Pesquisar
Close this search box.

Poemas de Arthur Sze – Tradução de Júlio Bonatti

Antes de ser poeta, Arthur Sze tinha quase tudo para ser um cientista formado pelo Massachusetts Institute of Technology. Porém, ainda como universitário, descobriu-se poeta e trocou o exercício da matemática pelo da poesia, abandonando sua carreira para seguir a mais curiosa das profissões humanas, diria o poeta Jorge Luis Borges. O poeta Arthur Sze, todavia, encontrou na linguagem científica uma constelação fértil para a materialização poética em suas criações que é expressiva pelo conhecimento da física, química, botânica e, mais evidentemente, pelo da chamada ecopoesia. Mesmo sendo incapaz de capturar todos os instantes – uma alegoria própria da vida moderna, como a arte abstrata evidencia, ou como a découpage do cinema revela -, a poética condensada de Arthur Sze envolve o leitor por meio do exercício em que prevalece o arguto olhar daquilo que é aparentemente estilhaçado. A poesia que recorre a uma carta escrita por uma mão trêmula no decorrer da vida; ou um abismo entre um vaso de flor visto pelo poeta e o nascer da Terra visto pela lente fotográfica de um astronauta numa missão à Lua. Essas temáticas, oriundas da vida contemporânea, encontram ressonância na teoria da relatividade e na geometria dos fractais, onde o “eu”, partindo de espaços domésticos, explora os recônditos do universo. E tudo o que era inicialmente desordem pessoal, com afinidade das paisagens arenosas ou fluviais do Novo México, irradia nos andaimes da linguagem como quem procura a sua própria constelação. Poderíamos dizer que a onisciência na poética de Sze encontra respaldo na fenomenologia, onde o pensamento interroga o próprio ato de pensar e a sua percepção, numa sociedade cada vez mais enquadrada no brete dos algoritmos. Como não basta a materialidade das ciências modernas e contemporâneas na composição temática, estão nos poemas as estações do ano com recorrências claras da poesia oriental, combinadas com cadência rítmica. Os procedimentos inventivos e as experiências que lhes são familiares como pesquisador e tradutor da poesia chinesa o converte em exímio poeta. Há muitas constelações e leituras para a poesia de Arthur Sze. O primeiro livro do autor a ser publicado em língua portuguesa, Linhas Horizontes (Sight Lines), ganha excelente tradução pelas mãos do especialista e pesquisador de língua inglesa Júlio Bonatti. Esperamos que a tradução seja no intercâmbio da linguagem e dos afetos o primeiro passo de um diálogo e de um projeto de publicação deste que é um dos mais consistentes poetas estadunidenses vivos, a quem agradecemos pelos diálogos sempre generosos.

 

Luis Marcio Silva,
editor da revista Piparote

CLARÃO

Cogumelos do mel reluzem no escuro;
empapado em suor, um jornalista se desperta

com uma bomba que explode na rua; quando,
diante de uma padaria, uma mulher se oferece

para lavar o vidro do seu carro, você lhe dá
uma moeda, mas será que isso basta?

Sementes de álamo que volteiam no ar;
em Medellín, seu anfitrião faz um convite

para que comam em sua casa; você toma
uma sopa de batatas com coentro, repara

em uma porta que sai para um quintal privado
com uma rede debaixo de uma mangueira,

o lugar como um refúgio entre paredes
crivadas de balas; uma baleia narval atira

com a sua presa um bloco de gelo no ar;
ele se dissipa: clarão: como viver,

aonde ir: no quintal, você ouve
uma serra rasgando um pedaço de madeira.

 

WHITEOUT

Honey mushrooms glow in the dark;
in a sweat, a journalist wakes

to a roadside bomb; when a woman
outside a bakery offers to wash

your car windshield, you give her
some cash, and what will suffice?

Cottonwood seeds swirl in the air;
in Medellín, your host invites you

to lunch at his house; you sip
potato and cilantro soup, glance

at a door open to an enclosed yard
with a hammock and mango tree,

the space a refuge inside bullet-
pocked walls. A narwhal pokes

its tusk through ice into the air;
it exhales: whiteout: how to live,

where to go
: in the yard, you hear
a circular saw rip the length of a plank.

TRANSPIRAÇÕES

Folhagens de uma ameixeira no quintal—
rastros de água em uma camada de gelo que se desfaz—
a algazarra das pegas quando a gente se aproxima—
lilases que se inclinam pelo caminho, carregados de flores púrpuras—
o sol do meio-dia resplandece a relva—
e se aproveita o ritmo do verão—
aroma de pinhão crepitando na lareira—
notas azuladas de um saxofone que pairam no ar—
já não pela areia que escorre através da ampulheta, mas por nossos corpos ígneos—
que passam feito vapores de um ser cheio de vida—
este mundo de alaranjada luz solar e fumaças de incêndio—
mundo de limalhas de ferro atraídas pelos polos magnéticos sul e norte—
uma poça de mercúrio quando você se agacha para amarrar o sapato—
de pé, você se ergue com os olhos brilhantes —
você levou a vida com todo o cuidado?—
você expressou seus sentimentos como as extremidades das folhas? —
amoldando seu fôlego como as plantas na cadência das estações—
a contemplar um lago em um deserto de sal e bebendo, no seu reflexo, a Via Láctea—

TRANSPIRATIONS

Leafing branches of a backyard plum—
branches of water on a dissolving ice sheet—
chatter of magpies when you approach—
lilacs lean over the road, weighted with purple blossoms—
then the noon sun shimmers the grasses—
you ride the surge into summer—
smell of piñon crackling in the fireplace—
blued notes of a saxophone in the air—
not by sand running through an hourglass but by our bodies igniting—
passing in the form of vapors from a living body—
this world of orange sunlight and wildfire haze—
world of iron filings pulled toward magnetic south and north—
pool of quicksilver when you bend to tie your shoes—
standing, you well up with glistening eyes—
have you lived with utmost care?—
have you articulated emotions like the edges of leaves?—
adjusting your breath to the seasonal rhythm of grasses—
gazing into a lake on a salt flat and drinking, in reflection, the Milky Way—

NASCER DA TERRA

Uma flor rosa de primavera que se amplia
             em um vaso esmaltado, à beira de uma piscina;

muito além dos telhados lá embaixo, as ondas
             se quebram nas rochas vulcânicas; oscilam no ar

copas de palmeiras. Numa furna aberta, garimpeiros
             cavam entre a lama e a faina em busca de ouro;

quando um deles encontra uma pepita, logo o capataz
             a toma; jamais veremos o fim de toda sujeira

e a exploração criadas por um pedaço de terra?
             De sua cadeira de rodas, um homem de oitenta anos

exclama: “Vá lá e acerte-os com força.”
             Acertar quem com força? Do alto, uma faixa costeira

repleta de campos de golfe e bancos de areia,
             a crista alva da rebentação, uma floresta nublada,

cinco vulcões emergindo do oceano, uma ilha
             que devagar se esvai, o nascer da terra visto da lua.

EARTHRISE

Zoom in to pink bougainvillea in an iron-
             glazed pot, along the edge of a still pool;

beyond tiled roofs below, surf crashes
             against black lava rock; palm fronds

ripple in the air. Miners in an open pit
             slog through sludge, panning for gold;

when they find a nugget, a foreman
             seizes it; is there no end to mire

and exploitation from a patch of ground?
             In a wheelchair, an eighty-year-old man

proclaims, “Go in and hit them hard.”
             Hit who hard? From the air, a coastline

dotted with golf courses and sand traps,
             white-capping surf, a cloud forest,

five volcanoes rising out of the ocean,
             a shrinking island, earthrise from the moon.

CHAMA DA MEIA-NOITE

À meia-noite, ele não é capaz
             de enxergar as cercas brancas,
                          nem os tomateiros, murchos,

no jardim, porém
             ele conhece o terreno,
                          coberto de folhas de salgueiro,

plumas de capins crescidos,
             aprumados e serenos;
                          e, à medida que perscruta o pátio,

ele sente o momento
             que se consome em brasas –
                          caminhando riacho acima

eles voltam o olhar
             e contemplam o Vale Pojoaque,
                          admirados com os brilhantes tetos de zinco,

o desfolhar dos álamos
             ao longo das curvas do rio –
                          uma maré verde

irrompe em suas artérias
             tal como árvores; esta noite,
                          a primavera se verte em outono,

e o pavio da memória
             a cera derretida da experiência
                          em chama transforma.

MIDNIGHT FLAME

At midnight, he can’t see
             the white picket fence
                           or the tomato stalks, shriveled,

in the garden, though
             he knows the patio,
                           strewn with willow leaves,

plumes of tall grasses,
             upright and still;
                           and, as he peers into the yard,

he senses a moment
             wicking into flame—
                           walking up an arroyo,

they gaze back
             across the Pojoaque valley,
                           spot the glinting tin roofs,

cottonwoods leafing
             along the curves of the river—
                           a green tide

surges in their arteries
             as well as the trees;
                           tonight, spring infuses fall,

and memory’s wick
             draws the liquefied
                           wax of experience up into flame.

TRANSFIGURAÇÕES

Ainda que você e eu não tenhamos visto pistácias florescendo
nos Jardins Suspensos da Babilônia, mesmo que nós dois
não pudemos ver o Rio Tigre manchado de tinta e tampouco
nunca testemunhamos a casca de um pistache se rompendo,
já estivemos juntos com um panda nos braços enquanto ele
mastigava folhas de bambu, e reconheço aquele ruído agora.
Eu me despertei ao seu lado e inalei em seus cabelos
os raios de sol de agosto. Ouvi o movimento dos seus pulmões
que se abriam qual pergaminhos—um círculo de golfinhos
rompendo a superfície entre as cristas das ondas; aqui, anos após
havermos lido o I Ching e interpretado os milefólios,
demarco as distintas tonalidades que se dissipam a ocidente,
enquanto o céu brilha por sobre os salgueiros suspensos.
O panda se agita à medida que bota outro graveto na boca.
Adentramos uma clareira tomada de chanterelles; e, ainda
que seja este um lugar que se retrai ofuscado pelo cotidiano, aqui
está a âncora que lanço nas profundezas de águas verdejantes. Encaro
fixamente as manchas negras que contornam os olhos do panda;
como pôde evoluir de um carnívoro para um devorador de bambu?
Tantas transfigurações que jamais vou compreender.
O intervalo de nossas vidas é algo que se acende e depois se apaga,
acende e apaga—uma mulher captura vagalumes em um pomar
manejando uma rede. Pego um pistache semiaberto de uma vasilha
e o quebro: um requinte Assírio que se transborda pelo
leque aluvial dos raios de sol. Leio no pergaminho
do seu sopro a primavera em outono; e, embora você e eu
não vimos a Muralha da China sendo erguida,
com os inigualáveis contornos deste respirar eu me levanto.

TRANSFIGURATIONS

Though neither you nor I saw flowering pistachio trees
in the Hanging Gardens of Babylon, though neither
you nor I saw the Tigris River stained with ink,
though we never heard a pistachio shell dehisce,
we have taken turns holding a panda as it munched
on bamboo leaves, and I know that rustle now.
I have awakened beside you and inhaled August
sunlight in your hair. I’ve listened to the scroll
and unscroll of your breath—dolphins arc along
the surface between white-capped waves; here,
years after we sifted yarrow and read from the Book
of Changes, I mark the dissolving hues in the west
as the sky brightens above overhanging willows.
The panda fidgets as it pushes a stalk farther
into its mouth. We step into a clearing with budding
chanterelles; and, though this space shrinks and
is obscured in the traffic of a day, here is the anchor
I drop into the depths of teal water. I gaze deeply
at the panda’s black patches around its eyes;
how did it evolve from carnivore to eater of bamboo?
So many transfigurations I will never fathom.
The arc of our lives is a brightening then dimming,
brightening then dimming—a woman catches
fireflies in an orchard with the swish of a net.
I pick an open-mouthed pistachio from a bowl
and crack it apart: a hint of Assyria spills
into the alluvial fan of sunlight. I read spring in
autumn in the scroll of your breath; though
neither you nor I saw the completion of the Great Wall,
I wake to the unrepeatable contour of this breath.

ADAMANT

Deer browse at sunrise in an apple orchard,
while honey locust leaves litter the walk.
A neighbor hears gunshots in the bosque

and wonders who’s firing at close range;
I spot bear prints near the Pojoaque River
but see no sign of the reported mountain lion.

As chlorophyll slips into the roots of a cottonwood
and the leaves burst into yellow gold, I wonder,
where’s our mortal flare? You can travel

to where the Tigris and Euphrates flow together
and admire the inventions of people living
on floating islands of reeds; you can travel

along an archipelago and hike among volcanic
pools steaming with water and sulfuric acid;
but you can’t change the eventual, adamant body.

Though death might not come like a curare-
dipped dart blown out of a tube or slam
at you like surf breaking over black lava rock,

it will come, it
will come, and it unites us—
brother, sister, boxer, spinner—in this pact,
while you inscribe a letter with trembling hand.

Facebook
Twitter
LinkedIn
WhatsApp
Pinterest
Telegram

NEWSLETTER: RECEBA NOVIDADES

© Copyright, 2023 - Revista Piparote
Todos os direitos reservados.
Piparote - marca registrada no INPI