Livro do diretor e pesquisador teatral Sérgio de Carvalho investiga a dramaturgia modernista de Antônio de Alcântara Machado, Oswald de Andrade e Mário de Andrade
Por Iná Camargo Costa*
Já se encontra em Aristóteles o aviso de que as classes dominantes nem sempre são humanas. E os críticos dos processos modernos de colonização (que incluem genocídio, escravização e devastação da natureza) verificam que as classes dominantes dessas regiões, agora designadas como burguesias, acrescentaram à sua desumanidade uma nova característica: nem ao menos se assumem como agentes de seus próprios malfeitos. O Brasil apresenta um sem-número de exemplos dessa covardia social e política. Ao demonstrar a impossibilidade de se produzir drama em nosso teatro moderno, este livro expõe no plano da cultura um dos efeitos de tal covardia, que também implica a persistência da eliminação do outro e o apagamento da memória de suas violências, inclusive as culturais.
Embora o autor, Sérgio de Carvalho, dispense apresentações, não é demais lembrar aqui algumas das referências de sua trajetória que explicam, pelo menos em parte, o valor e o alcance único deste trabalho. Adepto destemido do pensamento dialético; diretor da Companhia do Latão; há muitos anos pesquisador de todos os aspectos da obra de Brecht, reconhecido também na Alemanha por suas valiosas contribuições; e, finalmente, professor e pesquisador da área de dramaturgia e história do teatro há pelo menos vinte anos.
A essas referências, ainda se deve somar sua adesão ao que poderíamos chamar “espírito da formação”, para sintetizar uma linha de pesquisa da produção cultural brasileira que, inspirada em Mário de Andrade, foi inaugurada por Antonio Candido. Trata-se de examinar obras e textos críticos, além de documentos vários, em busca do que têm a dizer em seus acertos e erros sobre as mazelas dos nossos processos sociais. Nesta tradição dialética, os erros também são muito eloquentes e demandam exame.
Ficam, assim, sumariamente indicadas as razões do verdadeiro feito que é este livro. Interessado nas relações entre o movimento modernista e o teatro, o pesquisador Sérgio selecionou do material três figuras gigantescas que permitem caracterizar o desencontro entre suas exigências modernas e o nosso teatro desde sempre inapto para o drama, em parte por terem sido, eles mesmos, exemplos de “águias acorrentadas pelos pés”, como diria Vinicius de Moraes.
O processo social responsável por tais correntes foi exposto sem tergiversações. Em Alcântara Machado, temos um crítico em total desacordo com o que se produzia em nossa cena; Oswald de Andrade se revela um dramaturgo esquerdista demais para nossos padrões cênicos, mesmo os mais avançados; e Mário de Andrade produz uma épica que só foi levada à cena do Theatro Municipal exatamente cem anos após a Semana de Arte Moderna graças ao empenho, à paciência e à dedicação do próprio Sérgio de Carvalho, agora o diretor.
Nos três casos, as experiências de desencontro são muito instrutivas e dizem muito sobre nossos problemas com o teatro até hoje. A qualidade das análises, o alcance das digressões didáticas, a importância e a fertilidade de um trabalho como este demandariam horas de considerações. Para o momento, basta afirmá-las. Os leitores aqui encontrarão inspiração para muitas pesquisas que, se bem conduzidas e dando tempo ao tempo, nos permitirão algum dia dispor de uma verdadeira história social do teatro no Brasil. Pautado pelo prisma da causa dos trabalhadores, este capítulo sobre o Modernismo já está pronto e define um marco na pesquisa sobre teatro entre nós.
*Iná Camargo Costa é professora aposentada da Universidade de São Paulo (USP). Este texto foi originalmente publicado na orelha do livro.
O DRAMA IMPOSSÍVEL
SÉRGIO DE CARVALHO
Edições Sesc São Paulo
2023, 284 p.
16 cm x 22,7 cm x 1,3 cm
389 g
ISBN: 978-85-9493-245-7