I
COM MÃOS SUAVES
a concha antiga
era o gesto
com que escavei a terra escura
e tudo, todas as raízes
eram fios ao vento
tramas aéreas
para bordar um manto
para cobrir a cidade que dorme
Com mãos suaves
era terra bruta
o trigo negro
com que amassei o pão
cozido em vapor cinza
e carregado em fardos rudes
na sombra da terra úmida
para alimentar a flor que ainda não
para derramar sementes
para destecer vãos
e um brilho de sol
acordar a cidade
II
AS NOITES
Longas para tecer
Os dias longos para
Destecer as noites
Debruçada sobre a janela
O mar lhe envia sons
O mar lhe abriga
Água
Grande mãe ancestral
Ela abre as mãos
Segura a concha
Leva a concha ao ouvido
O mar _ antigo e velho sussurra
Ela fecha as mãos
Como conchas
Para segurar o fogo
Para mantê-lo
Aceso
Pois as noites serão escuras
As noites e suas mãos
Seu mar
Como mãe
Tecendo um futuro
Que se faz
E se desfaz
III
DOIS PÁSSAROS COMO CRUZES em
Revoada na velha fotografia
Um branco
Um negro
Dois pássaros
Uma orquídea derrama seus
Bulbos
Serpentes
Sinuosas raízes ancestrais de
Um mar imaginário
Algas
Atrás das velhas paredes
E apenas um peixe translúcido
Dois pássaros são
Uma mulher e
Um homem
A rezar com
Seus pés mergulhados
Sobrevoando
Esse mar imaginário
Seus pés sustentando
Nossa casa
Suspensa por um
Tempo que há
De vir para
voar
Jussara Salazar
escritora e artista visual. Publicou Inscritos da casa de Alice [1999], Baobá, poemas de Leticia Volpi, [2002], Natália [2004], Coraurissonoros [Buenos Aires, 2008], Carpideiras [2011] com a Bolsa Funarte.