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Douglas Diegues conversa com Antonio Risério sobre “Outrossim”



“Outrossim”, o novo livro de Antonio Risério, colige sua produção poética de 1974 a 2020. Transitando entre o verbal e o visual, Risério vai fundo, mescla línguas, experimenta com amor & humor, não decepciona os leitores comuns e nem os mais exigentes. Conforme anota Arnaldo Antunes na apresentação: “O termômetro de Antonio Risério não tem meio termo”. Recentemente o poeta e editor Douglas Diegues conversou com Risério sobre línguas, poesia, letra de música, ritmo e orikís. O pretexto para essa conversa via e-mail foi o livro “Outrossim”, que acaba de ser publicado pela Editora de los Bugres.


Douglas Diegues:  Guimarães Rosa dizia que o português brasileiro era mais rico do que o português de Portugal, porque havia incorporado contribuições das línguas indígenas e africanas, principalmente, mas também de outras línguas, o que possibilitava (a ele, Rosa) um leque maior de expressividade. Ele  chega a afirmar que o português de Portugal era uma língua esclerosada. Como você percebe essas afirmações de Guimarães Rosa e as diferenças entre o português do Brasil e o de Portugal?

Antonio Risério: Não sei o contexto em que Rosa disse essas coisas, mas concordo e desconcordo. É muito provável que, em sua dimensão referencial, o português brasileiro seja mesmo mais rico do que o lusitano. E aqui, obviamente, por causa do influxo de sistemas linguísticos ameríndios e africanos. Basta pensar numa palavra como “bunda”, por exemplo. Não é cu, não é nádegas, não é a “fesse” dos franceses, não é fenda. É um conceito banto que fala de uma inteireza inteira. De uma entidade carnal completa. E não existe esse conceito no português lusitano. Falamos muitas palavras indígenas e muitas palavras africanas – e isso em todas as classes sociais. Enquanto portugueses e angolanos falam “benjamim”, por exemplo, nós dizemos uma palavra banta, “caçula”, para designar o rebento mais novo da ninhada. Mas essa visão do dialeto lusitano como língua esclerosada e do dialeto brasileiro como coisa nova e viçosa, defendida primeiramente por José de Alencar em sua pregação romântica do nacionalismo linguístico, não me convence. A autonomia política do Brasil, conquistada em 1822, atiçou também um projeto, que lhe seria correspondente, de autonomia linguística. Mais tarde, nas décadas de 1860-1870, a conversa voltou à tona. Era o nativismo linguístico tentando, mais uma vez, nos desvincular da matriz lusitana. E Alencar, que era leitor de Max Müller, talvez o maior linguista da época, entrou nessa. Mas indo além: achava que a língua portuguesa, enraizando-se nos trópicos, teria de dar nascimento, necessariamente, a “um novo idioma sonoro, exuberante e vigoroso”. Mário de Andrade também flertou com isso. Mas tudo não passou de desejo, fantasia. Além disso, os brasileiros falam e escrevem de um modo cada vez pior e muito pobre. Configurou-se aqui uma variante flexível, plástica, altamente criativa, mestiça sobretudo, da língua portuguesa. Ao mesmo tempo, um preto ou um mulato de educação apenas mediana, no Cabo Verde, tem um domínio do português que é superior ao da média dos nossos jornalistas, por exemplo. Me sinto mais próximo de Rosa no campo do barroco e não em qualquer nacionalismo linguístico. É quando ele fala do seu amor pela palavra rara, pouco gasta. Do “ileso gume” do vocábulo pouco pronunciado, “melhor fora se jamais dito”. Isso, esteticamente, me seduz – e muito.

DD: Você também é autor de letras de música. Como percebe as relações entre letra de música e poema? Para os trovadores provençais não havia diferenças entre motz el son, palavra e melodia eram uma coisa só. Muitas letras, como as de Caetano, Leminski, Itamar Assumpção, Arnaldo Antunes, as tuas e muitas letras que estão no teu livro “Carnaval Ijexá”, se sustentam no papel, podem ser lidas também como poemas. Há distinções para você entre fazer poema para livro e fazer letra para canção?

AR: A diferença é enorme. Claro que você pode musicar qualquer texto. Caetano musicou admiravelmente uma passagem do “Minha Formação” de Joaquim Nabuco. Mas prosa é prosa, poema escrito é poema escrito, poema falado é poema falado, letra de música é letra de música – e a verdade é que cada palavra (escrita, falada, cantada) tem a sua poesia, a sua especificidade no plano da dimensão estética da linguagem. Não importa que certas “lyrics” se sustentem no papel – cantadas, elas se transfiguram. A palavra escrita existe num espaço visual, a palavra cantada existe num espaço sonoro. Veja bem a diferença num exemplo. Quando Jorge Ben canta “Xica da Silva”. Tem um ritmo maravilhoso a repetição do nome da mulher no espaço sonoro, mas fica apenas chinfrin se for escrito: “chica da, chica da, chica da silva”. Escrita no papel, é uma bobagem. Mas, quando cantada, com uma sonoridade marcante, xikadá-xikadá-xikadá, aparece com um tremendo vigor rítmico, uma coisa energética mesmo. E há muitas outras diferenças. A palavra, plantada no espaço gráfico, é como um monumento, um tótem, um obelisco. Acho que foi Octavio Paz quem usou essa imagen do obelisco. Já a palavra cantada, como dizia Joyce, é palavra voando. A palavra ondula no espaço-tempo sonoro, tem outro tipo ou modo de vida. Aliás, na “Odisseia”, há uma expressão recorrente, que se aplica bem ao caso: palavras aladas.

DD: Em alguns poemas de OUTROSSIM podemos ler palavras iorubás e tupi-guaranis, também palavras de outros idiomas. Uma das bases da tua poesia parece ser o procedimento de mesclar línguas estrangeiras ao teu português brasileiro. Você também organizou “Oriki Orixá”, relevante estudo sobre poética iorubá acompanhado de excelentes traduções. Qual a importância do oriki, da poética e das línguas africanas para a tua poesia e tuas letras?

AR: Vou lhe dizer uma coisa: eu não costumo pensar sobre a poesia que produzo. Não que eu ache que isso não seja importante. É – e muito. Basta pensar em Poe, Eliot, Pound ou Maiakóvski pensando sobre a práxis poética em geral e sobre seus fazeres particulares. É maravilhoso, fundamental. Mas eu não ando muito por aí. Costumo dizer, meio caricaturalmente talvez, que deixo a reflexão, o desempenho metalinguístico, o raciocínio objetivo para meus ensaios. Mas, quando pinta um poema, deixo ele acontecer. Não me organizo intelectualmente em função daquilo. Então, as coisas acontecem. E tudo que conheço e vou conhecendo (línguas, povos, formas e gêneros de poesia, etc., etc.), desde que passe a fazer parte da minha personalidade, passará então inevitavelmente a fazer parte do meu fazer poético.

DD: OUTROSSIM colige a tua produção no campo da poesia de vanguarda brasileira até o presente. Mas, em vez de reunir livro por livro, cronologicamente, você optou por reunir todos os poemas de todos os livros já publicados, de maneira sincrônica, num novo livro. Quais livros publicou anteriormente? Como organizou este novo livro a partir dos teus livros publicados entre 1974 e 2020?

AR: Publiquei dois livros de poemas: “Fetiche” e “Brasibraseiro” – este, em parceria com o poeta Frederico Barbosa. Houve uma publicação anterior, um livrinho chamado “A Banda do Companheiro Mágico”, com poemas e letras de música. Mas não posso considerar aquilo como um livro meu, por mais simpática que tenha sido a iniciativa. Foi um presente que meu pai e o poeta André Luyz Sã’tos me deram. Meu pai bancou e André montou e produziu. Botou até meu nome no projeto gráfico, porque dei algum palpite. Mas a verdade é que eu não publicaria um livro com meu retrato na capa, nem com aquelas pirotecnias gráficas. Por isso mesmo, dei esse título, “A Banda do Companheiro Mágico” (lindo nome de uma banda de rock-jazz da Bahia de minha adolescência), a um livro que realmente fiz, uma novela infanto-juvenil, publicada pela Publifolha. Então, em OUTROSSIM, há poemas de “Fetiche” e de “Brasibraseiro”, além de poemas que andavam dispersos em diversas publicações e poemas inéditos. A ordem que dei aos poemas não tem nada de muito racional, apenas coloquei os textos de modo que a leitura venha a ser uma coisa agradável ou atrativa, na medida do possível.

DD: O que você pode nos dizer sobre a questão da originalidade no campo da literatura e da poesia em geral? Existem teorias contra a originalidade… O que você pensa da originalidade? Ou a originalidade é, como dizem alguns, uma grande bobagem?

AR: A busca da originalidade é uma constante histórica e antropológica do fazer poético planetário. Existe em todas as épocas e em todas as culturas, que eu saiba – menos no “reggae” da Jamaica, que é sempre a mesma coisa…  Miri-pitã, “desejado pelas gentes”, é como os arawetés da Amazônia se referem a um canto xamânico original, segundo o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. A novidade é também prezada pelos iorubás. Num canto ìjálá, gênero poético-musical dedicado a Ogum, ouvimos: “Àrà l’emi ‘n f’Ògún-ún dá”. Linha-verso em que o poeta declara que Ogum cria inovações com ele: “o novo é meu jogo com Ogum”. Sempre encontramos, também na história da criação estética ocidental, artistas que buscam e celebram o novo e que realizaram alguma espécie de ruptura com os cânones em vigor. Dante era um homem medieval que, ao mesmo tempo, apontava já para o Renascimento, construindo a língua literária italiana. Giotto investiu na “tridimensionalidade” e explorou uma nova relação entre o espectador e o quadro, situando a cena retratada no nível do olhar de quem a contempla. Bach, no primeiro movimento do “Concerto de Brandenburgo no. 5”, faz o cravo se descolar do grupo de solistas e seguir sem qualquer acompanhamento por algumas dezenas de compassos, criando assim o primeiro concerto escrito para teclado de que se tem notícia. Na modernidade ocidental, também vamos ter o caso específico das vanguardas, onde a procura do novo, da originalidade, se torna programática e mesmo obsessiva, chegando a ser critério de valor, o que já é um exagero. Então, isso para mim não pode ser reduzido a uma polarização: de um lado, a originalidade seria tudo; de outro, seria uma bobagem. Essa polarização é que é uma bobagem. Perde tempo quem anda obsessivamente atrás de ser sempre original, porque a originalidade não é fruto de nenhum voluntarismo. São as circunstâncias que a atiçam e a tornam possível. Do mesmo modo, recusar a originalidade é outra perda de tempo: apenas revela inapetência, falta de tesão criativo, de relâmpagos na floresta encantada da linguagem.

DD: Existiram poetas cangaçeiros no sertão brasileiro, como Zabelê, mencionado por você em um documentário na TV Cultura. Lampião também fazia versos. Quais são os outros poetas cangaçeiros? Parece que os ritmos poéticos cangaceiros influenciaram Luiz Gonzaga. O que você pode comentar sobre o tema poesia e cangaço no sertão do Brasil?

AR: O padre Maciel, grande conhecedor do cangaço, sublinhava os dons estéticos de Lampião, que era poeta, sanfoneiro e artesão, trabalhando com couro. Sua formação poética aconteceu entre versões nordestinas das proezas de Carlos Magno, narrativas orais sobre cangaceiros famosos, aventuras romanceadas por cantadores, em folhetos de cordel. Lampião curtiu cordel desde a infância. O que temos dele são fragmentos de um poema autobiográfico. Cito um trecho: “Quando me lembro, senhores,/ Do meu tempo de inocente/ Que brincava nos cerrados/ Do meu sertão sorridente,/ Sinto que meu coração/ Magoado desta paixão/ Bate e chora amargamente”. A forma estrófica é tradicional (sete versos de sete sílabas, ascendentes o quinto e o sexto, para a resolução da estrofe no último verso-pé), assim como o esquema rímico. E a aliteração cerrado-sertão-sorridente é o fino. Mas Lampião ainda não tinha finalizado o poema, ainda estava compondo, tanto que ora escreve sextilhas em redondilhas maiores, rimando nos versos pares, ora adota outros andamentos e outras formas estróficas. De um modo geral, a poesia do cangaço tem, como traços marcantes, o frescor da criação e a concretude referencial. Lembre-se uma quadrinha de “Muié Rendeira”, que se refere a um cabra de Lampião, Cocada, provável galã do grupo: “Quando vejo rapa-coco/ Só me lembro de Cocada/ Onde tem moça bonita/ As feia num vale nada”. Não é uma poesia produzida solitariamente com vistas a um público receptor externo. Mas uma poesia produzida e consumida no interior de um grupo social reduzido e marginalizado, referindo-se sempre a um repertório comum de experiências. Costumo exemplificar com as quadrinhas compostas durante um ataque à cidade pernambucana de Belmonte, quando os cangaceiros foram matar o prefeito local, em resposta a uma surra que ele mandara dar no fazendeiro Ioiô Maroto. O bando entrou na cidade às 4 da manhã, cantando uma composição que mantinha o tradicional refrão lampiônico (é Lamp, é Lamp, é Lamp…), mas incorporando quadras alusivas ao que começava a se desenrolar. Como o trecho seguinte, referindo-se ao fazendeiro que apanhou, ao tenente que deu a surra e ao prefeito que mandou bater: “Ioiô foi desfeitado/ Nós prometemo vingar/ Pontenegro deu a surra/ Gonzaga é quem vai pagar”. A cidade entrou em pânico, claro. O prefeito tentou se refugiar no sótão de sua casa, mas despencou de lá, caindo de cabeça no chão – e morreu. Resolvido o caso, a turma se retirou de Belmonte, cantando já uma nova quadrinha, relativa à vitória (sem disparar um tiro) de Lampião. Ora, o que se deve dizer é que a canção foi a principal arma do ataque. Não foi uma canção sobre o cangaço. Mas, em si mesma, uma canção cangaceira.

DD: Os teus poemas têm ritmo, rima, swing. “O que conta é a embolada” é um verso de um poema que está em OUTROSSIM. Maiakovski falava da importância do ritmo para a poesia, de um certo ritmo próprio, antes e depois dos tratados de versificação. Qual a importância do ritmo para tua poesia? E o que você acha do verso? O que seria um bom verso? O verso está morto? O verso está fora de moda? E a rima, como dizem, é mesmo coisa do passado?

AR: Penso que o ritmo é fundamental, quando possível. Mas não faço disso nenhum princípio. Posso compor poemas visuais (ou intersemióticos) com uma ou duas palavras, em cuja construção posso pensar até em ritmo geométrico, por exemplo, mas não em ritmo verbal, em prosódia, etc. Assim como às vezes o que faço é prosa, apenas com linhas cortadas, que era uma coisa que Ezra Pound abominava. Quanto ao verso e à rima, nenhum dos dois está morto: costumo encontrá-los aqui e ali, com alguma frequência. E acho que não é preciso abrir mão de nenhum dos recursos de um repertório poético milenar, nem mesmo do expediente dos epítetos, que encontramos tanto em Homero quanto nos orikis nagô-iorubás. Os concretistas falaram em morte do verso, em fim do “ciclo histórico” do verso, e eu entendo perfeitamente. Era a vanguarda em ação, buscando construir uma poesia radicalmente “ideogramática”, que ficava aquém ou além do verso e da frase. E algumas peças notáveis foram produzidas na pauta dessa “matemática da composição”, como o poema “velocidade” de Ronaldo Azeredo. Mas era, repito, uma postura de vanguarda, uma coisa datada, que hoje incorporamos ao largo arsenal onde também está o verso. A vanguarda tem de demarcar terreno, criar um “marco zero”, essas coisas. Daí que pense ou seja obrigada a pensar em coisas como “evolução” de formas. Décio Pignatari chegou a alimentar uma fantasia “funcionalista”, a falar do poema como objeto útil, no rastro de sua crença (de base marxista) de que a máquina ensinaria racionalidade ao operário. Também Caetano, ao formular o tropicalismo, falou em “linha evolutiva” da música brasileira, que deveria ser retomada a partir de João Gilberto. A gente entende, vê a quase necessidade desse tipo de discurso – e tudo bem, já que produziram frutos viçosos e vigorosos, tanto no concretismo quanto no tropicalismo. Mas é claro que não existe exatamente “evolução” alguma, nenhuma linearidade (o próprio tropicalismo não deixa de ser um exemplo disso, porque, vindo depois do concretismo, se situa mais propriamente num campo anterior a este, no sentido de que está bem mais próximo das vanguardas históricas do começo do século XX, do anarco-romantismo dadaísta, por exemplo, do que das “neovanguardas” de que fala Edoardo Sanguinetti, do grupo laboratorial com seu experimentalismo sistemático). É verdade que há coisas que evoluem. Um barco, por exemplo, é um objeto aperfeiçoável, em termos de potência do motor, velocidade, etc. Mas um aforismo filosófico ou um poema não são objetos aperfeiçoáveis: Nietzsche não é um aperfeiçoamento de Heráclito, nem Eliot é um aperfeiçoamento de Dante… Quanto ao final de sua pergunta, sobre o que é um bom verso, penso o seguinte. Um bom verso é aquele que se grava na memória da pessoa como estrutura, com seu desenho, sua Gestalt. Valéry dizia isso: o poema é memorável, no sentido de que tende a se fixar na memória como Gestalt, como forma ou estrutura semiótica, e não como “conteúdo” destacável do arranjo dos seus signos. Poesia é linguagem esteticamente artificializada. Linguagem formalizada. E o poeta é uma espécie de coreógrafo da dança das palavras.

Três poemas extraídos do livro “Outrossim”


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Antonio Risério

nasceu na Cidade do Salvador da Bahia de todos os santos no mês de novembro do ano da graça de 1953. Poeta, tradutor, antropólogo e romancista, com uma atividade cultural múltipla e diversa, tem uma série de livros publicados, viajando por mares variados, da história à arquitetura, da política à sociologia, da estética à semiótica, do urbanismo à música.

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Douglas Diegues

(1965) nació del amor de una madre paraguaya y un padre brasileño en Río de Janeiro, pero vivió la infancia y parte de la adolescencia en las fronteras desconocidas de Brasil con Paraguay.

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