Não faz muito tempo que O Primo Pons completou 175 anos. O romance, como se sabe, é uma das mais fulgurantes joias dessa coroa chamada A Comédia Humana. Sem trocadilho, O Primo Pons é uma obra-prima. Por um momento, o romancista parece se afastar das intrigas amorosas, das aventuras eróticas entre cortesãs e burgueses endinheirados e jovens pobres que desejam subir na vida e brilhar na sociedade. Como em poucas ocasiões da sua vasta obra, Balzac está focado, sem embargo de sua obsessão econômica, na arte, na amizade e na velhacaria. De Pons, “primo pobre”, pode-se dizer que é casado com a arte, emblematizada no romance por sua valiosa coleção de pinturas, esculturas e outros objetos que, ao longo dos anos, num esforço diuturno, conseguiu amealhar. Aqui, já temos um significativo desvio: enquanto outros personagens balzaquianos amealham dinheiro, Pons amealha obras de arte, adquirindo-as em bric-à-bracs, comprando-as a preço baixo e desenvolvendo um olho clínico que desvenda valores que parecem não brilhar à primeira vista.

Pons, velho músico solteirão, chefe de orquestra, tem, segundo os especialistas, a mesma mania do escritor: devoção ao bric-à-brac. Tem a paixão dos achados artísticos. Por isso, sabe que sua coleção é uma antologia importante, um pequeno museu, um templo secreto onde parece receber vibrações e energias poderosas. Pons é também uma espécie de Midas: transforma o esquecido em memória. Seu “grande problema” (e aqui se tem novamente o Balzac “economista”) é não ter… liquidez. E nisso mimetiza inúmeros artistas, converte-se em símbolo. Pons é, de fato, pobre, mas rico de objetos artísticos e de um sentimento de beleza que o torna extravagante e solitário aos olhos do mundo.

A esse velho e pobre celibatário, Balzac como que justapõe outro igualmente velho e pobre celibatário: o alemão Schmucke, criando entre os dois uma das mais belas e enternecedoras amizades de toda a literatura ocidental. O alemão, também músico, é professor de piano. Dir-se-ia, com um pouco de imaginação, que o romancista se compadeceu da solidão de Pons. Reunidos pelo acaso e pela profissão, espelham-se como amantes mutuamente compreensivos e idealistas: cuidam-se, divertem-se, conversam, curtem as mesmas dores da vida (“Nada no mundo se compreende melhor do que duas dores semelhantes”, pontuou o romancista em “Esplendores e misérias das cortesãs”). Passam a morar juntos. Mais que o próprio Pons, Schmucke é uma alma cândida: o mal é uma aberração que busca afastar com fervorosas preces… Mas essas duas almas delicadas, escreve Paulo Rónai, em seu livro “Balzac e a Comédia Humana”, estão cercadas (eis a velhacaria que espreita!) por “[…] pessoas que se tornam criminosas por terem descoberto que a coleção de arte do velho músico moribundo, desprezado e ridicularizado por todos, vale uma fortuna. Toda essa gente ignora o remorso, ou melhor, não o concebe senão como receio de ser descoberto. Também a maioria das grandes carreiras e das imensas fortunas de ‘A Comédia Humana’ é baseada em algum crime que se manteve secreto”. Pons, de certa forma, antecipa Saniette, personagem de Proust, e o romance tem páginas memoráveis a respeito daquilo que hoje chamamos de “assédio moral”.

O Dictionnaire de Balzac, de Félix Longaud, bem observa que, nesse romance (de resto não previsto no plano de A Comédia Humana), “[…] o drama não reside no choque de paixões violentas ou sublimes, mas na sórdida obsessão de espoliar um homem indefeso por intrigantes sem escrúpulo […]”. Com efeito, mortificado pela incompreensão de parentes tão ricos quanto ignorantes, Pons torna-se um enfermo e um repasto para ambiciosos e velhacos que o circundam e que estão de olho em sua valiosa coleção, ou seja, num tesouro de que buscam ser os herdeiros. Eis, como sempre ocorre em Balzac, a ilha da virtude cercada, senão submersa, pelo revolto mar dos vícios mais imorais.

Para que os leitores tenham uma visão mais ampla da riqueza temática dessa obra, basta passarmos novamente a palavra àquele que foi um de seus maiores especialistas brasileiros, talvez o maior: o mestre Paulo Rónai, que, num estudo introdutório ao romance, assegura-nos, de forma muito clara, que: “[…] nele [no romance] aparecem quase todos os grandes assuntos que ocuparam sempre o espírito de Balzac: as ciências ocultas, o efeito devastador do dinheiro sobre ricos e pobres, a captação de uma herança, a força da associação entre dois seres, a burocratização da morte em Paris, a miséria e as ambições dos humildes e dois vícios até então não estudados: a gula (‘gourmandise’) e a mania da coleção. Este último aspecto é especialmente empolgante pelo que tem de autobiográfico, de confissão. Muitos dos quadros do velho Pons existiam e pertenciam ao próprio Balzac, em quem nos últimos quinze anos da vida, o amor aos objetos de arte assumia proporções cada vez mais patológicas”.

A esse elenco temático de Rónai, terá faltado, além do citado “assédio moral”, pelo menos um outro polêmico assunto: a velhice. Uma velhice duplamente exposta nas figuras de Pons e do seu amigo alemão. Dois solteirões, dois idosos, dois homens como que flagelados pelo destino e pela sociedade. Daí as palavras duras do narrador: “Logo se manifestou a indiferença que o velho espalha em torno de sua pessoa. Esse vento frio se transmite, produz seus efeitos na temperatura moral, principalmente quando o velho é feio e pobre. Não é ser três vezes velho?”. E noutro trecho não menos cruel e revelador de uma sociedade preconceituosa e altamente conservadora: “[…] cada família o aceitava como se aceita um imposto; não levavam nada em conta, nem mesmo seus serviços reais. As famílias nas quais o velho realizava essas evoluções, todas sem o menor respeito pelas artes, e adorando os resultados, só apreciavam aquilo que haviam conquistado depois de 1830: fortunas ou posições sociais eminentes […] Embora experimentasse nessa sociedade vivos sofrimentos, calava-os, como todos os tímidos”. Enfim, o calvário de Pons é social: falta-lhe cinismo, sobra-lhe castidade. Seu egoísmo é um refúgio: à companhia dos homens, prefere “a inteligência dos objetos de arte”, o seguro convívio com a beleza.

Do ponto de vista técnico, Balzac constrói a personagem de uma forma intermitente, sempre acrescentando-lhe camadas de caráter que acentuam seus embates com uma realidade hostil. No mais, como pontifica o narrador, “Os velhos são suscetíveis”… E Pons, por diversas razões, mais suscetível que todos, a ponto de somatizar suas frustrações e seus desapontamentos, como indica o capítulo sugestivamente intitulado “O desgosto transformado em icterícia”. Não obstante a sutil psicologia do narrador, Balzac, mesmo nesse capítulo, não escapa  à sua habitual ironia de sarcástico “economista” ao pôr estas palavras na boca de um médico de bairro: “Passo a vida inteira a ver pessoas morrerem, não de suas doenças, mas desse grande e incurável ferimento: a falta de dinheiro”. Não é uma observação qualquer numa obra transpassada pela obsessão pecuniária. Pons é pobre, um primo pobre: falta-lhe a saúde social que só o dinheiro proporciona, falta-lhe, repetimos, liquidez. Daí, fazendo um trocadilho, sua secura. Sua secura e seu adoecimento mortal. Seu papel terá sido o de tristemente legar aos pósteros um despercebido e negligenciado triunfo moral. Um papel trágico e transparente num mundo movido pela opacidade e pela conspiração.

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Paulo Gustavo

poeta e ensaísta pernambucano, autor de “A tartaruga e a borboleta: um caminho para Proust” e de “Acordar para Proust: uma breve iniciação a ‘Em busca do tempo perdido’”.

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