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Temer o Verbo – Por Mariana Ianelli

É sabido que não se escreve com medo. Isso já disse a oracular Clarice para o nosso cronista José Castello quando jovem. Hoje, então, escreve-se tanto e tão desbragadamente que parece até bem bobo esse medo literário. Mas outra noite dei de pensar nele. O que há nessa trava que segura a mão e a mente receando as palavras? Excesso de respeito? Um sentimento irreprimível de insignificância? Qualquer coisa, talvez, além de um não saber? Qualquer coisa além do nervosismo juvenil de romper o hímen do silêncio? 

Estou pensando no medo que é uma espécie de cautela com o que ainda não existe e passará a existir assim que a primeira frase ganhar alento e forma. A hesitação de um antecipado calafrio, um tremor escondido no gesto de estátua de quase tocar o papel, sem tocá-lo. Não o medo da covardia mas o da prudência demasiada.  

Para os sem-vergonha, temperados pela loucura da vida, calejados pelo cai-e-levanta, com milhares de horas de escrita, haverá quem sorria com ternura desse medo púbere. Eu sorrio. Porque na ignorância própria de todos os começos, um nascente escritor que titubeia talvez pressinta o perigo do que está para começar. Lucila Nogueira diz num poema que “o silêncio é perigoso”. A escrita idem, mais até que o silêncio. Ou quem aí, veterano de verbo, já não se viu enredado no que tramou, bem menos senhor do mundo do que títere, quiçá desejando apagar antigos rastros? 

Quem já não provou o deletério da palavra que antes se pensava tão bem-vinda, o risível do que antes soava tão grave, e vice-versa, ou quem já não recebeu de volta as próprias páginas como se fossem de um outro e agora esse outro surpreendentemente nos ensinasse? Nem vamos falar do perigo de repercussão do que se escreve, esse perigo de ser morto ou fazer fama. Basta provar na alma o quanto nos implica o que escrevemos e o quão diferentes de nós mesmos (e do que pretendíamos que significassem) nos retornam, um dia, as palavras. Pois não é que aquele medo estreante já não parece mais tão bobo assim, no fim das contas? 

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Mariana Ianelli

Nasceu em São Paulo em 1979. Formada em jornalismo, mestre em literatura e crítica literária, estreou na poesia em 1999 com Trajetória de antes. Em 2013, estreou na crônica com Breves anotações sobre um tigre. É também autora de dois livros infantis. Desde agosto de 2018, edita a página Poesia Brasileira no Rascunho. Escreve quinzenalmente, aos sábados, na revista digital de crônicas Rubem.

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