E tu serás um ermo novamente
O, thou wilt be a wilderness again
Henry IV
I.
E tu serás um ermo novamente.
E os lobos correrão por tuas ruas
Purificadas de sentido e gente.
E o orvalho gelará as pedras nuas
De tuas portentosas catedrais.
E a palidez de sucessivas luas
Borrará o perfil dos ancestrais
Na fachada dos templos desgastados
Pelo vítreo clarão dos temporais.
E nos velhos caminhos congelados
Irá o derradeiro viajante
Com grandes olhos baços e parados
Como um deus desnorteado e cambaleante,
Insensível ao frio, ao medo, à fome.
E se erguerá, funesta e fulgurante,
A última manhã do último homem.
E tu, tu arderás no vento norte,
E mais ninguém recordará teu nome
E ninguém temerá o azar e a sorte.
E o falcão solitário nas alturas
Equânime olhará a vida e a morte
Irmanadas enfim sobre as planuras
Onde outrora te ergueste, altiva e insciente.
E nas noites brilhantemente escuras
Vagará um fogo frio e evanescente:
E tu serás um ermo novamente.
Quando eu morrer ¹
Os deuses dão a sombra e a luz. A sombra brilha,
E o coração da luz esconde um claro-escuro.
O mal vive no bem. Não há remédio, filha:
Tu chorarás por mim nas noites do futuro.
O que nos cabe aqui é a triste maravilha.
Nada é somente suave, ou acre, ou doce, ou bruto.
Tudo fere, e eu também vou te ferir. Oh, filha,
Tu chorarás por mim nas noites do futuro.
Mas é nossa missão cair nessa armadilha,
E o que passou persiste em seu estado puro.
Não vou morrer quando eu morrer. Pois, minha filha,
Tu chorarás por mim nas noites do futuro.
Tento saber quem sou, e a noite é vasta ²
Tento saber quem sou, e a noite é vasta
Ante os meus olhos foscos e salgados:
A sombra sabe aonde eu vou, e basta.
A memória é neblina que se afasta
Enquanto, nos umbrais sombrios, alçado,
Tento saber quem sou, e a noite é vasta.
Mas pulsa algo distante, que me arrasta,
E, nesse antigo dédalo espelhado,
A sombra sabe aonde eu vou, e basta.
O tempo é tempestade que desbasta
A flor do espaço, e sob o céu rajado
Tento saber quem sou, e a noite é vasta.
Aquilo que te impele te devasta,
E, enquanto arde o futuro no passado,
A sombra sabe aonde eu vou, e basta.
Há no Mundo uma Porta, estranha e gasta,
Porém eterna. Eu passo. E do outro lado?
Tento saber quem sou e a noite é vasta:
A sombra sabe aonde eu vou. E basta.
[1] Poema publicado no livro “E tu serás um ermo novamente” (Patuá, 2021).
[2] Poema inédito.
José Francisco Botelho
nasceu em Bagé, em 1980. É jornalista, escritor, tradutor, crítico de literatura e cinema, havendo colaborado com diversos veículos de circulação nacional.