Eu que venho de longe no fascínio pelo cinema, quando ainda Visconti e Bergman vivos, mesmo que contemporâneos  dos “disaster movies” na outra margem do Atlântico, sempre acreditei  na sétima arte como ótima interlocução, até sinestésica, com a literatura.  Assisto a um filme como quem lê, especialmente nos diálogos de Joseph Mankiewicz, na argúcia existencial em Woody Allen, na estrutura ‘contística’ de alguns Robert Altman ou nos aforismos míticos nos planos longos de Tarkovski. Distante das deliciosas matinês em cinemas tranquilos qual cavernas de Platão ao avesso onde na intimidade usufruo das novas formas para re-assistir  clássicos ‘noir’ ou westerns míticos no Youtube e me deliciar com a densidade conteudal  e apuro técnico das produções nos mega-canais de streaming, especialmente a Netflix.  

Desde seu advento percebo que séries, apesar do substrato de entretenimento, são lastreadas com notável detalhismo histórico como “Versailles”  ou sofisticação no tratamento do premiado  “Mank”.  Fico a imaginar a dificuldade do espectador comum para notar complexidades nos jogos de poder entre Luis XIV, seu irmão o Duque de Orléans, as artimanhas de Guilherme de Orange contra tentativas de restauração católica na Inglaterra, bem como o surgimento da noção de ‘marketing de Estado’ sob a égide do “Rei Sol” com a edificação do palácio insuperável e normas de etiqueta duradouras, por exemplo. Em “Mank”, produzido pela  Netflix, chama atenção a tessitura psicológica do protagonista sob o peso da política dos estúdios, a proeminência de tipos como Louis B. Meyer e Randolph Hearst e as suscetibilidades de astros, especialmente o desrespeito antológico para com roteiristas.  Lembrar que Scott Fitzgerald e Faulkner atuavam nesse período em Hollywood.  

Nesta semana assisti a uma fita que se pretende questionadora dos ditames da Ciência a partir da vida de Marie Curie, a mítica detentora de dois Prêmios Nobel e pioneira no estudos aplicados sobre radioatividade. Dessas muitas emigradas do Leste Europeu convulso do final do século XIX, Maria Sklodowska, tornada Curie ao casar com seu parceiro de estudos Pierre Curie, ela foi arquétipo bem acabado da obstinada libertária dedicada com unhas e dentes à causa da humanidade, esse conceito tão revigorante capaz de dar forças para enfrentar todos preconceitos e obstáculos da estupidez reinante. Com permissão do termo, o filme acadêmico e sem arroubos, além da super dramatização da personalidade autocentrada de Marie, não soa paradoxal para quem jogou-se sem para-quedas por causas coletivas e universalizantes.  Que atriz surpreendente é Rosemund Pike. Belos cenários, direção de arte, elenco de apoio fazem deste trabalho um ‘filme que se vê’, deixa-se penetrar sem deitar marcas profundas, não impregna, ainda que ambicione chegar a mais. Dos benefícios médicos de suas descobertas, passando por Hiroshima até Chernobyl, a proposta de fundo é: “o que foi que eu fiz a partir de empenho científico?” Como o quase folclórico peso de consciência de nosso Santos Dumont ao perceber o uso beligerante do avião . Hoje com a pandemia vemos de novo a proeminência da Ciência e a correspondente reação do obscurantismo: o “negacionismo” sempre me soa uma patologia psíquica, mas fiquemos na ideologia das trevas e Marie Curie foi uma espécie de mártir militante da convergência do conhecimento e a da crença na redenção humanista visceral. Importa assistir a essa fita, importa comentá-la pelo prisma de nossos paradigmas renovados.

No poeta me fascina alguns elementos de experimentalismos da Ciência que espelham “perceptos” da cognição artística; mas em geral, em que pese sua importância, a Ciência é monótona por não dar margem a ambiguidades. Voltando a Barthes em “Aula” vieram essas evocações: “A ciência é grosseira, a vida é sutil, e é para corrigir essa distância que a literatura importa. Por outro lado, o saber que ela mobiliza nunca é inteiro nem derradeiro; a literatura não diz que sabe alguma coisa, mas que sabe ‘de’ alguma coisa; ou melhor: que ela sabe algo das coisas – que sabe muito sobre os homens.” O ‘grosseiro’ atribuído por Barthes à Ciência é na verdade sua ‘unidimensionalidade’, seu ‘grosso modo’: a arte, especialmente a poesia, sugere de modo ‘polissêmico’; a Ciência ‘pontifica’ e na maior parte das vezes salva vidas com sua assertividade. Não é de se estranhar a admiração de Marie Curie pela icônica e subestimada atriz-dançarina Loie Fuller que inovou com coreografias performáticas munida de aparatos luminosos e vestidos esvoaçando sua ‘serpentine dance’. Loie encantou Paris mas também se apresentou com sucesso em Santos no Teatro Guarany a caminho de Buenos Aires.

Sempre bom lembrar que Marie Curie surgiu e notabilizou-se durante a “Bélle Époque”, contemporânea da “Art Noveau” e do ‘Trompe-l’oeil’; parece frivolidade a referência mas o filme enfatiza sinestesias naquele momento determinante de interseccção da relatividade e da radioatividade. A competente mise-en-scène da diretora Marjane Satrapi conta com uma peculiaridade incidental: trechos de “Metamorphosis” do querido Philip Glass que já servira “As Horas”, de Stephen Daldry, com mesma maestria. Paul Dirac, gênio precoce da física que ganhou o Nobel de 1933 e ficou conhecido pelas possibilidades da anti-matéria, tem uma frase que enfeixa bem minha reflexão sobre essas duas fés: “Na ciência tentamos informar as pessoas de um modo que seja entendido por todos, alguma coisa que ninguém sabia até então. Na poesia fazemos exatamente o oposto.” Inauguro este espaço com minha crítica-escritura, espero que apreciem….

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Flávio Viegas Amoreira

Escritor, poeta. Colunista da seção "Terra em Transes".

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