O termo Shôgun significa comandante-chefe de um exército e, desde o século XIII, tem sido usado para se referir ao líder dos samurais. Tratamos aqui da história que corresponde a um livro de James Clavell, publicado em 1975, que já teve duas adaptações, uma em 1980 e outra em 2024. Mariko-sama é uma adaptação livre da vida de Hosokawa Garasha, em que, após sua conversão ao cristianismo, assumiu o sobrenome de Gracia. Ela é uma das personagens mais adaptadas da cultura pop japonesa, estando, inclusive, presente em videogames populares como Pokémon.
Neste breve texto, falaremos sobre a versão deste ano (no Brasil adaptada com o nome “Xógum: A Gloriosa Saga do Japão”), analisando como ela constrói um espaço de radicalismo político ao resguardar sua privacidade. A série é escrita por Rachel Kondo e Justin Marks, produzida pela FX e está disponível no Star Plus na América Latina. São ao todo 10 episódios e funciona como uma minissérie. É provavelmente o produto audiovisual mais semelhante à série Game of Thrones em termos de narrativa e apostas audiovisuais.
Em uma de suas conversas com Blackthorne[1], o bárbaro, como os japoneses o chamam, explica a ela que seu relacionamento com o mundo se deve a oito grades que funcionam como uma espécie de compartimento que a protege do mundo. A menção ao oito não é aleatória, pois ele representa o infinito e seu uso é sagrado em parte do Oriente. Para Mariko-sama, no entanto, é “uma parede impenetrável atrás da qual podemos nos refugiar quando necessário”. Um espaço íntimo que abriga aquilo que nos torna o que somos.
Com esse gesto, Mariko-sama explica o espaço radical que a intimidade ocupa em seu ser. Isso é interessante em vários aspectos. A personagem não é a dona de sua vida, pois ela a deve formalmente a seu marido, Buntaro, e por obrigação a seu senhor, Lorde Toronaga. É o primeiro que a impede de cometer suicídio em várias ocasiões e o segundo que lhe pede que reserve um momento para cumprir seu papel. Nesse sentido, embora ela deseje sua morte e tenha tentado realizá-la em várias ocasiões, suas ações entram em conflito com seu dever ou com sua fé cristã, que considera o ato de tirar a própria vida um pecado da mais alta gravidade.
Certa vez, refletindo sobre os protestos iranianos, Michel Foucault[2] apontou que a vontade é o ato puro do sujeito e nos instou a pensar sobre aquele momento em que se escolhe morrer em relação a algo. Ele falou de revoltas, evocando os estilhaços daqueles guetos que não eram transmitidos por streaming como nas barbáries contemporâneas, sobre a possibilidade de decidir “não obedecer mais”; arriscar vidas em um movimento irredutível. De tal forma que escapam à história e a qualquer possibilidade de compreensão.
Entretanto, na série Xógum, a situação é bem diferente para Mariko-sama. Ela só luta quando é ameaçada e escolhe desempenhar o seu papel, além de qualquer cálculo de sobrevivência, porque para ela é o dever com sua vida que determina suas ações. Assim como Sócrates escolheu sua morte para denunciar a polis e defender a verdade, Mariko-sama escolheu sua morte para deixar um registro das injustiças. Ela não deu pistas, não disse como, não disse quando, não pediu ajuda, não se organizou, apenas deixou que suas ações falassem e somente pronunciou as palavras que ficariam registradas para comprovar a injustiça.
Para uma visão ocidental, nesse caso nós que assistimos à série ou lemos o livro, a ideia de liberdade baseada na obediência ou na aceitação da morte é inconcebível. O choque de visões nos olhos de Blackthorne, em face da aparente resignação, só pode ser entendido dentro de uma filosofia na qual a vida e a morte fazem parte do mesmo caminho que nos desafia como público, mas nos lembra que, mesmo quando a globalização apela para a homogeneização cultural, talvez não estejamos tão perto de entender(nos).
Assim como em A Gaia Ciência[3] Nietzsche falou sobre a imagem de uma pessoa desvairada gritando em uma feira: “Deus está morto e nós o matamos”, logo sendo considerada exótica e alienada, as narrativas atuais, sob as quais há apenas interpretações morais de nossas ações, nos distanciam ainda mais da compreensão do que o outro faz. A bela ironia do texto está no fato de que a questão de assumir responsabilidade na existência ocidental moderna permanece sem resposta. Diante de uma ofensiva de moralização das formas, as perguntas sobre o significado que damos às nossas ações se perdem como fragmentos de areia em um deserto.
A pouca atenção às práticas que dão sentido ao mundo continua sendo uma tarefa ainda não concluída. Sacrificar a si mesmo, escolher a morte e aceitá-la, não como um ato de rendição, mas como um ato de vontade em um conjunto de relações, parece uma história diferente que podemos assistir em uma tela ou ler a respeito, já que tanto o senso de dever quanto a aceitação da responsabilidade parecem, por enquanto, de outro mundo. De modo semelhante vemos o fato de essa ação recair sobre uma pessoa e não sobre uma revolução molecular, a autonomia dos corpos ou uma multidão. Pelo contrário, Mariko-sama só o faz porque acredita que sua vida não pertence a ela como indivíduo, mas a um conjunto de crenças que dão forma a uma intimidade tão radical que só se desdobra no ato de escolher morrer para que outros tenham essa possibilidade.
Mariko-sama sempre teve sua intimidade perturbada, mas nós não sabíamos disso, e suas oito grades nunca deixaram de ser povoadas por ações insurgentes. Seus silêncios continuarão a ecoar em Osaka e em nossas telas. E sua poesia, apenas naqueles que tentaram entendê-la em um mundo que sempre lhe foi estranho.
[1] Aqui nos referimos especificamente ao capítulo quatro da série.
[2] Michel Foucault. Sublevarse. Entrevista inédita con Farès Sassine [Introducción y traducción de Soledad Nivoli], (Viña del Mar: Catálogo, 2019).
[3] Friedrich Nietzsche. La ciencia jovial. «La gaya scienza» [Traducción y notas de José Jara], (Valparaíso: Editorial Universidad de Valparaíso, 2018).
Diego Rivera López
Nasceu em 1993 no sul do mundo, no Chile. Ele transita entre a sociologia e a filosofia para escrever. Torcedor militante do clube de futebol Universidad de Chile.
Nicolás Fuster Sánchez
Tem doutorado em Ciências Sociais e Comunicação e é acadêmico da Universidade de Valparaíso, Chile.