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“Proust, que nos assombra!” – Por Paulo Gustavo



Desde que Proust morreu, em 1922, ele não tem cessado de “nascer” e (no bom sentido) nos assombrar. O reconhecimento de que desfrutou em seus últimos anos de vida, graças sobretudo ao Prêmio Goncourt de 1919, cresceu exponencialmente, ganhou o mundo, transformou-se em glória. Suas digitais estão na literatura moderna, diluídas em vasto número de epígonos e admiradores. Tudo isso é sabido, mas Proust parece nos dizer com inesgotável energia: “Avancem mais!”, irredutível a fórmulas e categorias, pois, como escreveu Roger Shattuck em seu “As ideias de Proust”, “Nenhuma teoria ou abordagem única tornará Proust fácil e rapidamente acessível a todas as mentes inquisidoras. A própria resistência de sua obra à simplificação e à análise constitui sua característica geral mais evidente”. Então, avancemos.

Italo Calvino terá sido um dos primeiros a ver uma outra característica proustiana que praticamente complementa a observação de Shattuck. Em “Seis propostas para o próximo milênio”, ao abordar a Multiplicidade em literatura, Calvino vai ao ponto ao chamar “Em busca do tempo perdido” de um “romance-enciclopédia”. Vale a pena citarmos o fragmento completo, já que o autor o entronca a um outro tema que é igualmente importante para compreendermos Proust:

Nem mesmo Proust consegue ver o fim de seu romance-enciclopédia, mas não decerto por falta de planejamento, dado que o projeto da “Recherche” nasce como um todo, princípio, fim e linhas gerais, mas porque a obra vai se adensando e se dilatando em seu interior por força de seu próprio sistema vital. A rede que concatena todas as coisas é também o tema de Proust […]

Eis por que Proust nos assombra: seu enciclopedismo e sua estrutura em rede, de par com sua reflexão analítica, poética e psico-analítica [sic], formam um monumento literário único, singular e inexcedível. Ele é desses autores que nos obrigam a uma convivência prolongada, vale dizer: a releituras. Ou seja, não basta ler os sete alentados volumes da “Recherche” (o mais longo romance já escrito), há que se considerar também uma certa intimidade com a obra para que, então, em todo o seu esplendor, ela nos ofereça as maravilhas que nem sempre aparecem numa única leitura. Não por acaso, muitos leitores, ao terminarem a “Recherche”, logo se sentem motivados a voltar ao começo, a reler o livro. Proust, costumo dizer, é autor ciumento e nos quer só para ele…

A complexidade e o enciclopedismo proustianos terminam por fazer com que cada um de nós encontre, como leitores, seu próprio Proust. Daí um de seus maiores especialistas, Jean-Yves Tadié, em “A catedral do tempo”, ter dito que é uma “obra que tem resposta para tudo”. Observação que soa um tanto exagerada. O certo é que, além de respostas, ela nos oferece grandes perguntas e verdadeiros desafios. Como quer que seja, pode-se sumariamente dizer que a “Recherche” é um misto de monólogo, conversa e confissão, capaz de nos fazer atravessar por vários gêneros textuais e por esferas de conhecimento e de vida tão diversas como a história social, a sexualidade, a psicologia e as artes, não descuidando de uma psicanálise “avant la lettre”, assim como da moral e da estética. Também por isso Proust nos assombra.

A escritora britânica Pamela Hansford Johnson, proustiana assumida, chegou à conclusão de que “Não há romance no mundo que transforme mais profundamente seus leitores do que a ‘Recherche’”. Tem razão. Proust, com sua sombra serena e ampla, sem embargo de suas ambivalências e perplexidades, proporciona-nos uma relação plástica com seu livro e com o mundo, como se nos ensinasse uma modelagem existencial sob o prisma heraclitiano de que tudo se move continuamente. Se não “responde a tudo”, como escreveu o Professor Tadié, ele, no mínimo, nos remodela, tocando em nossas profundezas. Esse sentido de profundidade psicológica foi bem entrevisto por Gilberto Freyre em seu livro autobiográfico “Tempo morto e outros tempos”: “Proust […] desce a criptas a que ninguém antes dele desceu. É no que se especializa: em ver o que se passa nessas sombras de intimidade humana […]”.

Vivo fosse, o escritor talvez ainda estivesse escrevendo e reescrevendo seu imenso livro. Vivo fosse, em 10 de julho próximo passado, Marcel Proust (1871–1922) teria completado 150 anos, o que faz deste ano, ainda pandêmico, um ano especial para seus estudiosos e leitores e, sobretudo, para seus devotos, pois também se diz que ele não tem apenas leitores, mas devotos! Fidelíssimos devotos, que o leem como se lessem uma bíblia pagã. Por sua vez, 2022 será igualmente um “prousti-ano”, uma vez que em 18 de novembro será celebrado o centenário de seu falecimento. Enfim, como já vêm ocorrendo, exposições, lançamentos editoriais, palestras, encenações e toda sorte de homenagens lhe serão prestadas ao redor do mundo. Assim, o próprio Tempo, que foi o seu mais visível tema e personagem, parece ressuscitá-lo em todos nós, leitores e pósteros, ainda assombrados com sua sensibilidade gigantesca e com o oceano de tantos mares que nos legou.

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Paulo Gustavo

poeta e ensaísta pernambucano, autor de “A tartaruga e a borboleta: um caminho para Proust” e de “Acordar para Proust: uma breve iniciação a ‘Em busca do tempo perdido’”.

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