Numa sociedade que se encaminha para um outro tipo de Grande Depressão, o setembro amarelo firma sua importância e nos obriga a refletir não apenas sobre a prevenção ao suicídio, mas também a respeito de como os que lidam com doenças mentais são tratados. Ainda que seja nítido o avanço da medicina, uma questão ainda permanece no tempo: nem todos os psicólogos, psiquiatras e profissionais responsáveis por lidar com saúde mental têm o preparo necessário para tais demandas. Não precisa de muito para que notemos o despreparo de alguns, a negligência de outros. Inevitavelmente, a ferida da depressão, por exemplo, por ser invisível aos olhos dos demais, é drasticamente subestimada. Vive-se numa sociedade em que a urgência paira sobre machucados expostos e que sangram de forma literal. Vive-se numa sociedade que o indivíduo acometido por esses transtornos é visto, mas jamais observado.

Em 1887, aos 23 anos, uma importante jornalista investigativa já se dava conta dessa falta de visão apurada sobre essas doenças: era Nellie Bly[i], que se infiltra num hospício com o intuito de denunciar os maus-tratos sofridos pelas mulheres encerradas nos grandes muros que as julgavam como doidas. Suas reportagens sobre os absurdos que ocorriam no Hospício de Alienados de Blackwell’s Island foram publicadas pelo jornal New York World, do editor e jornalista Joseph Pulitzer; mais tarde, devido ao alcance e urgência de sua voz, suas denúncias foram ampliadas e transformadas no necessário livro Dez dias num hospício.

Seus relatos são escritos pela tinta que escorre da violência e opressão presenciadas nos longos dez dias que teve de se infiltrar ali. Após passar pelos portões daquele Hospício, as mulheres não eram mais vistas com Mulheres: eram, agora, amontoados de insanidade incurável. As enfermeiras as agrediam, faziam com que dormissem molhadas após um banho petrificante; as refeições não eram dignas de tampouco serem mastigadas; as pacientes tidas como violentas eram amarradas por um cinto de couro preso num carro de ferro. Não parecia haver segunda chance para aquelas pacientes, nem mesmo um acompanhamento que de fato levasse a algum diagnóstico e tratamento. Estavam fadadas àquilo, e os doutores que deveriam ampará-las martelavam sem remorso o último prego de seus caixões.

“[….] à medida que observava a loucura dominar pouco a pouco aquela mente que antes parecia normal, eu amaldiçoava em silêncio os médicos, as enfermeiras e todas as instituições públicas. Alguns dirão que ela já era louca antes de ser internada. Se de fato era, será que aquele era o lugar para o qual uma mulher convalescente deveria ser mandada, para tomar banho gelado, ser impedida de se agasalhar e receber comida horrível?”

Se os efeitos do Hospício já foram excruciantes para Nellie, que fingia ser uma mulher com a sanidade afetada para cumprir sua missão, para Esther Greenwood, personagem da obra A redoma de vidro, de Sylvia Plath, as marcas da violência foram mais latentes. Se Nellie observava o conflito de fora, Esther o sentia em seu âmago – ela era de fato uma das pacientes violentadas.

Poucos dias antes da autora se suicidar, o romance A redoma de vidro é publicado em janeiro de 1963, e segue ressoando no meio literário até os dias atuais. A narrativa segue a jovem Esther, que, apesar de estar realizando um grande sonho – estagiar em Nova York e ser largamente mimada -, sentia-se melancólica e insatisfeita.

“Eu tinha dezenove anos e aquela era a primeira vez que saía da Nova Inglaterra. Era a minha primeira grande chance, mas lá estava eu, imobilizada, deixando a oportunidade escapar entre meus dedos.”

Também abordando temas como o papel social da mulher, o deprimente foco é o fato de que Esther, tida como uma garota promissora, estava imobilizada por uma doença mental que era incompreendida e constantemente menosprezada. Enfrentando dificuldades em dormir e administrar tarefas básicas de seu cotidiano – como quando passou três semanas sem lavar o cabelo -, Esther é encaminhada para um psiquiatra. Dr. Gordon, que assume seu tratamento, se satisfaz perguntando a ela o que, em sua visão, parecia estar errado. Ainda que tentasse organizar as ideias e comunica-las ao médico, Esther nota o evidente desinteresse de Gordon, que pouco tempo depois se levanta e finaliza: A gente se vê semana que vem, então. E, para Esther, aquele momento final era o que ecoava; afinal, era tudo o que de fato Gordon, que lhe prometeram que a ajudaria, dissera.

Não sendo o bastante, Esther é encaminhada para um hospício – um tão tenebroso quanto o que Nellie Bly denuncia -, e é obrigada a passar por terapia de choque. O tipo de narração da obra nos permite saber o que se passa na mente de Esther, o que é doloroso, sobretudo no momento em que enfrentará o procedimento pela primeira vez: Fiquei me perguntando o que é que eu tinha feito de tão terrível.

Todos tratam Esther como se sua doença mental fosse uma criatura domável e criada artesanalmente por ela, uma mulher que tampouco se banhava e se cuidava, como ousavam dizer. Assim como as loucas que integram as reportagens de Nellie Bly, o elemento necessário para a “cura” de Esther era simples e nada custoso: precisava de uma rede de apoio, de tratamentos humanizados e efetivos, de doutores e enfermeiras que as visse como Humana, e não como Doença.

Fica escancarado, ainda que de diferentes formas, como o sistema que lida com doenças mentais é falho. Vale retomar: apesar dos avanços da medicina, ainda existem muitos Hospícios como Blackwell e mulheres violentadas como Esther em nossa sociedade. Não por acaso, o Movimento Antimanicomial, por exemplo, seguirá enfrentando batalhas no inverno Russo. É preciso que obras como Dez dias num hospício e A redoma de vidro não sejam lidas apenas como um texto jornalístico e um romance. Nellie Bly e Sylvia Plath escancararam essas dores para que não precisemos senti-las, mas que uma tomada de frente urja em nosso peito.

Livros utilizados:

A redoma de vidro, Sylvia Plath. Edição da Biblioteca Azul, com tradução de Chico Mattoso.

Dez dias num hospício, Nellie Bly. Edição da Fósforo, com tradução de Ana Guadalupe.

[i] Seu verdadeiro nome é Elizabeth Jane Cochrane, mas utilizava Nellie Bly como pseudônimo.

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Angélica Cigole Frangella

Graduanda em Letras pela FFLCH/USP, dedica seus estudos à obra de F. Scott Fitzgerald. Leitora de tudo um pouco, encontrou-se sobretudo na relação entre literatura e psicanálise.

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