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Adaptação Teatral do romance “Orlando”, de Virgínia Woolf – Por Roberto Cordovani

Orlando” (1928), Virgínia Woolf
Adaptação Teatral e estrutura da trilha sonora: Roberto Cordovani
Trilha sonora original composta pelo Maestro Marcelo Pelegrini


ORLANDO

VOZ DO BIÓGRAFO – Não restavam dúvidas quanto ao sexo que pertencia, embora a moda da época não fosse clara a esse respeito, entretinha-se dias e dias escrevendo. Desde o começo dos tempos que os antepassados de Orlando eram nobres. O pai de Orlando cortava a cabeça de qualquer pagão que aparecesse à sua frente nos campos Africanos. Feliz a mãe que dá à luz, e mais feliz ainda eu, o biógrafo, que registra a vida de tal criatura.

ORLANDO – Estou só.

ORLANDO – Amo sentir a espinha dorsal da terra. É assim que a raiz dura desta árvore me parece. É como se os ritos do amor tecessem em torno do meu corpo.

(LEVANTAM-SE E PREPARAM-SE PARA RECEBER A RAINHA)

(AO ACABAR A MÚSICA)

ORLANDO – A Rainha… nervosa, doente, mas também autoritária. Uma mão que basta erguer para rolarem cabeças.
Essa mão pertence a um corpo velho. A rainha tem cheiro de armário onde se guardam peles protegidas por cânfora. O que mais a minha rainha aprecia em mim é eu possuir um par de pernas esbeltas, olhos violeta, um coração de ouro, lealdade e, sobretudo, encanto.
O certo é que a rainha está envelhecendo, tornando-se fraca e gasta pelo tempo.

(ORLANDO DEITA E DORME)

VOZ DO BIÓGRAFO – Quando Orlando dormia profundamente a rainha colocou o selo real no documento. Ali declarava oferecer ao pai do rapaz a casa monástica que havia pertencido ao rei e ao arcebispo.
Orlando dormiu toda a noite na ignorância, foi beijado pela rainha sem tomar conhecimento.

VOZ DA RAINHA – Meu inocente, aproxime-se. Estou confirmando a verdade que tenho diante dos meus olhos…boca, nariz, peito, quadris, mãos e que pernas meu querido… (GARGALHA) – Que pernas! Tenho à minha frente a verdadeira imagem do genuíno aristocrata. Mas aí dentro? Força, romance, loucura, juventude. Dou-lhe este anel e te nomeio meu tesoureiro e escudeiro…e a chave do meu gabinete… Sempre que eu viajar você irá na minha carruagem.
Em breve iremos à Escócia. E não terá que embarcar para a guerra polaca. Como poderia suportar que esta carne tenra pudesse ser despedaçada e esta cabeça pudesse rolar no pó.

ORLANDO – (PAUSA) – Ela está me abraçando forte.
VOZ DA RAINHA – Esta é a minha vitória…
ORLANDO – (PAUSA) – É mais do que evidente que a velha senhora está cansada.

VOZ DO BIÓGRAFO – O ama … e a rainha que reconhecia um homem sempre que via algum.

ORLANDO – Não como as mulheres fazem, concebeu-me uma bela carreira. Eu, Orlando…
VOZ DA RAINHA – Sois o filho da minha velhice, o meu braço direito…
VOZ DO BIÓGRAFO – Foram-lhe concedidas terras e casas, tudo isto mesclado a uma estranha forma de ternura.
VOZ DA RAINHA (GRITA) – Orlando! Quem era aquela sirigaita que você beijava?
A RAINHA GRITA, QUEBRA CRISTAIS, GEME…

ORLANDO – A rainha jamais se recuperou, e não parou de gemer até o fim dos seus dias, protestando contra a falsidade dos homens. Talvez a culpa tenha sido minha. Será que os senhores devem me culpar?
A existência é breve. Dizem. O momento já passou. O que agora nos espera é a morte eterna. A violência é tudo. Os amantes amam e partem.
O certo é que sempre gostei de me dar com gente de baixa condição, principalmente com os artistas, como se existisse uma afinidade de sangue entre nós.
As mulheres são livres como as aves. Sentam-se ao meu colo e adivinham haver algo fora do comum por baixo da minha capa…oportunidades não faltam. O rio está repleto de todo o tipo de embarcações.
Mas não demorei muito a me cansar, não só do desconforto provocado por este estilo de vida, como também do primitivismo das pessoas…
Por eu ser jovem e rico, o nome de três damas uniu-se ao meu através de propostas de casamento. A primeira…, Clorinda, era uma jovem doce, por quem me apaixonei profundamente durante seis meses e meio. Tomou a seu cargo a tarefa de fazer com que eu abandonasse o caminho do pecado, o que me irritou e me fez desistir do casamento. Faville, a segunda, era totalmente diferente. Filha de um gentil homem arruinado conseguiu o seu lugar na corte através de seus olhos insinuantes. Certa vez cometeu a imprudência de espancar um cachorro que lhe rasgou um par de meias de seda. O cão por pouco não morreu. E eu, que adoro animais, de pronto reparei ter ela os dentes virados para dentro, o que indicava um temperamento cruel. Quebrei o compromisso nessa mesma noite. A terceira, Euprosyne, foi de longe a mais séria das minhas paixões. Falava Italiano com fluência e os dentes superiores eram perfeitos. Nunca era vista sem estar na companhia de um cão. Cantava como as fadas e não se levantava antes do meio dia. Tratava-se da esposa perfeita para um nobre como eu.

ORLANDO – Londres vivia um carnaval sobre o gelo… Até que no meio de um minueto. Quando aquele rapaz…só podia ser um rapaz, nenhuma mulher seria capaz de patinar com tanta velocidade e vigor, passou por mim; a frustração estava prestes a fazer com que eu começasse a arrancar os cabelos; afinal estava fora de qualquer questão contato amoroso com uma criatura do meu sexo. O patinador aproximou-se, pernas, mãos, porte, tudo isto era igual ao dos rapazes, mas rapaz algum teria uma boca daquelas, rapaz algum teria aqueles olhos que davam a sensação de ter sido pescados no fundo do mar. Acabei por descobrir que a desconhecida era princesa, chamava-se Marousha Stanilovska Dagmar Natasha Iliana Romanovitch e chegou junto com a comitiva do embaixador de Moscou.

VOZ DO BIÓGRAFO – A sua masculinidade despertou. Mergulhou em águas profundas.

VOZ DE SACHA – Por obséquio. Seria capaz de me passar o sal?

ORLANDO – Corei profundamente…com todo prazer, madame.

VOZ DO BIÓGRAFO – Passado pouco tempo começou a ficar claro para todos que Orlando prestava mais atenção à princesa do que era requerida pelas normas da boa educação.

VOZ DE SACHA – Tira-me daqui, Orlando, detesto os teus ingleses.

ORLANDO – Levei a minha princesa ao centro da cidade e comprei tudo que ela queria. Desejávamos gozar a companhia um do outro. Eu e Sasha. Pela primeira vez na vida conheci as delícias do amor.
Contei-lhe tudo a respeito dos meus antigos amores que, comparados com o que agora sentia, não haviam sido mais do que cinzas.

ORLANDO – Então, sem que eu prevesse, deixava-me dominar pela melancolia. Quando isso acontece medito sobre a morte. Aquilo que separa a felicidade da melancolia tem a espessura da mais fina lâmina e ambos os sentimentos são como as faces de uma mesma moeda. Todas as emoções violentas estão ligadas à loucura, a morte é o fim de tudo.

VOZ DE SACHA – Não leve tudo a sério, Orlando.

ORLANDO – Não estou ansioso para abandonar os hábitos agradáveis do meu país. Mas tomaremos um navio para a Rússia. Eu e Sacha fugiremos na primeira noite escura.

ORLANDO – Sasha desapareceu por mais de uma hora. Resolvi seguir o caminho que a vi tomar. (CAMINHA À PROCURA DE SACHA. PARA PERPLEXO) – Ela estava sentada no joelho de um marinheiro.
VOZ DE SACHA – Orlando, não teria a vela pingado, não teria se movido as sombras? A caixa era pesada, o homem estava me ajudando arrastá-la.
ORLANDO – Acreditei nela por alguns instantes.
VOZ SACHA – Eu uma Romanovich nos braços de um marinheiro?

ORLANDO – E quando ela for uma matrona gorda com mais de 60 anos? Terá valido a pena? Sasha mostrava-se meiga. Eram poucas as vezes que falava do seu passado, mas agora ia me contando como na Rússia, durante o inverno, costumava ouvir os lobos uivarem.

ORLANDO – A vida dos homens termina no túmulo. Os vermes acabam por nos devorar. Creio que se devia dar agora um enorme eclipse do sol e da lua e que o globo assustado se abrisse.

ORLANDO – Cheguei no local do encontro muito antes da meia noite. Meu coração estava prestes a transbordar. A aventura ia acabar mal. Apesar de tudo, não receava por Sasha.

ORLANDO – Sacha iria chegar ali sozinha, embrulhada na capa, envergando calças e botas tal como os homens. Não demorou muito para que as seis gotas se transformassem em sessenta, depois em seiscentas, culminando numa chuva forte e persistente. O mundo inteiro parece anunciar a traição de Sasha. Infiel…

VOZ DO BIÓGRAFO – Até este instante a história da vida de Orlando pode ser documentada tanto no campo privado como no histórico. Só que agora nos vemos diante de um episódio que é impossível ignorar. Neste verão, Orlando se viu confinado ao retiro da sua grande casa de campo onde vivia na mais completa solidão.
Certa manhã não se levantou como de costume e quando o criado o foi chamar descobriu que ele dormia a sono solto e que não conseguia acordar. Estava como numa espécie de transe, mal respirando.
O certo é que ele não se levantou, comeu ou deu qualquer outro sinal de vida durante sete dias.
Na manhã do sétimo dia levantou-se à hora de costume.
Será que existem estratégias de remediação para acontecimentos traumáticos? Terá o dedo da morte interferido ocasionalmente no tumulto da vida evitando assim que ela nos destrua? Será que somos feitos de forma tal e que nos vemos obrigados a conhecer a morte diariamente e em pequenas doses para que só então possamos viver?
Terá Orlando gasto pela intensidade do sofrimento que o atormentava morrido durante uma semana e depois voltado à vida? E se fosse esse o caso? Qual a natureza da morte e qual a da vida?

ORLANDO – (COM CASTIÇAL)
Nenhum dos meus cento e cinquenta criados se atrevem a me seguir. São muitos os fantasmas que habitam essa casa. É com facilidade que se podiam perder e cair por algumas escadas abandonadas, ou abrir alguma porta que, se o vento soprasse com força, se fecharia para sempre.

ORLANDO – Nesta cripta, meus antepassados repousam há mais de dez gerações. Nada resta dessas pessoas. De quem terá sido esta mão? De uma jovem ou de um velho? Terá feito a guerra ou manuseado a agulha? Estando aqui a vida deixa de ter sentido. Como a vida se apoia na morte. Nunca mais verei Sasha, minha princesa. (APAGA AS VELAS)

Escrevo.

ORLANDO – Foi desta forma que antes de completar vinte e cinco anos escrevi quarente e cinco obras de teatro, romances históricos e os inevitáveis poemas. Agora surge em mim a ambição, a prostituta, a vaidade e a fama. Não sei se sou o mais divino dos gênios ou o mais perfeito dos idiotas. Mas orgulho-me de ter sido sempre chamado de erudito e de terem zombado do meu amor pela solidão.

ORLANDO – É que já estou farto dos homens. A literatura não passa de uma farsa. Queimei cinquenta e sete das minhas obras poéticas. No momento só confio em duas coisas: nos cães e na natureza.

(COLOCA FOGO NOS PAPÉIS DENTRO DE UMA BACIA DE FERRO)

VOZ DO BIÓGRAFO – Quando um homem chega aos trinta anos, e era esse o caso de Orlando, o tempo torna-se longo quando se pensa e curto quando se age. Foi neste estado de espírito que deixou passar os meses e depois os anos. Não será exagero dizer que saía de casa apenas com os seus trinta anos e regressava à noite na pele de um homem de cinquenta e cinco anos.
Havia semanas que acrescentava séculos à sua idade ao passo que outras tinham a duração de segundos, a vida parecia ter uma duração prodigiosa.

ORLANDO – O que é o amor? E qual é o interesse de tudo isso? Por que razão não usar o mínimo de palavra possível?

VOZ DO BIÓGRAFO – E depois ficava pensando durante meia hora ou seriam dois anos e meio?

ORLANDO – Não quero mais a fama. O homem obscuro é abençoado por poder fundir-se com as trevas. Ninguém sabe para onde ele vai. Só ele é livre. Só ele é verdadeiro, só ele está em paz. O mesmo se passa com os construtores das catedrais que, no mais completo anonimato, sem precisarem de reconhecimento, talvez um pouco de cerveja à noite, produzem obras de arte. Que maravilha de vida.
E por que não gozar apenas este momento? Por que não?
Não posso mais ficar aqui. Pedi ao Rei Carlos para me enviar a Constantinopla, como Embaixador. Lamento que estas pernas tão bonitas…

…tenham que deixar a Inglaterra.

VOZ DO BIÓGRAFO – É de lamentar profundamente que a respeito desta fase da carreira de Orlando tenhamos poucas informações. Sabemos que desempenhou com perfeição as tarefas que lhe competiam.

ORLANDO – Eu, como Embaixador, dizia preferir Constantinopla, ao passo que os meus anfitriões declaravam que, muito embora, nunca tivessem estado lá, preferiam Londres.
O passo seguinte era, eu, como Embaixador, elogiar a mobília do dono da casa, e este elogiar a minha roupa.
Isso é a parte mais importante da vida de um diplomata.
O certo é que me cansavam o bastante, chegando mesmo a deprimir-me de tal forma que preferia jantar sozinho com os cães.
Eles eram os únicos com quem eu podia me expressar livremente.

VOZ DO BIÓGRAFO – Transformou-se no ídolo de muitas mulheres e alguns homens. O Rei Carlos lhe concedeu homenagens por desempenho dos seus deveres com tanta competência em Constantinopla. Na manhã seguinte à grande festa que o Rei ofereceu a Orlando seus secretários foram encontrá-lo profundamente adormecido no meio dos lençóis. A princípio ninguém suspeitou de nada já que a noite foi cansativa; porém quando a tarde chegou e Orlando continuou dormindo acharam por bem chamar o médico. E Orlando dormia, dormia…vigiavam-no noite e dia, mas exceto pela respiração regular e pelo rosado habitual das faces era como se estivesse morto.

No sétimo dia do seu transe os turcos revoltaram-se contra o Sultão. Colocaram fogo na cidade e esquartejaram todos os estrangeiros que conseguiram encontrar. Os revoltados entraram no quarto de Orlando, mas julgando-o morto nem sequer lhe tocaram.
MUDANÇA DE SEXO – MUDANÇA DE ROUPA

ORLANDO – Nenhuma mudança, a mesma pessoa, só mudou o sexo.

VOZ DO BIÓGRAFO – Esta mudança de sexo era contra as leis da natureza. Para nós basta constatarmos o seguinte: Orlando pertenceu ao sexo masculino até os trinta anos, depois transformou-se em mulher. Mas deixemos que outros se ocupem do sexo e da sexualidade.

ORLANDO – Comprei muitas roupas femininas e assim como uma jovem aristocrata inglesa, embarquei no “Lady enamorada”.
O capitão me ofereceu um toldo no convés para abrigar-me. Começo a perceber as vantagens e desvantagens de ser mulher.
Ser feminina está em aceitar a atitude do capitão? Mas quando se foi homem, durante trinta anos… e ainda por cima embaixador, quando se apertou nos braços uma ou duas damas de posição inferior… talvez não seja assim tão difícil compreender a calma com que encaro os fatos.

ORLANDO – Nunca tinha visto a minha pele…tão favorecida como agora.

ORLANDO – Que prazer eu senti a primeira vez que vi Sasha a centenas de anos. Nessa altura foi a minha vez de perseguir, agora compete-me fugir. Qual dos êxtases é maior? O do homem ou o da mulher? Serão eles equivalentes? O feminino é mais delicioso. Poderei saltar do navio e nadar à vontade com essas roupas? Não tenho certeza, se não teria a coragem de me atirar borda fora só para ser salva por um marinheiro.
Será que devo passar a respeitar a opinião do sexo oposto? Mesmo que a considere monstruosa? Lembro-me de quando fui homem, insisti na noção de que as mulheres tinham que ser obedientes, cheirosas e apresentarem-se cobertas de enfeites. Agora vou ter que dispensar uma hora das minhas preciosas manhãs olhando para o espelho. Terei que ser casta todo ano. Minhas pernas são um dos meus mais belos atributos físicos. As sagradas responsabilidades da feminilidade. Nunca mais poderei partir a cabeça de homem algum. Assim que regressar à Inglaterra, tudo que poderei fazer será servir chá aos senhores e perguntar-lhes se aquele está ao seu gosto. Quer com açúcar? Ou será que prefere natas? Céus, como nos tomam por idiotas… e que idiota somos! Sou homem… sou mulher. Conheço os segredos e partilho a fraqueza de ambos. Ser pobre e ignorante são esses os atributos do sexo feminino: deixar o governo do mundo para os homens. Devido à lentidão dos seres humanos para adaptarem-se às convenções, e muito embora eu seja mulher, o objeto do meu amor continua a ser uma mulher. Será que de agora em diante tenho que negar o meu amor, cerrar os lábios e moderar a linguagem? Mal acabei de chegar a Londres e três importantes processos haviam sido movidos durante a minha ausência.

VOZ DO BIÓGRAFO – As acusações principais eram as seguintes: Que estava morta e como tal não podia reclamar nada do que lhe pertencia. Que era mulher…

ORLANDO – O que ia dar no mesmo.

VOZ DO BIÓGRAFO – Até a resolução do litígio todos os bens ficavam congelados.

ORLANDO – Nesta situação de profunda ambiguidade, sem saber se estou viva ou morta, se sou homem ou mulher, fui para a propriedade que possuo no campo.

ORLANDO – Ninguém suspeitou que esta Orlando não fosse o Orlando de sempre. Se alguma dúvida tivesse surgido nas mentes humanas a atitude dos cães teria bastado. Eles são melhores que nós para reconhecer a identidade e o caráter das pessoas.
Só existe um Deus, e a única religião verdadeira é a de quem fala. Tenho a minha própria fé. Estou crescendo. Comecei a perder as ilusões e talvez a substituí-las por outras. Só Deus sabe o futuro que me espera. As mudanças são incessantes. A mente é um fantasma, o ponto onde os extremos se encontram. Qual a vantagem de ser jovem e estar na primavera da vida? Estou só. A ciência ainda não confirmou o fato das mulheres jurarem que a solidão se torna visível depois de um ato de amor.
A vida e um amante.

ORLANDO – Como acontece com todas as mulheres, tornei-me mais modesta no que diz respeito à inteligência e mais vaidosa no que se refere à aparência.
Apesar das diferenças existentes entre os sexos, elas misturam-se. A aparência masculina ou feminina é definida apenas pela roupa. Por enquanto é difícil dizer se eu sou mais homem ou mulher.

VOZ DO BIÓGRAFO – Todos ansiavam por admirar a heroína do celebrado processo judicial. Era enorme o interesse que o caso despertava na mente do povo. As senhoras não deveriam andar desacompanhadas por lugares públicos.

ORLANDO – Mergulhei nas águas da sociedade de London. Aqui a verdade não existe. Nada existe. Tudo é uma ilusão.

ORLANDO – Sou incapaz de recordar uma simples palavra que tivesse um significado maravilhoso. A sociedade acaba por ser tudo ou nada, trata-se da mais poderosa mistura do mundo.
Será isto que as pessoas chamam vida? Ninguém pode negar que o silêncio dos animais faz com que a relação se torne mais refinada.
As pessoas também abanam as caudas, curvam-se, estendem as patas, lambem-se mutuamente, mas não conseguem falar.
É que em todos esses grupos, as pessoas se encontram como que enfeitiçadas. Onde a ilusão impera não há lugar para a verdadeira felicidade.

ORLANDO – As ilusões são para a alma aquilo que a atmosfera é para a terra. Somos destruídos pela verdade. A vida é um sonho. É o despertar que nos mata. Quem nos rouba os sonhos, rouba-nos a vida.
Era assim que deveria ser a arte da conversação. Só os céus saberão o porquê. Quando perdemos a fé nas relações humanas, tudo isto pode nos parecer o símbolo perfeito do inatingível, levando-nos a não desistir da busca.
Quando as mulheres estão a sós não falam, arranham-se. As mulheres são incapazes de sentir afeto pelo seu próprio sexo, nutrindo umas pelas outras a maior das aversões.

VOZ DO BIÓGRAFO – Parece que Orlando não tinha qualquer problema em assumir ambos os papéis. Os prazeres da vida aumentavam e as experiências multiplicavam-se. Recebia em partes iguais o amor de ambos os sexos. O século XVIII chegava ao fim e começava o Século XIX.

ORLANDO – O clima da Inglaterra alterou. O pior é a infiltração da umidade na casa das pessoas. A umidade é o pior dos inimigos, o sol pode ser evitado com persianas e o frio com uma boa fogueira, mas a umidade insinua-se durante o sono, penetra no âmago de cada um.
A Constituição da Inglaterra foi alterada e ninguém se deu conta. Surgiram as mantas, as barbas cresceram, as calças passaram a ser cumpridas, nada mais permaneceu nu. O mofo cobriu-nos o espírito. Tentaram-se todos os subterfúgios para conseguir transmitir um pouco de calor aos sentimentos. Amor, nascimento e morte, tudo foi envolto nas mais belas frases.
O abismo entre os sexos cavou-se ainda mais. Deixaram-se de tolerar conversas abertas. Ambas as partes praticavam a arte da dissimulação. A vida das mulheres normais resumia-se a uma sucessão de partos. Casavam- se aos 14 e aos 30 tinham já 15 filhos…os gêmeos abundavam. E assim nasceu o império britânico. Não há como fazer parar a umidade. As galinhas não param de pôr ovos.
Meus primeiros poemas…1586, quando eu não passava de um rapazinho…há quase 300 anos…
Nada se alterou. A casa e o jardim estão exatamente no mesmo lugar.
Ando tão ansioso, agitado. Será a umidade? Sinto uma vibração. Que mundo é este que vivemos? Preciso descobrir algo novo em relação à raça que pertenço. Sou forçado a considerar o mais desesperado dos remédios, ou seja, submeter-me por completo ao espírito da época e arranjar um marido. A vida, um amante, não, a vida, um marido. Alguém já disse que para cada homem ou mulher existe um ser correspondente. Alguém que nos acompanha toda a vida, e em quem nos podemos apoiar, e para quem servimos de apoio…
Não, com o arquiduque não…ele casou-se com uma dama muito importante, e desde então não para de caçar lebres na Romênia…deve ser divertido! Não…Mr. M pertence ao catolicismo.
Enquanto isso, eu, a dona de tudo, não passo de uma solteirona, de uma criatura incompleta, só.
Sou a noiva da natureza…conheci muitos homens e mulheres e nunca os compreendi. Vou ficar aqui e as raízes desta árvore vão se enrolar a minha volta.

VOZ DE SHELMERDINE – Minha senhora, está ferida?

ORLANDO – Estou morta, meu senhor. Ficamos noivos alguns minutos mais tarde. Tínhamos adivinhado tudo em dois segundos como sempre acontece entre os amantes.
E agora restava esclarecer pormenores de pouca importância. Como era todo o nosso nome, onde morávamos, se éramos pedintes ou gente de posse. O espírito moderno quase tornou a linguagem dispensável. Todas as expressões servem.

(VOZ DO MORDOMO – FALA EM INGLÊS)

ORLANDO (LÊ) – Os processos judiciais contra a minha pessoa estavam encerrados… e quanto ao meu sexo foi considerado feminino, e não há qualquer dúvida a este respeito. As propriedades passam para o meu poder e ficarão na posse dos herdeiros nascidos do meu corpo. Que dia é hoje?

CASAMENTO DE ORLANDO – Ajoelhem-se, Marmadouk Von Tropp Shelmerdine e Lady Orlando.

ORLANDO – Só eu entrei em casa. O meu marido teve que viajar no dia do nosso casamento em torno do Cabo Horn. Agora reina o mais absoluto silêncio. Em 3 segundos e meio tudo se alterou, apaixonei-me e desposei Shelmerdine. Como prova o anel que tenho no dedo. Para ter algum valor, o anel tem que ser posto no quarto dedo da mão esquerda. De fato, agora que volto a raciocinar não paro de pensar nos efeitos do meu comportamento. Estou casada. Mas quando o marido de alguém está sempre viajando em torno do Cabo Horn, será isso um casamento? Tenho minhas dúvidas. Será que devo começar a escrever? Continuo a ser quem sempre fui. Isto tem que ser lido. Quero ir a Londres imediatamente.

(VOZ DO MORDOMO – EM INGLÊS)

VOZ DO BIÓGRAFO – Orlando ainda não tinha se dado conta da invenção da máquina a vapor.

ORLANDO – Cheguei a Londres em menos de meia hora.
Quanta gente e corpos com uma agilidade surpreendente. Todos esses homens e mulheres estão mergulhados em seus próprios problemas. E para onde eu vou?
Durante todos esses anos considerei a literatura algo indomável como o vento. As porcarias que se vendem agora nas livrarias! O meu livro chamado “O Carvalho”, que demorei mais de 300 anos escrevendo, foi composto pensando na verdade da natureza, nos ditames do coração humano, coisas que nestes dias caracterizados por uma excentricidade sem escrúpulos eram raros.
Fui visitar uma editora e me propuseram dez por cento numa tiragem de 2.000 exemplares. Quanto aos críticos, personagens bastante influentes e flutuantes. Depois, amizade com o editor…
No fim das contas, o que é a vida?
Que relação eu tenho com o meu marido que viaja tanto… mas sempre telegrafo para o navio onde ele está. E pensar que as obras completas de Shakespeare cabem em qualquer bolso…e eu que pude ver os seus manuscritos. Os livros agora ficam em prateleiras de vários tamanhos e cores. Mesmo os que não eram bons na minha época, agora estão na prateleira…Vida? Literatura? Fundir ambas as coisas? Mas isso é extremamente difícil.
Os homens de hoje são tão duros. Nunca poderei me comparar a eles em matéria de veneno. Como é que posso me transformar em crítica e escrever a melhor prosa inglesa destes tempos?
Agora basta um toque para iluminar uma sala. Pode se ver tudo que se passa dentro dessas pequenas caixas quadradas. Deixou de haver sombras e cantos mal iluminados. O céu fica claro toda noite. As ruas são claras. Como as mulheres se tornaram esguias nos últimos tempos. A água não demora mais de dois minutos para aquecer. Só que agora se sente uma distração, um desespero. Não se pode negar que os mais bem-sucedidos praticantes da arte de viver, a massa anônima, se adaptou a um sincronismo em qualquer sistema. 
Que dia é hoje?

VOZ DO BIÓGRAFO: São dez horas da manhã, 11 de Outubro de 1928…Sobrevivemos porque o passado nos ampara de um lado e o futuro do outro.

(LADY ORLANDO EM UM GRANDE MAGAZINE.
VOZES DAS ATENDENTES)

ORLANDO – A minha mente recuperou a ilusão de reter as coisas dentro de mim e, assim, eu posso ver a minha casa de campo. Orlando, é natural que alguém ao se ver só chame por si mesmo.
Isso significa: Vem, vem. Estou farta deste eu. Quero outro. Assim se explicam as mudanças espantosas que ocorrem nos nossos amigos. Mas não se trata de um processo fácil.
Nós sabemos as diferentes exigências dos nossos eus. Orlando não chegou. Não importa. Tenho bom humor, característico dos indivíduos que se encontram nestas situações. Quem eu busco agora?
Talvez o Orlando que eu mais precise permaneça oculto.
Adoro as árvores. Existem há milhares de anos. Gosto do campo. Entendo de colheitas.
Fama? Sete edições. Um prêmio.
Fotografias nos jornais…o certo é que quando falamos a respeito de uma mulher, tudo está fora do lugar.
Vou usar o meu dinheiro para comprar árvores que se encham de flores. E depois vou andar entre elas e contar ao meu filho qual o verdadeiro significado da fama.
Conheço esta casa há quatro séculos e parece que sempre a vejo diferente. Esta casa conhece todos os meus estados de espírito…e eu que não acreditava na imortalidade. Minha alma se movera para sempre. Isto aqui é um túnel fundo penetrando no passado, apesar do presente me dominar.
Essa árvore tem tantos séculos e continua no auge da força. As folhas ainda se agitam nos ramos.

ORLANDO – A noite que nunca deixei de amar. A noite durante a qual os reflexos do poço escuro da mente brilham ainda mais que de dia.
Meu marido, ousado e ridículo, sempre viajando inutilmente, enfrentando a tempestade em torno do Cabo Horn…mas como sempre acontece quando o vento amaina e quando as folhas douradas do outono caem devagar…quando nada se move entre o céu e a terra…é então quando o meu marido volta.

Picture of Roberto Cordovani

Roberto Cordovani

É ator, autor, adaptador, produtor e diretor teatral, paulistano. Reside na Europa desde 1985. Interpretou Eva Perón, Greta Garbo, Isadora Duncan, Dr. Jekyll e Mr. Hyde, Dorian Gray entre outros e recebeu prêmios internacionais, destacando-se: Melhor ator de Londres, Madrid, Santiago de Compostela e do Festival Internacional de Teatro de Edimburgo. Na TV Globo esteve como ator convidado na novela Novo Mundo interpretando o escravagista Sebastião Quirino.

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