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Entrevista com Thomas King, autor de Indígenas de Férias

Mimi e Bird são um casal indígena: ela Blackfoot, ele Cherokee. Os dois viajam pela Europa seguindo a rota dos cartões-postais enviados por Leroy Bull Shield, tio de Mimi, depois dele ter sido retirado de sua reserva indígena para se tornar atração em um show de faroeste. Ao partir, Leroy havia levado a bolsa Crow, um importante artefato da família, e é com o argumento de recuperá-la e descobrir o paradeiro do antepassado que Mimi e Bird justificam suas andanças pelo mundo. Uma aventura tão insólita quanto profunda, em que íntimo e político se encontram, e que nos faz pensar não apenas sobre o envelhecimento, o companheirismo e o amor, mas também sobre a violência física e simbólica cometida contra indígenas e refugiados.

Entrevista inédita e exclusiva de Thomas King a Luis Marcio Silva, maio de 2023

  • Como você juntou os materiais para escrever “Indígenas de férias” e como a história surgiu? Parece que você trabalha de forma híbrida, como jornalista e escritor de literatura. Poderia compartilhar conosco como você organiza esse material e como decide o que pode funcionar na arquitetura narrativa do livro?

A ideia de Indians On Vacation surgiu de uma viagem que fiz com minha esposa Helen, começando em Praga, passando por Budapeste e seguindo caminho por rio até Amsterdã. Muitos livros sobre povos nativos se ambientam em reservas. Gostei da ideia de um casal de aborígenes mais velhos e de classe média viajando por partes da Europa.

A organização dos materiais simplesmente acaba acontecendo. Nunca tenho um plano de como fazer isso. Em parte, essa organização é determinada pela história e como ela é contada: que voz eu uso, se primeira ou terceira pessoa. É como pisar na lama e mexer os dedos dos pés. A sensação é boa? É excelente. Então faço dessa forma.

  • Para a personagem Bernie a moeda de troca ao entrar para uma família é conhecer a história de determinada ancestralidade. Poderia explicar um pouco mais sobre como a história e a experiência de narrativas são importantes para a integração em uma determinada família ou etnia de seu país? E em relação ao termo “aldeia global” cunhado por McLuhan, você acredita que ainda estamos vivendo em um mundo cada vez mais conectado ou que esse conceito foi desmistificado de alguma forma?

Tudo aquilo que sabemos sobre nós mesmos e sobre as pessoas à nossa volta é uma narrativa pessoal. Assim, no final das contas, não existe uma narrativa tribal propriamente dita. Existem narrativas individuais dentro da comunidade tribal e elas são criadas e reelaboradas por vozes individuais.

Quanto a uma aldeia global, eu gostaria de achar que esse conceito é válido. E talvez seja mesmo. Mas isso não significa que nos damos bem uns com os outros. Nem que entendemos nossa conexão crítica com o planeta. Um “caos global” pode ser uma maneira mais apropriada de descrever essa aldeia.

  • O que os aborígenes que leem suas obras falam a partir de um lugar de pertencimento?

Para ser sincero, não faço ideia do que os outros povos nativos pensam de meus textos. Minha esperança é que eles gostem dos livros e que haja algo nos livros que fale com eles. Mas nunca fiz essa pergunta e ninguém me deu uma resposta.

  • Por que você escolheu ambientar a narrativa de “Indígenas de Férias” em Praga, a cidade natal de Franz Kafka? Existe alguma relação entre o enredo do livro e a obra do autor tcheco, como “O Artista da Fome”, cujo personagem é uma atração artística? Ou essa escolha se deu por outros motivos?

A opção de ambientar o livro em Praga foi baseada em uma frase. Quando saímos do avião, com muito calor, suados e cansados, Helen disse o seguinte: “Então, estamos em Praga”. Havia algo naquela frase que me chamou a atenção e ela sempre voltava à minha mente enquanto andávamos pela cidade. Por isso, se eu fosse usar a frase, teria que ambientar o livro em Praga. Eu gostaria de dizer que tinha algo a ver com Kafka. Mas não é isso. Pode-se dizer que a escolha de Praga como cenário foi feita por motivos artísticos e nada além disso.

  • Em uma conversa com sua amiga Margaret Atwood você conta histórias engraçadas sobre suas supostas “mentiras” que se tornaram exercícios para a matéria ficcional. Como essa experiência influenciou seu estilo de escrita?

Eu realmente não sei de onde surgiu meu estilo de escrita. Porém, o contador de histórias indígena Harry Robinson tem alguma relação com a construção do meu estilo. Seu livro Write It On Your Heart ainda é um dos meus favoritos. O homem era um contador de histórias maravilhoso. O resto provavelmente se deve ao meu amor pela sátira e pela ironia. O humor é uma grande parte do que eu faço. O humor permite que eu trate de questões difíceis, permite que eu me aproxime. Quando o leitor se dá conta do que aconteceu, já é tarde demais.

  • No Brasil, os indígenas sofreram violações desde a chegada dos colonizadores portugueses, há 500 anos. A negligência nos últimos anos da política brasileira, em detrimento de poderosos empresários, levou os povos originários a se retirarem de suas reservas. Como os artistas aborígenes enfrentaram e enfrentam essa calamidade no seu país. Existem organizações que apoiam os artistas nativos em suas lutas pelos seus direitos e pela preservação de suas culturas?

Acredito que a situação dos povos indígenas em todo o mundo seja parecida. Enquanto possuirmos terras e recursos, os interesses corporativos virão para roubar o que nos resta. Parece ser a natureza da política e da riqueza tomar o que não lhes pertence. Há organizações que estão tentando impedir esse roubo e essa destruição, mas elas simplesmente não têm os recursos nem o apoio para prevalecer, e o que estamos enfrentando atualmente é uma morte lenta. A ganância é uma doença mais forte do que o câncer. Ela transforma pessoas decentes em monstros.

  • Uma coisa que eu achei genial no seu romance é o jogo dramático que você cria com os Demônios, os personagens depressivos de Bird. Você aborda questões relevantes na obra em relação à saúde mental dos povos indígenas. Como você vê a importância de falar sobre esse tema na literatura e como acredita que isso pode contribuir?

Ah, Eugene e os Outros Demônios. Isso foi coisa da Helen. Quando eu estava começando o livro, Helen disse que se eu fosse lidar com índios contemporâneos em um ambiente também contemporâneo, eu deveria pensar em como lidar com os meus demônios. Não a ouvi claramente e achei que ela tinha dito que eu teria de lidar com Eugene, e eu disse, ah, certo, Eugene e os Outros Demônios.

A frase pegou e os demônios começaram a nascer. E foi uma ótima ideia. Tenho mais do que o suficiente de demônios, e Helen achou que eu poderia exorcizá-los falando sobre eles no romance. Não funcionou. Mas foi uma boa ideia. E eles criaram personagens maravilhosos, capazes de enfatizar alguns dos problemas que os povos nativos e outras pessoas enfrentam nesse mundo impessoal que criamos.

  • Poderia falar um pouco mais sobre os atuais escritores e artistas visuais contemporâneos pertencentes às comunidades indígenas do Canadá? Como você vê a evolução da arte indígena nos últimos anos e como ela tem contribuído para a representação e a valorização da cultura e história desses povos?

Acho que tenho tendência a ser introvertido. Fico em casa escrevendo ou fotografando. Não ando por aí como antes e, por isso, não sei muito sobre as organizações aborígenes no Canadá e sei ainda menos sobre a evolução da arte aborígene. A idade me deixou mais lento. Eu gostaria de fazer mais, mas só posso fazer o que é possível. Quando eu era mais jovem, era mais ativo e, agora que tive que me afastar, minha esperança é que a geração mais jovem dê continuidade ao esforço.

Título: Indígenas de férias
Autor: Thomas King
Gênero: romance
Páginas: 320
Formato: 13,5 x 20,8 cm
ISBN: 978-65-5553-094-0
Data oficial de lançamento: 25 de abril de 2023
Preço de capa: R$ 89,90

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Thomas King

É um premiado escritor e fotógrafo nascido em 1943, de ascendência Cherokee e grega, que vive em Guelph, no Canadá. Como acadêmico e professor universitário, pesquisou as narrativas orais indígenas; como ativista, criticou as políticas dos governos nos Estados Unidos e do Canadá em relação aos nativos americanos; como escritor lançou diversos livros, entre romances, contos, poesia e não ficção, com destaque para The inconvenient indian.

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Luis Marcio Silva

Formado pela UNESP. É escritor, tradutor e editor da Revista Piparote. Autor da dramaturgia "Dona Maria I - A louca de Portugal". Trabalha profissionalmente como webmaster.

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