Pensar o processo de mudança das línguas nos permite enxergar como há uma autonomia do próprio sistema linguístico em resolver problemas de adaptações fonéticas, por exemplo, em face do papel das ações externas sobre a língua. Através das semelhanças nas mudanças fonéticas que se empreenderam na formação das línguas românicas, a título de exemplo, há regularidades que sugerem fortemente que o desenvolvimento destas se deu pelos desdobramentos e adaptações da língua hipotética do latim vulgar, pois as comparações feitas com o latim clássico não dão conta das semelhanças mais específicas, exigindo-se malabarismos teóricos que não explicam a maioria das mudanças.
O método comparativo nos leva a estabelecer tipologias, a enxergar lugares comuns na “transição” de uma língua para outra. E uma importante ferramenta para se entender as mudanças linguísticas é a onomasiologia, sobre a qual traremos alguns casos comentados a seguir.
De uma leitura do livro Lingüística Histórica, de Carlos Alberto Faraco[1], pode-se entender algumas razões da mudança de vocabulário, da diferença de algumas palavras de origem latina entre as línguas românicas que não são explicadas apenas por mudanças fonéticas. Vemos que há um importante papel das relações associativas que os povos dominados pelos romanos faziam ao introduzirem uma palavra latina para nomear algo que já conheciam, mudando-a para ficar mais próxima da sua realidade cotidiana.
Esses fatos da língua nos levam a compreender a necessidade de resolver, por exemplo, colisões homonímicas: quando se tinha homônimos, com palavras de significado distinto e pronúncia igual ou muito semelhante, a estratégia era usar outra expressão ou variar em algum aspecto a elas associado conceitualmente para diferenciá-las. Aqui entra o papel da criatividade dos indivíduos que usam a língua. Temos o exemplo da palavra gallus na França: em algumas regiões, confundia-se com gat (gato). Logo, dois animais que eram muito comuns no cotidiano, um gato e um galo, tinham uma colisão homonímica, o que certamente causava confusão comunicativa, por isso em alguns lugares da França para a palavra gallus usavam a palavra pullus (como pollo, em espanhol, que vem de gallus pullus, significando para o latim o “galo filhote”, o “pinto” em português). Em outras regiões da França gallus vira vicaire, de “vigário”, pois o galo era comparado ao vigário, que acordava o povo com o sino igual se passa com o canto do galo, além de terem também semelhanças em suas “vestes”.
Um exemplo semelhante é o que temos na palavra “fígado”: nas línguas românicas todas guardam semelhança com a palavra latina ficatu, que deriva da fruta figo e não de iecur, que em latim significa “fígado”. Isso ocorreu pois na criação de patos costumava-se a dar figo para engordá-los; os patos que cresciam comendo figo tinham um fígado de melhor qualidade para o mercado. Logo, o fígado de pato bom, vendido a preço maior, era o iecur ficatu, tendo sobrevivendo no latim vulgar e nas línguas românicas apenas as adaptações fonéticas de ficatu, perdendo-se iecur: foie, hígado, ficato, ficat e fígado.
Outro caso que pode ser interessante na onomasiologia é a variação da palavra “pêssego” entre as línguas românicas. Tendo origem na expressão latina malum persicum, “maçã da Pérsia”, sobrevive nas românicas apenas as variações fonéticas de persicum, que se torna “pêssego” em português, pesca em italiano, piersica em romeno e pêche em francês. Em espanhol, todavia, é melocotón. Por sua vez, melocotón viria de malum cotoneum (marmelo), que os romanos assim chamavam por sua pele ser semelhante ao algodão. Os romanos enxertavam o pêssego no marmeleiro, conseguindo obter uma produção de pêssego mais rápida e até mesmo melhor – e possuíam grandes cultivos dessa fruta na sua colônia da Hispânia. A expressão que ficou retida para o espanhol foi então uma variação do nome da árvore onde se cultivava o pêssego, malum cotoneum, em vez de malum persicum, que é o fruto dessa árvore. Durazno também é uma forma de dizer pêssego no espanhol principalmente usado nas Américas, que deriva seu nome de um tipo de pêssego mais duro. Marmelo, contudo, em espanhol se diz membrillo. A palavra membrillo, por sua vez, vem da forma que os romanos chamavam ao doce do malum cotoneum, o melimelum: quando punham mel nesse tipo de malum para fazer o que chamamos de marmelada (de onde vem, já em português, o nome “marmelo”).
Esses são exemplos, descritos brevemente e de forma bem livre, de como se varia ou se retém um tipo de forma lexical não por variação fonética, mas por força de uma relação que as palavras guardam com a vida cotidiana das pessoas que as usam. Os estudos da onomasiologia nos mostram que a fonética às vezes não é o único caminho evolutivo que explica as variações de vocabulário entre as línguas românicas. Seria importante também partirmos da relação entre Wörter und Sachen, das palavras e as coisas: uma pesquisa etimológica, por exemplo, passaria fortemente pelo entendimento da materialidade de uma sociedade, dos significados que assumem conforme a região e o momento em que determinada língua é falada.
Enfim, são antigas e intermináveis as discussões sobre como as línguas mudam. Há empréstimos entre dialetos, criações, invenções, no sentido de se impedir uma colisão homonímica, por exemplo, e isso nos leva a pensar que há uma quantidade de mudanças no léxico, de variações que se explicam por fatores epilinguísticos, mas há também uma autonomia da própria língua em desenvolver mudanças que não se explicam tão somente por fatores históricos, porém pela dinâmica interna das relações entre as estruturas, como no caso da evolução fonética.
[1] FARACO, Carlos Alberto. Lingüística histórica: uma introdução ao estudo da história das línguas. São Paulo: Parábola Editorial, 200
Júlio Bonatti
É doutor em Linguística pela Universidade Federal de São Carlos, tendo realizado parte do seu projeto como pesquisador visitante na School of Languages and Applied Linguistics da Open University, Inglaterra.