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Serguei Iessiênin: o “vagabundo” famoso contra a bagunça artística – Por Tatiana Karpechenko

Alguns poemas de Serguei Iessiênin são relativamente conhecidos no Brasil, “A confissão de um vagabundo” está entre eles. O poeta chama seu personagem protagonista de vagabundo também em outras obras; os detratores chamariam assim o próprio autor que não era santo. Então os leitores brasileiros provavelmente têm a ilusão sobre a incapacidade dele de obedecer a algo. Será que isso significa a liberdade artística total de Iessiênin?

Simbolismo francês que se tornou russo, futurismo italiano que se tornou russo e acmeísmo que nasceu russo… E nada mais? Estes movimentos literários constituem a conhecida tríade, porque costumamos esquecer do quarto pilar da era da prata na literatura russa, do imagismo que nasceu em Londres e depois se tornou russo. Quanto a Iessiênin, que continua a ser um dos poetas mais famosos da Rússia, obviamente os leitores russos só lembram de que ele pertencia ao imagismo por algum período. Porém, no ano de 1918 Iessiênin descreveu uma hierarquia de imagens artísticas num livro intitulado “As chaves de Maria”. Dois anos depois, em 1920, no artigo “Vida e arte”, ao descrever ainda mais tipos de imagens artísticas, ele ampliou assim a sua classificação. Eu não acredito muito em movimentos literários сomo um fator decisivo para uma personalidade de um escritor, mas o fato da existência do imagismo na história da literatura russa pode nos fazer refletir os pontos de vista teóricos do poeta que, apesar da sua fama de vagabundo desobediente, obedeceu a sua classificação de imagens artísticas.

Eis um trecho do livro “As chaves de Maria” (1918) em minha tradução.

“A essência de imagens na criação literária se divide da mesma forma que o ser humano se divide, em três tipos como a alma, a carne e a mente.

Uma imagem que vem da carne pode ser chamada de iluminura. Uma imagem que vem do espírito pode ser chamada de navio. E uma terceira imagem que vem da mente pode ser chamada de angelical.

Assim como uma metáfora, uma imagem do tipo iluminura é uma imitação de um objeto por meio de outro. Ou seja ela é sinal da cruz no ar feito com os nomes dos objetos próximos a nós.

Assim o sol é como uma roda, um bezerro, uma lebre, um esquilo.

Nuvens são como abetos, tábuas, navios, um rebanho de ovelhas.

Estrelas são como pregos, grãos, pimpões, andorinhas.

Vento é como um veado, um cavalo de contos de fada russos, Sivka Burka, um vassoureiro.

Chuva leve é como flechas, semeadura, miçangas, fios.

Arco-íris é como um arco, um portão, um laço etc.

Uma imagem do tipo navio é uma captura de fluxo que pode ser imaginado quando uma imagem do tipo iluminura flutua em algum objeto, em algum fenômeno ou algum ser como se fosse um barco na água. Davi, por exemplo, diz que uma pessoa flui com suas palavras como se fosse chuva. Para ele, a língua em sua boca serve como uma chave da alma que é igual ao templo do universo. Para ele, os pensamentos são como cordas, a partir dos sons das quais ele compõe o canto ao Senhor. Salomão ao olhar para o rosto de sua bela Sulamita exclama de maneira linda que os dentes dela são como o rebanho de cabras tosquiadas que descem dos montes de Gileade.

Nosso Boian canta para nós que na beira do rio Nemiga a gente coloca feixes de cabeças humanas, as debulha com manguais de aço, coloca as suas vidas na eira, separa as almas dos corpos. As beiras sangrentas do Nemiga foram semeadas não com bondade, mas sim com os ossos dos filhos da Rússia.

Uma imagem angelical é uma criação ou uma abertura de alguma janela na iluminura e no navio. O fluxo revela neste ponto um novo rosto ou mais novos rostos no rosto luminoso anterior. Os dentes de Sulamita sem comparação nenhuma apagam neste ponto qualquer semelhança com os dentes e tornam-se cabras reais que desceram dos montes de Gileade.

Quase todos os mitos são construídos sobre a imagem deste tipo desde os dias do touro egípcio no céu até a nossa religião pagã, para esta religião os ventos são netos de Stribóg e soltam flechas do mar. Ela faz parte da aspiração de quase todos os povos e está presente nas melhores obras, tais como na Ilíada, na Edda, na Kalevala, no Conto da campanha de Igor, nos Vedas, na Bíblia, entre outras.

Em sua escrita individualista, Edgar Allan Poe construiu seu “Eldorado” usando uma imagem artística deste tipo. Longfellow fez o mesmo para o poema “O Canto de Hiawatha”, Hebel fez o mesmo para “A transitoriedade”, Uhland fez o mesmo para sua “Canção de um homem pobre”, Shakespeare criou assim a essência de “Hamlet” e também as imagens das bruxas e da floresta de Birnam em “Macbeth”. “O livro do Pombo”, nosso poema russo, “A Corrente dourada…”, “A oração de Daniel, o Exilado” e muitas outras obras que brilham por séculos respiram o ar das imagens deste tipo”.

Com o tempo os pontos de vista teóricos de Iessiênin se tornaram mais detalhados. Vamos ler agora um trecho do artigo “Vida e arte” (1920) também em minha tradução.

“A vida de uma imagem artística é imensa e capaz de transbordar. A imagem tem suas idades marcadas pelas eras. No princípio surgiu uma imagem verbal que nomeou os objetos. Depois segue uma iluminura, ou seja, uma imagem mítica, depois de uma imagem mítica segue uma imagem típica, ou seja, generalizada, depois de uma imagem generalizada segue um navio, ou seja, uma imagem de visão dupla. No fim das contas segue uma imagem angelical, ou seja, uma imagem inventiva. Já falei sobre alguns destes tipos no livro “As chaves de Maria”.

Aqui está um exemplo de uma imagem verbal. Primeiramente, vamos ver qual será uma imagem sem palavra. Os sons de zumbido de uma abelha não são estampados em palavras:

U-U-U-U,

bu-bu-bu.

Diante da mente humana está uma ação definida pelos sons (-bu-). O objeto pego por uma definição já não se move, a definição é uma imagem verbal. 

Uma imagem do tipo iluminura, ou seja, uma imagem mítica, é uma imitação de um objeto ou fenômeno por meio de outro.

Galhos são como mãos.

Um coração é como um camundongo.

O sol é como uma poça.

Uma imagem mítica também é uma imitação de fenômenos naturais por meio de brilhos humanos. Daí vem Dajbóg (doador da chuva) e também Hebe inconstante que “derramou do céu na terra/trovão fervente de um cálice e riu”. Todas as divindades são construídas sobre a imagem artística deste tipo, o mesmo pode ser dito dos nomes de heróis selvagens, assim como o Veado Malhado, o Vento Vermelho, as Corujas, o Sol Mordido etc.

Uma imagem típica, ou seja, generalizada, é uma imagem das somas de algo externo ou interno em relação a uma pessoa. Vou dar um exemplo de uma imagem externa, “um nariz como carris”, e dois exemplos de imagens internas, “duro como pedra”, “vadio como vento”. Uma imagem do tipo navio, ou seja, uma imagem de visão dupla pode ser assim: “Ô, meia-noite, ilumine um jarro da lua/para colher de bétulas leite”. Ela é muito familiar para uma imagem do tipo iluminura, só que aquela é imutável e essa gira. Uma imagem angelical, ou seja, uma imagem inventiva encarna processo de movimento ou algum fenômeno na carne das palavras. Toda a inventividade técnica, bem como a inventividade emocional, é construída sobre o sentido desta imagem. São imagens angelicais aplicadas, tais como tapete voador e um avião, pena de pássaro de fogo e electricidade, trenó automotriz e um carro. Os nomes do invisível e do imaterial se baseiam numa imagem angelical, emocional. Ainda existindo como premonição eles já se revestem dos nomes, por exemplo um sentimento de um país invisível no poema “Inônia” ou um sentimento de uma vinda invisível e imprevisível, assim como no poema “O hóspede milagroso”. Então, ao achar definições para fluidez das imagens artísticas, ao colocar as imagens nas formas delas, conseguimos ver nessa fluidez e nesse giro sua coordenação entre si e suas regras”.

Claro que todo autor sabe o que é uma metáfora, por exemplo. Mas a classificação apresentada por Iessiênin além das coisas evidentes mostra uma tentativa de refletir a vida espiritual, pelo menos um pouco, e não poderia ser aplicável à realidade ateia da URSS, por isso estes textos permaneceriam esquecidos por décadas. Os leitores soviéticos de Iessiênin preferiam considerar o poeta como cantor da natureza. Além disso, as obras da literatura nacional sempre expressam a alma russa; só que os nossos escritores raramente prestam atenção em paisagens celestiais, porém Iessiênin se interessava por essa temática.


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Tatiana Karpechenko

É tradutora literária russa, que também trabalha como revisora de textos e jornalista nas áreas de botânica, paisagismo e jardinagem. Pós-graduada em literatura russa. Mora em Moscou.

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