Si no vas a irte, no me dejes solo. Ni aunque te mueras.
Persígueme como un fantasma, haunt me.
Por supuesto –le contesté–. Haría cualquier cosa por vos.

 

 

Nossa Parte de Noite (Editora Intrínseca), de Mariana Enríquez, é um romance que combina tempos e narradores/as com a ditadura argentina como pano de fundo, numa dose irresistível de cultura pop. Ler Mariana Enríquez é sentir que os mortos viajam mais rápido, que o horror é cotidiano e que as paisagens da nossa América Latina estão tingidas com o sangue de corpos que não importam. Em tempos de finais explicados, o silêncio e a pausa da autora refrescam, encantam e seduzem.

Na narrativa, conhecemos a vida de Juan, que estava destinado a ter uma vida inútil, até que um feixe de luz escura passou diante do médico que operava seu coração, o qual pertencia a uma seita que servia às trevas, A Ordem. O poder de influência dessa seita permitiu que o pai de Juan o vendesse em troca de benefícios de proteção e educação, com a garantia de tratamento médico para uma doença congênita. Isso, porém, sem saber se a escuridão se manifestaria por meio do protagonista para torná-lo um médium; um salto de fé que só pode ser explicado por aquelas coisas que nos movem, além do que pode ser dito. Algo que só funciona como a visão dupla de William Blake, em que tudo o que conseguimos imaginar se torna parte do mundo com a mesma certeza do que acreditamos.

A superioridade de origem da Ordem, nesse sentido, que tinha hábitos e uma temporalidade própria por pertencer àquele tipo de elite da qual não se fala, mas que subsiste como uma espécie de aura misteriosa que dá forma a coisas que sequer podemos conceber, nos permite entender como eles foram ajudados pelos crimes da ditadura. É a única maneira de aceitarmos, como leitores, esse acesso a corpos sem nomes, rostos ou existência na Argentina de Videla.

A promessa descomunal de vida eterna, entregue passo a passo pela encarnação demoníaca que falava por meio de Juan, explica o menosprezo pelo roubo ou compra de crianças e adolescentes para rituais. Estes claramente compunham uma rima com a barbárie argentina, que distanciava as questões sobre os desaparecimentos, promovendo a ação da Ordem. De igual modo ocorria com a lembrança de que, depois de cada ritual ou tortura, no dia seguinte seus participantes estariam famintos, com vontade de nadar e de visitar seus acampamentos, pois, apesar de desejarem a vida eterna, queriam continuar tendo dinheiro. Mais precisamente, por tão real que seja nesse mundo a possibilidade de se aproximar de uma dimensão sombria e demoníaca, a vida também é assim.

Mariana Enríquez não hesita em nos oferecer um mundo contraditório no qual são apresentadas declarações de princípios que não são muito comuns nos romances convencionais. Ela nos mostra uma Argentina marcada pelo futebol, famílias separadas pelos militares, mas também uma juventude que tenta encontrar seu espaço em um mundo que está distante dela. Uma geração perdida que tenta descobrir a si própria da mesma forma que nós: rejeitando o que existe e nos convencendo de que estamos mais certos do que os outros. Gaspar (filho de Juan), Vicky, Adela e Pablo nos acompanham nessa jornada em que convergem amizade, inocência, silêncio, segredos e sincronicidades lúgubres.

O mesmo acontece com Rosario, de forma tangencial. A provável herdeira da Ordem, a primeira mulher da Argentina com doutorado em Antropologia na Inglaterra, mãe de Gaspar, a pessoa que testemunha a revelação da escuridão pelo médium; aquela que conheceu o outro lado. Descobrimos a magia, seu alcance e suas potencialidades por meio da observação cuidadosa, metódica e meticulosa de uma etnógrafa que conta a história como nenhum outro personagem do romance. Lemos nela o amor, o desejo, as dúvidas e a decisão de interromper sua vida por anos para se encontrar; uma liberdade que nenhum outro personagem da obra poderia alcançar, já que ninguém tinha suas facilidades ou sua coragem para adiar as expectativas dos demais. Ela é nossa companheira no caminho para a compreensão de um mundo que se torna distante, intrigante e viciante.

O discurso político de Enríquez é explícito de várias maneiras. Poderíamos rotulá-la como marxista, ao equiparar a posição do médium ao explorado, ou de cada momento histórico (camponês na revolução industrial, mulher afro nas colônias britânicas antes da descolonização e adolescente pobre filho de migrantes em uma ditadura militar), e/ou feminista quando apresenta a ideia do andrógino mágico e a dissidência sexual como uma prática necessária e constitutiva da Ordem.

O livro também é particularmente interessante porque nos são apresentadas histórias com as quais é fácil ter empatia, mas que a autora apresenta em tons de cinza. Uma mãe que faria qualquer coisa por seu filho, mas não consegue se acostumar a isso e é fascinada por ver as pessoas morrerem; um pai que escolhe a distância e a violência como uma forma de educar para salvar alguém que talvez nunca saiba o que está tentando fazer; uma avó sociopata dona de escravos; uma jornalista obcecada pela verdade até não conseguir explicar o mundo que testemunha.

Se eu tivesse que fazer um convite para uma pessoa ler esse livro, e respeitando o fanatismo declarado da autora por Stephen King e Raymond Carver, eu diria que esse romance é como se Carrie tivesse acontecido na Argentina, mas no formato de uma amaldiçoada história de amor com um pai que não quer deixar bem algum de herança para o filho. As desculpas do inexplicável com dores de cabeça e auras que antecipam algum fato. A incapacidade de dizer “eu te amo”, embora sejamos capazes de fazer o indizível por aqueles que amamos. O destino manifesto contra um amor que não pode ser explícito porque brinca, literalmente, com sua existência.

Talvez Nossa Parte de Noite seja um romance difícil de replicar, porque combina o melhor do horror, tornando-o latino-americano. Você pode estar lendo um capítulo e encontrar David Bowie em uma cena gótica e, em outro, Maradona vencendo a Copa do Mundo. Como pano de fundo, a possibilidade de um legado e uma defesa da vida em um mundo onde isso não importa.

Nas palavras do pai de Gaspar:

Eu deixei algo meu para você, espero que não esteja amaldiçoado, não sei se posso deixar algo que não seja sujo, que não seja sombrio, nossa parte de noite.

 

Ensaio traduzido por Júlio Bonatti

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Mariana Enríquez

É jornalista, romancista e contista argentina. Faz parte do grupo de escritores conhecido como "nova narrativa argentina"

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Diego Rivera López

Nasceu em 1993 no sul do mundo, no Chile. Ele transita entre a sociologia e a filosofia para escrever. Torcedor militante do clube de futebol Universidad de Chile.

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