelho puxado para cor de abóbora, púrpura, roxo ou grená; vermelho alguns pontos acima do cor-de-rosa ou abaixo do marrom, mas sempre correndo na trilha de um matiz apenas. Na verdade essa tinha sido uma condição imposta por Ele – Ele sempre Ele! esbravejava num destempero mudo em meio ao tédio – quando fecharam a questão relativa às áreas de influên­cia de cada um. Ocorre que passados alguns milênios, o acordo foi deixando de servir ao conjunto dos interesses infernais porque o marasmo cromático começou a prejudicar além da conta a imaginação, a perspicácia e um tanto de iniciativas, tradicionalmente a cargo das potências subterrâneas. Vai daí, o ímpeto para a prática das infinitas categorias de malefícios foi se tornando cada vez mais frouxo. – Como, demônios, não percebi o sentido sibilino daquela maldita cláusula! – seguia vociferando, largado de si e de tudo, entregue a um sentimento de culpa atroz, sem conseguir aproveitar os indizíveis prazeres à sua disposição e tendo que reconhecer, a contragosto, certa superioridade do campo adversário, Ele à frente. Isso porque, no ato da assinatura, tinha posto reparo em outros itens, armando-se de tal forma frente a várias questões, polvilhadas com perícia ao longo do texto, que acabou não se detendo no poder acabrunhante do vermelho ininterrupto. – Lance de mestre! – Ou seja, o desafeto mór servira-se da ação gradativa de uma tática discretamente camuflada no fluir da eternidade, para condenar quase à inércia a base em que se assentava o exercício da barbárie absoluta, razão de ser das investidas satânicas, disparadas em sequên­cia perpétua do Reino Sombrio onde, alçado a autoridade inconteste, vinha dando as cartas desde o princípio dos tempos. Mas por outro lado – Era preciso admitir… –, Ele tinha embutido no documento um artigo fazendo certa concessão: durante sete dias, dos 360 do ano, o Inferno, de cima a baixo, estava livre para receber todas as cores do espectro. E com certeza no intuito de reafirmar as aptidões ilimitadas que os seguidores nunca hesitaram em Lhe atribuir, previu o estrago da monocromia sem fim e propôs a tal semana por mera compaixão – Sentimento detestável! Variante melosa da piedade! Na verdade, um gesto compassivo que, ao Diabo, causava náusea profunda, mesmo lucrando – e muito, reconhecia – com o intervalo das cores. Na pequena vigência dele os sentidos ficavam mais agudos e a eficiên­cia para o mal, afiada. Mas era pouco dando só para uma quantia ridícula de iniquidades que não o contentavam de jeito nenhum, mesmo se disparadas nas contundências paroxísticas a que sempre estivera afeito. Então, quando deu por si alguns séculos depois de lavrado o contrato, tentou em inúmeras ocasiões­ renegociar a tal cláusula, sem o menor sucesso. N’Ele a pertinácia inquebrantável era conhecida: quando embicava, fosse no que fosse, em algum dos incontáveis atalhos da dimensão infinita nada O fazia desistir. Quer dizer, sem chance de que abrisse mão de um dispositivo como aquele, cuidadosamente enxertado no texto com a fina acuidade na qual era imbatível, vindo – no tocante à escrita –, a cunhar de tal forma um estilo que, mesmo o documento não passando de mero pacto, tempos depois, tom parecido serviria para os discípulos do Cristo alçar a modelo, nos testemunhos largados, um atrás do outro, assim o mestre deles partiu dessa para outra, mais condizente com as excelsas condições de que era portador. – Maldição! – continuava o Diabo num monólogo silente, no fundo, invejoso de tanta reverência e abandonando por breve hiato o tédio para pôr no lugar sentimentos para lá de negativos, mais afinados com a natureza profunda dos entes de sua particularíssima espécie. – Até porque, pensando bem, o tal Salvador jamais correspondeu às maravilhas cantadas acerca dele. A se dar crédito a Mateus, Marcos e Lucas era egocêntrico, gabola e cheio de si, como salta aos olhos principalmente nos escritos de João, o quarto deles: “Eu sou a luz”! “Eu sou o caminho”! “Sou o pão da vida”, “Fora de mim não há salvação”! – e por aí afora. Afirmações típicas de gente mal educada! A verdadeira polidez pressupõe discrição acerca das próprias qualidades e quem sai por aí enaltecendo a si e aos seus beira o desfrute! Como os evangelistas não perceberam a tempo, dando jeito de atenuar tamanha auto complacência?! Comprometia demais… Ainda por cima, o Pai não primava pelo caráter, coisa sempre complicada: traços negativos no chefe costumam se refletir no grupo familiar de um jeito ou de outro. Mostrou ser omisso, comodista, apegado ao bem-bom, acionando o tempo todo os dispositivos de controle lá do alto, espapaçado no conforto dos reinos de hidromel, a salvo da brutalidade que me custou muito – a mim e aos meus!– espalhar e manter ativa. Por que não veio fazer frente ao escárnio, à chibata, à coroa de espinhos e ao peso da cruz se a ideia era lavar os pecados do mundo? Não veio e, invés disso, despachou o filho para engolir o pão que eu venho amassando há milênios e para penar como qualquer alma danada de último grau, dessas que entopem os chãos aqui do Inferno! Francamente!

       Dando curso a tais juízos, indo e vindo como peru de roda em torno do que, inegavelmente, era uma formidável derrota, o Diabo continuava desligado por completo das funções de governança, a ponto do alto comando satânico começar a temer pela capacidade ilimitada, natural nele, para o completo aviltamento dos espírito nos graus violentíssimos a que sempre se propunha. Nesse panorama, não havia o que pudesse arrancá-lo do mais absoluto fastio em relação às questões atinentes aos próprios domínios e ao campo mais vasto de trabalho espalhado por toda a extensão do globo terrestre. Já que, déspota para lá de esclarecido, armara uma estrutura administrativa autossuficiente e o cotidiano infernal podia andar sozinho graças à sábia matriz implantada centenas de séculos atrás, com o objetivo de reservá-lo, apenas, para a função de urdir maldades – acionando-as em sequên­cia infinita – e para o cultivo da inteligência na busca do aprimoramento de uma negação absoluta de tudo. Quer dizer, o titubeio emocional do chefe não colocava nenhum problema de ordem prática: a gerência, como um todo, estava a salvo seguindo irretocável sobre trilhos. Mas começava a ser encarado pelos mandatários locais como obstrução moral e, aí sim, a coisa ficava séria porque não era admissível que uma crise daquela natureza pudesse ameaçar a raiz da própria crueldade. Além disso, em tempos recentes, o Diabo vinha se confrontando com a brandura dos métodos sobre os quais havia erguido o renome, se comparados aos graus inimagináveis de torpeza que passaram a mover verdadeiras multidões de homens e de mulheres, muito melhor equipados para o aniquilamento de seu semelhante, de sistemas de pensamento e do ambiente natural, que as ativíssimas brigadas da noite eterna submetidas ao comando firme da mão dele. Porque qualquer terroristazinho de quinta ordem, em qualquer latitude, se mostrava mais capaz para destruir, que os venerandos decanos de seus  incontáveis exércitos. Outro fracasso, portanto. Estava perdendo em contundência para as criaturas feitas à imagem e semelhança do Criador em qualquer ação cujo objetivo fosse destroçar o que encontrassem pela frente e, isso, sem causa fundada nem o necessário planejamento. A bem dizer da verdade, num impulso que os movia de forma intempestiva e confusa, ao passo que ele – Diabo entre os diabos –, não costumava agir ou patrocinar nada sem, primeiro, estabelecer as justificativas medindo as consequên­cias e operando por cálculos precisos e métodos de cunho racional quase científicos. Era uma diferença e tanto embora a um desavisado – e à primeira vista – pudesse não parecer. Não se conformava, por exemplo, com o que haviam aprontado em Palmira na data inesquecível: 27 de maio de 2015! Destruir obra de arte era absolutamente vedado a qualquer membro de suas bem treinadas hordas malditas. – Um templo pagão! Monumento histórico! Jóia de uma cultura que nem existe mais! Pura barbárie! Odiava gente tosca de qualquer fé ou matiz ideo­lógico e, se pudesse, viveria cercado por objetos de bom artesanato e bom design, belos espaços arquitetônicos, pinturas, esculturas, desenhos e gravuras das melhores fases de seus artistas prediletos, para manter viva a inteligência porque de cretino não tinha nada e sabia muito bem para que servia a arte. Não à toa tinha sido posta no contrato aquela cláusula referente ao limite cromático, porque além d’Ele também ter perfeita consciência do poder transformador da criação, em qualquer campo estético – e tal seria, não tivesse –, sempre procurara se guardar das maquinações demoníacas. Estava alerta – e tinha razão – para o fato de que, com a vizinhança próxima das multidões de falsários penando no Inferno, em três tempos o Diabo despiria as melhores coleções terrestres das obras de sua preferência, trazendo-as para perto e pondo no lugar cópias perfeitas. Iniciativa que lhe traria, além do prazer indizível da fruição dos originais, o júbilo de passar a perna no Criador – E em todos os seres concebidos a partir da odiosa imagem d’Ele! – Mas, tendo em vista o cerceamento implacável a que o Reino das Sombras fora constrangido, impossível. Era só transpor a soleira do Inferno para tudo ficar vermelho. Imaginem só a Vitória de Samotrácia rubra das asas aos pés! Ou qualquer dos jardins de Monet emplastrado em variantes de escarlate! E a Guernica, então!? Traduzida em um continuum, tendo a púrpura por clave, perderia o caráter lancinante passando a mero amontoado de figuras desconjuntadas. As obras de Delaunay e Pollock seriam reduzidas a borrões amorfos, sequestradas as linhas de força da composição presas nas cores, dada a insistência em um nacarado insosso e só nele. Então o que restava ao Diabo, no campo da fruição visual,­ era se transformar em homem ou mulher – tanto fazia – para o périplo costumeiro dos museus no mundo rico: tinha todos tatuados na retina e as escolhas recaíam­ sempre nos melhores, percorrendo-os de alto a baixo pelo menos três vezes por ano.

       Agora, convenhamos: fracassos desse quilate seriam mais que suficientes para lançar qualquer demônio cônscio de suas responsabilidades na mais absoluta depressão, alimentando sentimentos de impotência em altíssimo grau. Imaginem só acontecendo com o Diabo em pessoa?!

       Sendo assim, e diante de tais danos, seguia mergulhado em completa indiferença a tudo, indo atrás da companhia de peças musicais de diversas épocas e tendências, ouvidas seguidamente em volume máximo, na intenção expressa de se atordoar,­ aplacando, de alguma forma, o ressentimento insidioso. Sucumbido, frágil, exposto a uma inelutável melancolia – Sem o menor cabimento… – preso aos restos de um tempo em que, anjo ainda, resplandecente como a estrela da manhã, ofuscava a todos com a incomparável beleza – Meu nome também era bonito: Lúcifer… E a camaradagem com Ele, por respeitosa que fosse, não podia ser maior… Acabei forçando a mão… Na juventude se comete muita insensatez… Pena… Minha história teria sido outra… Afinal, cada estado tem seu chefe e isso não se discute!… Então, por que haveria eu de cobiçar o Dele?!… Agora: feito o estrago, me sobrou o comando aqui dessas funduras e eu não ia gostar nada se algum demônio jovem e ambicioso quisesse tomá-lo de mim!… Não ia ter como lançar o infeliz de alturas nem próximas às de que vim, sendo obrigado a resolver o assunto por aqui mesmo: pelos baixios abissais das minhas rochas cinzentas… Difícil… Ainda por cima, como se não bastassem as incontáveis adversidades por que tenho passado desde a queda funesta, preciso ficar aturando interpretações distorcidas acerca da maldita oposição céu/inferno. Assentadas sobre uma ideia falsa que, assim mesmo, acabou contaminando o imaginário de boa parte dos homens e das mulheres mundo afora! Porque, sempre esperto – e para lá de habilidoso–, conseguiu fazer com que se atribuísse a mim a autoria de toda a fraqueza humana! Não teve a decência de reconhecer que essas criaturas tão imperfeitas, de aparência física tão próxima a d’Ele, foram mal concebidas e mal acabadas. Isso para dizer o mínimo! Não assumiu a falha e deu um jeito de torcer os fatos lançando, aos quatro ventos, que as causas partiam de mim –imagine só! – e não dos limites  incontornáveis de Sua carunchadíssima criação!

        Assim seguia os dias e emendava um abatimento no outro, olhos posto nos cascos, fixando, desgostoso, pernas e braços peludos mais a estridência do vermelho corpo afora. Padecendo com o peso daquele par de chifres e o desacerto permanente da cauda rija – comprida! – atrapalhando tanto em tantas ocasiões! – Lúcifer, nome para sempre maldito… Não há quem ouse dá-lo a um filho como dão Emanuel, Cristino, Salvador, Messias… O mais perto a que chegam é Lucio: fonte de luz… Que tem o mesmo sentido, mas está longe de ser igual…

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Ana Luisa Escorel

é designer formada pela ESDI Escola Superior de Desenho Industrial. Deu aulas de projeto em design gráfico na Escuela de Disegno EINA, em Barcelona ( 1970 ) e na PUC do Rio de Janeiro ( de 1976 a 1980). Em abril de 2004 fundou a Ouro sobre Azul Design e Editora.

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