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Entrevista de Marcelo Ridenti para a revista Piparote

Arrigo apresenta ao leitor aventuras e desventuras do personagem que dá nome ao livro. Em uma visita corriqueira, o narrador, participante da narrativa, encontra Arrigo inerte em uma cadeira de balanço. Quando decide procurar ajuda, a porta emperra e o impede de sair do apartamento.
 
A partir daí, decide terminar um antigo projeto de contar a história de Arrigo e companheiros enquanto aguarda socorro para tirá-los do esvaziado edifício Esplendor, no centro de São Paulo.
 
Autor de diversas obras de não ficção, Ridenti traz em seu romance de estreia uma mescla de realismo e fantasia e revisita pela ficção cem anos de história da esquerda brasileira.

São Paulo, 22 de maio de 2023.

  • Como foi o percurso para juntar materiais relativos ao seu romance de estreia, Arrigo (Boitempo), e como a história desse personagem gerou interesse?

O romance trata de um século na vida de Arrigo, um militante que participou no Brasil e no exterior das principais lutas sociais a partir da greve geral de 1917 em São Paulo, quando era menino. O material para o livro foi juntado literalmente ao longo de décadas, pois é o mesmo de minhas pesquisas sobre a história das esquerdas. Agora, realcei pela ficção o lado subjetivo que acompanhou a experiência de Arrigo e das demais personagens, sem a preocupação de demonstrar teses e explicar os fenômenos sociais, que entretanto afloram em cada página na pele dos sujeitos.

Quando bem jovem no fim dos anos 1970 e começo dos 1980, cultivei o sonho de ser escritor. Tinha o projeto de criar um romance inspirado no Brás Cubas do Machado de Assis. Mas as exigências da carreira universitária acabaram levando as leituras e a escrita para o lado da sociologia e da história. Publiquei vários livros de não ficção baseados em pesquisas acadêmicas, o último dos quais editado pela Unesp no ano passado, sobre a internacionalização de intelectuais durante a chamada Guerra Fria cultural nos anos 1950 e 1960, com o título O segredo das senhoras americanas.

Assim, não deixei de realizar o projeto de escrever livros, mas no fundo permanecia o desejo oculto e sempre adiado de fazer uma obra de ficção, meu Brás Cubas de esquerda. Ao completar 60 anos de idade, no contexto da vitória eleitoral da extrema direita no Brasil, senti que era o momento. Precisava dizer algo além das obras acadêmicas, expressando percepções subjetivas para tratar literariamente o que me foi dado conhecer, por exemplo, fazendo entrevistas e lendo biografias de diversos militantes que apostaram em possibilidades malogradas de fazer a revolução brasileira e lutando contra ditaduras nacionais e internacionais.

  • As personagens femininas desempenham papéis significativos na jornada de Arrigo, e parece que sem a presença delas ele não teria alcançado nem mesmo a metade de sua história. Como a representação e interação com essas mulheres exploram questões mais amplas sobre o papel delas àquela época?

A trajetória de Arrigo só pode ser compreendida pelas suas relações com as pessoas em torno. Particularmente com as mulheres, a quem deveu a vida. A começar de dona Imma, sua mãe, uma imigrante italiana. Depois dona Maria, a empregada filha de escravizados que ajudava a cuidar dele desde o parto, quando o livrou do cordão umbilical enrolado no pescoço. Não foi a única a tirá-lo de apuros, por exemplo, a menina Diana abateu com uma estilingada o policial que enforcava o amigo numa noite no cemitério do Araçá durante a greve de 1917. Aurora foi companheira da vida toda, embora Arrigo não prometesse fidelidade. Foi namorador, a primeira vez com Carmen, uma espanhola um pouco mais velha, inspirada em Marcela, personagem machadiana, uma espertalhona que atravessaria sua vida em vários momentos. Depois vieram madame Eneide e as andorinhas. Também Mariana, as primas catarinenses no navio a caminho do exílio, a extraordinária Luna na Guerra Civil espanhola e na resistência francesa, as irmãs italianas que o trataram após ferimento grave na guerra, as deputadas russas, a Marilíndia da casa rosa da rua Alice, a sueca Ingrid no Chile, a rebelde Sima em Paris. Todas mulheres marcantes, crescentemente se liberando da dominação masculina, ou usando sua sabedoria para conviver com ela. Vemos ao longo do romance a expressão e o questionamento dos diversos papéis das mulheres: a santa, a puta, a outra. A empregada doméstica, a dona de casa, a operária, a profissional instruída. Elas ocupavam posições subalternas também nas organizações de esquerda, como se pode observar nas páginas do romance, centrado na figura de um homem, mas desempenharam papéis significativos na história.

  • Há uma forte influência de romancistas no seu livro, Machado de Assis, Mário de Andrade, Cervantes. Qual a razão para abordar essa influência diretamente em Arrigo?

O romance trata da passagem do tempo na vida de Arrigo e das pessoas ao redor, e da história de uma época em sentido mais amplo. Ora, a literatura é parte dessa história, então tinha de aparecer na obra. Arrigo era amigo do líder comunista Astrojildo Pereira, protagonista do episódio real referido no romance em chave ficcional, do beija-mão de Machado de Assis no leito de morte. Jorge Amado e Graciliano Ramos foram militantes comunistas, é verossímil que fossem amigos de Arrigo, machadiano como o pai. Era leitor também de poesia, vivendo experiências que traziam para seu cotidiano, por exemplo, poemas de Drummond e especialmente de Bandeira, cuja obra ajuda a sustentar a passagem dos anos na vida do protagonista, inspirando vários episódios do livro. Há também referências explícitas ou implícitas a quadros, filmes, canções e outras obras de arte, particularmente as literárias, afinal se trata de um romance que envolve questões da formação da sociedade e da cultura brasileira, presentes por exemplo em Mário de Andrade, e também da condição humana, como no Dom Quixote.

  • Há no romance a seguinte analogia que alude a Cervantes: todo Quixote está perdido se não encontrar um Sancho para ensiná-lo a colocar os pés no chão. Na esquerda brasileira, quem seria Dom Quixote e quem seria Sancho Pança?

Dom Quixote e Sancho não deixam de ser tipos ideais extremados, que na experiência real estão ambos presentes na vida de todos nós, ou de cada movimento social e político. Um simboliza o idealismo, buscando realizar utopias, o outro o realismo cotidiano do senso comum. O céu e a terra. No trecho citado na pergunta há também referência a um verso de Chico Buarque na canção Beatriz: “me ensina a não andar com os pés no chão”. Chico, lembre-se, acompanhou antes disso a adaptação brasileira de outra peça, O homem de La Mancha, para a qual escreveu com Ruy Guerra a letra em português da canção Sonho Impossível.  

Na luta política, o velho Quixote e seu cavalo Rocinante são referidos em passagens dos diários e cartas de Che Guevara, autoironicamente identificando-se com o cavaleiro da triste figura. Então, para responder à sua pergunta, talvez tenha havido um lado quixotesco por exemplo na ação da esquerda armada contra a ditadura militar no Brasil, um “assalto ao paraíso” que não terminou bem, ao contrário do que se deu em Cuba. Um exemplo do Sancho com os pés na terra pode ser dado pela atividade do velho Partidão na mesma época, com suas políticas moderadas de atuação institucional dentro do MDB, o único partido de oposição tolerado pela ditadura, que varreu com seu sistema repressivo Quixotes e Sanchos, como tentei expressar literariamente nas páginas de Arrigo.

  • No romance, você traz um problema relevante sobre herdeiros e rentistas, retomando o tema a partir de Machado de Assis. O que você acha que mudou do Segundo Reinado até os tempos atuais?

Temos hoje no Brasil um capitalismo estabelecido com lugar subalterno e dependente na ordem mundial, herdeiro do velho patriarcalismo com o qual segue entranhado, dando especificidade a uma formação social autoritária, indissociável do escravismo do tempo de Machado de Assis. Um caso de desenvolvimento desigual e combinado da sociedade que inspirou o sociólogo Chico de Oliveira a compará-la a um ornitorrinco, animal estranho que amalgama características de diversas espécies. Aliás, aparece no romance um torturador que amestrava baratas e outros animais para usar em seu ofício, especialmente nos corpos de mulheres. O sonho dele era trabalhar com um ornitorrinco. Claro, o bicho remete ao livro do Chico. Quem se der ao trabalho vai encontrar no romance inúmeras referências a obras de ciências sociais junto com as literárias e artísticas. No fundo – embora com o formato ligeiro de folhetim, com capítulos curtos e muita ação de várias personagens –, o livro é uma síntese ficcional do que penso e sinto sobre nosso tempo histórico, a sociedade e a vida em geral. Há um lado subjetivo que não caberia nos limites de uma obra acadêmica com pretensão de objetividade científica.

  • Arrigo é uma espécie de Ulisses brasileiro. Ele se envolve com a Intentona Comunista. Luta na Guerra Civil Espanhola contra o fascismo de Franco; junta-se à Resistência Francesa contra o nazismo. E quando volta para o seu país precisa lutar por Penélope, que seria o equivalente à democracia, que era sequestrada pela ditadura militar. Em que termos você coloca essa figura?

Não tinha pensado nisso, mas faz sentido. Arrigo não deixa de ser um Ulisses brasileiro, um revolucionário cheio de defeitos, virtudes e problemas de consciência, herói e anti-herói, buscando “o triunfo da beleza e da justiça”, como o personagem central do filme Terra em transe de Glauber Rocha. Mas note, é preciso deixar bem claro que as menções nesta entrevista a Ulisses, Brás Cubas e outros personagens clássicos não significa que Arrigo tenha pretensão de se tornar um deles.

  • Como é a sua biblioteca literária? O que você lê no momento? (Pedimos uma fotografia de uma parte da biblioteca para o destaque da entrevista Estante do escritor.)

Minha biblioteca vem sendo formada ao longo de 50 anos, com predomínio das ciências sociais, mas com espaço expressivo para a literatura. Lá se encontram livros que usei para inspirar a redação de Arrigo, como os poemas reunidos em Estrela da vida inteira, de Manuel Bandeira, e Reunião, de Carlos Drummond. Também estão as já mencionadas obras de Machado de Assis, Cervantes e outras, algumas das quais aparecem na foto enviada para a revista Piparote. Na imagem também há livros nacionais bem recentes como Virando o Ipiranga, contos de Guilherme Purvin, e os romances A origem da água, de Ana Cristina Braga Martes, O réptil melancólico, de Fábio Horácio Castro, Cabo de guerra, de Ivone Benedetti, Pssica, de Edyr Augusto, além dos poemas de Régis Bonvicino em A nova utopia. No exato momento, estou (re)lendo dois livros de Clarice Lispector – A hora da estrela e A paixão segundo G. H. – como parte da pesquisa para informar meu novo romance, distanciado da tradição dessa autora clássica, que entretanto precisa ser levada em conta.

  • Então você está envolvido na escrita de um outro livro no campo da ficção?

Sim, praticamente terminei a primeira versão do segundo romance, que estou deixando descansar antes de seguir na tarefa de rever os originais, algo que faço sem cessar.  Também trata do tema da revolução entremeado com o cotidiano das personagens, mas numa chave diferente de Arrigo, pois não se trata de um romance sobre a História, embora esteja enraizado nela. O narrador do novo livro rememora o convívio com a jovem empregada doméstica de sua família nos anos 1960, quando era menino. A moça tinha um rádio portátil, difusor de programas com previsão do tempo e do horóscopo, transmissões de futebol, propaganda e muitas canções que afloram nas páginas do romance. O noticiário trazia acontecimentos extraordinários que atravessaram o cotidiano dela e das pessoas ao redor em cenas de amor e sangue no coração de São Paulo em plena ditadura militar. Triângulos amorosos, violência, fetiches, vida e morte enlaçados na trama ficcional em que a carga maior recai nos ombros da bela empregada, objeto de desdém e de desejo no mundo das mercadorias culturais que chegava para ficar.

ARRIGO
edição:1
selo:Boitempo
páginas:256
formato:23cm x 16cm x 2cmpeso:350 Gramas
ano de publicação:2023
encadernação:brochura
ISBN:9786557172056

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Marcelo Ridenti

Professor titular de sociologia no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, Marcelo Ridenti é autor de diversos livros de não ficção, como O segredo das senhoras americanas (2022), Em busca do povo brasileiro (2014), O fantasma da revolução brasileira (2010) e Brasilidade revolucionária (2010), todos pela Editora Unesp. É co-organizador da obra História do marxismo no Brasil, v. 5 e 6, com Daniel Aarão Reis (Editora da Unicamp, 2007). Arrigo é seu primeiro romance.

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Luis Marcio Silva

Formado pela UNESP. É escritor, tradutor e editor da Revista Piparote. Autor da dramaturgia "Dona Maria I - A louca de Portugal". Trabalha profissionalmente como webmaster.

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