ESTA ENTREVISTA foi iniciada por Roland Greene como parte de seu Programa Presidencial na Convenção da Modern Language Association, Austin, Texas, em janeiro de 2016; foi realizada em um dos salões de baile menores do Marriott Hotel. A sala estava literalmente lotada, com pessoas ocupando cada centímetro do chão e penduradas nas paredes. O público não era apenas formado por frequentadores da convenção: compareceram muitos funcionários do hotel, alguns deles fãs de longa data de Caetano Veloso.

A multidão não ficou surpreendida: Caetano Veloso consegue lotar regularmente o Hollywood Bowl e o Town Hall. Fundador do movimento chamado Tropicalismo, Veloso fundiu elementos pop e vanguardistas e tem um carisma incrível. Seus interesses em filosofia, política, cinema e outras disciplinas infundiram em sua música uma consciência crítica que é praticamente única hoje; ele tem sido frequentemente comparado a Bob Dylan e aos Beatles. E continua ativo como sempre, trabalhando com outros compositores, com poetas e artistas visuais.

Ambos encontramos Veloso pela primeira vez através de nossas leituras dos grandes poetas concretos brasileiros, especialmente Augusto e Haroldo de Campos, que colaboraram com Veloso em composições “verbivocovisuais”. Para nos prepararmos para a entrevista, enviamos ao Veloso um conjunto de perguntas. Ele estava um pouco nervoso porque acha que seu inglês não é muito bom; na verdade, é mais do que adequado, e quando ele estava confuso sobre um determinado termo, ele perguntava ao seu amigo na plateia, o poeta-filósofo brasileiro Antonio Cícero. Com o passar do tempo, ele ficou bastante relaxado.

No decorrer da entrevista foram exibidos três vídeos: a performance de Caetano Veloso de sua música “Alegria, Alegria” na televisão brasileira em 1967; a adaptação do crítico Gonzalo Aguilar do poema “O Pulsar”, de Augusto de Campos, com ambientação musical de Caetano; e a performance de Caetano de sua música “Sampa” (nome coloquial de São Paulo) em uma homenagem televisiva aos irmãos de Campos feita no início dos anos 1980. O livro de memórias de Caetano, Verdade Tropical (1997), traduzido para o inglês como Tropical Truth (2002), é citado com bastante frequência na entrevista.

O vídeo da entrevista completa aparece em um colóquio intitulado “Tropicalismo Fifty Years Later” no Arcade. A entrevista foi transcrita por Alexis Pearce e editada e ampliada para maior clareza.

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Marjorie Perloff: Deixe-me começar com uma grande questão. Caetano, você é ao mesmo tempo uma estrela pop aclamada e o artista-intérprete preferido dos Poetas Concretos Brasileiros, com quem trabalhou durante décadas, chegando a musicar alguns de seus poemas difíceis. Você diz em seu livro de memórias [Verdade Tropical: Uma História de Música e Revolução no Brasil, trad. Isabel de Sena, 2002] que “Tropicália” ou “Tropicalismo” era uma fusão muito especial do popular e da vanguarda, “uma mistura genuína das aspirações ridículas dos americanófilos, das boas intenções ingênuas dos nacionalistas, do atraso tradicional brasileiro,  “a vanguarda brasileira – absolutamente tudo na vida cultural real do Brasil seria nossa matéria-prima.” Minha pergunta é: o que há de especificamente brasileiro nessa mistura? O que você diria sobre a fusão do alto e do baixo, a sua fusão particular?

Caetano Veloso: Bom, a presença da cultura pop global (ou seja, principalmente americana) fez parte da nossa vida, sabe. Mas queríamos expressar a nossa própria cultura, reafirmar o aspecto nacional das nossas personalidades sem ter medo de sermos considerados submissos ao imperialismo, como a maioria dos nacionalistas de esquerda tentariam caracterizar-nos. E aí é preciso levar em conta o atraso do Brasil. Estamos atrasados, estamos atrasados, estamos subdesenvolvidos. [A plateia ri.] “Subdesenvolvido” é uma palavra antiga, não é? Agora somos emergentes. Mas naquela época ainda nos sentíamos subdesenvolvidos. E então todo tipo de coisa se tornou nossa matéria-prima, na verdade. O que posso dizer? O fato de termos conhecido os Poetas Concretos em São Paulo foi uma sorte porque, aliás, o Augusto de Campos, um dos três mais importantes Poetas Concretos de São Paulo, me procurou porque já tinha ouvido uma música minha antes do Tropicalismo. A música se chamava “Boa Palavra” e ele gostou. Ele também leu uma pequena entrevista que dei para uma revista no Brasil, e gostou dessas duas coisas e escreveu um artigo sobre aquela música e o que eu disse na minha entrevista [Augusto de Campos, “Boa Palavra sobre a Música Popular”, Balanço da Bossa e Outras Bossas (São Paulo: Editora Perspectiva, 1968), 59–65]. Ele não me conhecia. Eu era muito jovem e também não o conhecia porque a Poesia Concreta ainda não era tão conhecida. Então, desde que ele me procurou, ficamos juntos. Conversamos um pouco, não pouco, muito, porque ele falava muito do Lupicínio Rodrigues, que é um velho sambista do sul, um negro do sul. E de fato, no final, tínhamos muito o que conversar, e então ele começou a me mostrar coisas que eles escreviam, e antes de tudo coisas que eles gostavam de ler, do Brasil e do mundo. E então acrescentei essas coisas a tudo que eu tinha lido antes, essas coisas que essas pessoas me mostraram.

MP: Você acha que isso foi um fenômeno dos anos 1960? Ou esse tipo de conjunção ainda ocorre no Brasil até hoje?

CV: Bem, esse foi um momento, um período em que o alto e o baixo se misturaram e às vezes se juntaram. Mas no Brasil tinha um significado diferente, porque no Brasil a maior parte da nossa população era analfabeta e naquela época a maior parte das pessoas vivia na zona rural, no campo. E acho que isso ajudou a tornar as músicas pop tão importantes para a cultura. Isso fazia parte do nosso atraso. Mas o resultado é algo que acho que só poderia acontecer no Brasil. É muito parecido com o que aconteceu nos Estados Unidos. Algumas coisas são realmente paralelas. Por exemplo, a primeira vez que cantei com uma banda eletrificada, uma banda de rock, fui vaiado fortemente por intelectuais, estudantes, estudantes de esquerda, muito parecido com o que aconteceu com Bob Dylan alguns anos antes. Nós não sabíamos disso. Eu não sabia que isso tinha acontecido com Bob Dylan quando ele tocou guitarra pela primeira vez, com um grupo de guitarras elétricas, mas aconteceu porque Bob Dylan era para ser um cantor folk, e folk era considerado sério. Bob Dylan era fã de João Gilberto, fã de bossa nova. Ele disse isso em uma nota de capa de um de seus álbuns, e em seu livro de memórias, em suas Crônicas. Mais tarde, ele lembrou que quando era acústico e folclórico, era respeitado e não vaiado. E a mesma coisa aconteceu conosco. Há uma coisa engraçada nos Estados Unidos. Esse tipo de coisa parecia ser esquecido mais facilmente. As pessoas no Brasil dizem que o Brasil não tem memória, mas eu diria que é pior nos Estados Unidos, onde as pessoas agora presumem que Bob Dylan sempre foi rock ‘n’ roll!

MP: Já que estamos falando de coisas brasileiras, você poderia falar algo sobre sua infância em Salvador, quando conheceu Gilberto Gil e como começou, e sobre ter uma banda com sua irmã?

CV: Não tínhamos exatamente uma banda. Trabalhamos juntos; tocamos juntos no mesmo teatro, um pequeno teatro que foi construído por um grupo de jovens estudantes de teatro vindos da escola de teatro da Universidade da Bahia. A Universidade da Bahia no final dos anos 50, início dos anos 60, era realmente muito, muito importante e forte. Vim de Santo Amaro, minha cidade natal, para morar na Bahia na década de 1960 e encontrei esse ambiente. Vou te contar, vi a música de John Cage tocada ao vivo no auditório da universidade. Vi Camus e Brecht e grandes autores interpretados no palco por atores realmente bons. Esses atores tornaram-se conhecidos e importantes nacionalmente, e ao mesmo tempo Glauber Rocha, o diretor de cinema, começava a escrever críticas de cinema, resenhas de filmes, sei lá, e também outras coisas. Ele também escrevia sobre poesia e era muito jovem – mais velho que eu, mas ainda muito jovem. Eu tinha então 18 anos e conheci Gilberto Gil, dois anos depois de chegar em Salvador e naquele ambiente. Conheci Gilberto Gil. E isso foi incrível porque em 1959, antes de sair da minha cidade natal, ouvi João Gilberto. E ouvir João Gilberto foi uma revolução na minha cabeça; foi uma iluminação, realmente. Eu sabia que algo tinha que acontecer, algo já estava acontecendo e que o Brasil poderia ser mais livre e maior e poderia dar algum tipo de contribuição original para a civilização mundial. Porque é isso que os países deveriam ter como ambição.

MP: Foi nesse momento que você entrou em contato com Ezra Pound?

CV: Bem, Ezra Pound – me dá um tempo! [ Risos .]

MP: [ Risos .] Mas é uma boa história.

CV: Eu vou te dizer. Porque eu amei tanto o que o João Gilberto fez, quando vi o [Gil] tocando violão daquele jeito, ele conseguiu reproduzir com naturalidade todos aqueles acordes e andamentos e batidas complicados que o João Gilberto criou, e reestudar a tradição do samba. E fiquei maravilhado, e o Gil era negro. Mas você sabe, ele nunca disse que era negro ou mostrou qualquer reação ao fato de ser negro. Na Bahia, a maioria das pessoas é meio negra. Ele é meio negro. [Risos.] Nas minhas memórias digo que sou um mulato claro o suficiente para ser considerado branco até em São Paulo. E Gilberto Gil é mulato moreno o suficiente para ser considerado negro até na Bahia. [Risos] Então eu o conheci. Foi amor à primeira vista porque apesar de eu não ter nem metade nem um quinto da sua musicalidade, da sua musicalidade, ele gostou de mim. Eu o adorava porque o vi na televisão. E então quando ficamos juntos ele gostou de mim, como se eu tivesse tocado alguma coisa. Eu não joguei nada naquela época. Eu aprendi com ele. Olhei para as mãos dele e comecei, você sabe, a tentar reproduzir o que ele estava fazendo. E os sons responderam. Eu toco muito pouco, mas ele toca maravilhosamente.

MP: E…

CV: Então esse era o Gilberto Gil. Quanto a Ezra Pound [risos], o fato é que na Bahia eu ainda não tinha ouvido falar de Ezra Pound. Ouvi, li poetas brasileiros, principalmente Vinícius de Moraes, Cecília Meireles, principalmente Carlos Drummond de Andrade, e aquele que era meu preferido, João Cabral de Melo Neto, mais o poeta português Fernando Pessoa, e o espanhol Federico García Lorca. E essa foi a poesia que eu mais li, mas claro que ouvi falar de outras pessoas, mas não muito de Oswald de Andrade. Os Poetas Concretos de São Paulo me falaram de Oswald de Andrade. Mas o cara que me contou sobre Ezra Pound era um diretor de cinema, não um diretor de cinema, um diretor de teatro, Rangel, alguém Rangel, qual era o nome dele? Flávio Rangel. Eu mal o conhecia. Ele sabia quem eu era, eu sabia quem ele era. Augusto de Campos tinha escrito aquela coisa da minha música “Boa Palavra”. É uma música longa, sabe… Então ele me viu num restaurante ou em algum lugar do Rio, Flávio Rangel. Ele disse (tinha uma voz estridente): “Você deve ler Ezra Pound. Você deve ler Ezra Pound!”

MP: E você?

CV: Eu não fiz isso imediatamente. Eu estava tipo, “Ezra Pound? O que é isso?” E ele disse, o fato de ter achado a minha música – embora o Augusto de Campos tivesse gostado – achou a minha letra muito longa e pouco concisa. E então quando conheci o Augusto de Campos, ele me deu o ABC da leitura, da literatura, da leitura de literatura, e é aí que ele fala de concisão, o Ezra Pound. Mas quando fui ler os próprios Cantos, eles eram muito, muito longos. [Risos] Então tive que repensar a concisão e quase consegui.

MP: Você disse que a música “Alegria, Alegria” ajudou a iniciar o Tropicalismo. Em suas memórias, você relembra uma boate chique de Salvador chamada Anjo Azul e compôs uma música para seu público. Você escreve:

Queria criar uma música em sintonia com o público sofisticado do Anjo Azul, um retrato na primeira pessoa de um jovem caminhando pelas ruas do Rio; a imagem da cidade surgiria a partir de listas de produtos, personalidades, lugares, funções. À medida que a música avançava, compreendi que […] surgiu o que eu poderia chamar de distância crítica – que para mim é uma condição de liberdade – mas também havia a alegria inerente às coisas imediatamente à mão.

MP: Acho isso muito interessante, como “nada no bolso ou nas mãos”. Isso vem de novo e de novo. E então você diz que algumas das palavras vieram de The Words, de Jean-Paul Sartre . E também me perguntei se a ideia de andar pelas ruas da cidade partiu de Guillaume Apollinaire ou de Blaise Cendrars, cuja poesia era bastante popular no Brasil. Estou pensando em um poema ambulante, como “Zona” de Apollinaire.

CV: Só ouvi, só li alguma coisa do Apollinaire quando conheci os Poetas Concretos porque eles se interessaram em me mostrar os Caligramas. Mas o longo poema sobre caminhada, “Zona”, eu não li, não, naquela hora não, só mais tarde. Mas quanto a Sartre, sim. Acabei de transcrever a pequena parte do último parágrafo de “As Palavras”. Na verdade, quando li As Palavras, eu era tão jovem que pensei: “Este é o melhor livro já escrito!” E meu amigo Rogério Duarte, que era um pouco mais velho que eu e muito mais culto, me disse: “Isso mostra o quanto você é ignorante”. E fiquei um pouco triste. Anos – é verdade – anos depois, li Simone de Beauvoir depois da morte de Sartre, e num dos seus livros ela diz que As Palavras é o melhor livro alguma vez escrito. [Risos] Mas ela tinha outros motivos, eu acho.

MP: Eu também acho. Podemos ter o vídeo?

MP: Não é ótimo? [ Aplausos .] Você parece tão feliz neste filme, muito feliz, sorrindo. [Risos]

CV: A banda era argentina. Era um bando de argentinos. Não tínhamos monitores, na verdade. Era difícil cantar naquela época em uma emissora de TV no Brasil. Não é um bom monitoramento.

MP: Mas você está sorrindo o tempo todo.

CV: Eu estava sorrindo.

MP: Muito feliz. Nas letras, a sintaxe é um tanto dissociada, assim como em algumas poesias da época. Não é simples. Começa parecendo muito simples, mas na verdade não é. As palavras são bastante estranhas e distintas e, claro, a música também. Agora, quando jovem, você propositalmente se manteve afastado dos Estados Unidos, não gostando de Elvis Presley e do rock ‘n’ roll – você fala sobre isso – e querendo ir além da bossa nova brasileira. Por que você sentiu que queria evitar a influência americana? Como isso funcionou? Certa vez você comentou: “Os Estados Unidos são um país sem nome. O Brasil é um nome sem país.” Você quer elaborar essa distinção?

CV: Bem, eu não diria que estou distante dos Estados Unidos. Cresci ouvindo Frank Sinatra e Ella Fitzgerald e Miles Davis e Ray Charles. Sabíamos que os Estados Unidos estavam lá. A questão é que na minha geração – acho que não foi tão diferente nos Estados Unidos, embora os americanos tenham esquecido disso – o rock ‘n’ roll não era respeitado. Quer dizer, quem queria ter bom gosto e saber o que é música boa, não ouvia rock ‘n’ roll. E eu era uma daquelas pessoas pretensiosas. Há algo que Frank Sinatra disse que foi muito ofensivo naquela época. Mais tarde, ele tinha Elvis no seu programa de televisão e tudo mais, mas nos primeiros tempos, ele disse: “Hoje em dia, a música nos Estados Unidos, na América, é escrita e cantada por qualquer idiota com costeleta”. Coisas assim. E o rock ‘n’ roll antes dos Beatles, antes dos britânicos adicionarem prestígio ao rock ‘n’ roll, não funcionou. Era como música vulgar para jovens vulgares. E foi daí que veio a sua energia, na verdade. E a energia nos interessou muito, mas só começou a nos interessar a partir de meados dos anos 60 — de 65, 66 em diante. Antes disso, eu simplesmente não prestava atenção ao rock ‘n’ roll, sabe, porque ouvia Chet Baker, Ray Charles e Betty Carter, e isso era natural no meu ambiente. E acho que não foi tão diferente aqui [nos Estados Unidos]. Então eu não estava interessado em rock ‘n’ roll, mas no Brasil algumas pessoas estavam produzindo rock ‘n’ roll. Algumas pessoas da minha geração não foram respeitadas da mesma forma no início. Mas eu não estava nesse grupo de pessoas. Mas a música americana esteve muito presente na minha vida.

E então, de 1965 a 1966, comecei a olhar e ouvir rock ‘n’ roll com ouvidos diferentes. E isso se tornou uma coisa muito importante para mim, e a energia e as sugestões de novas criações, até mesmo intelectuais, realmente me capturaram. E isso foi um escândalo, esse foi um dos aspectos escandalosos do Tropicalismo, da Tropicália. O fato de estarmos prestando atenção ao rock, e nossos colegas, da nossa geração, não estavam, e alguns ainda não estão. Por exemplo, Chico Buarque, ele não estava prestando atenção nisso. Mas aí ele entendeu e começou a usar as coisas por causa do Tropicalismo, e de algumas outras pessoas também. Mas, por exemplo, Dori Caymmi, ele odeia isso até hoje. Ele ainda odeia a ideia de que estávamos interessados nos Beatles em 1966. Ele ainda não aceita isso. É maravilhoso. Ele é um ótimo músico; ele é um ótimo colega. Ele é incrível, mas fala sério quando diz que não gosta. Nem Nana Caymmi, sua irmã. Ela diz: “Não, não, não, não, Tropicalismo, não. Eles gostam dos Beatles.” Mas houve quem se interessou pelo rock desde o início como Roberto Carlos. Raul Seixas era baiano, da mesma idade que nós. E ele fazia rock ‘n’ roll, mas não era respeitado pelos estudantes, pelos intelectuais e pelos músicos refinados porque o correto era enriquecer as harmonias, como no jazz moderno e na bossa nova. Então, os três acordes de rock ‘n’ roll e a voz gritante, tudo isso era meio vulgar aos nossos ouvidos. Eles ainda estão aos ouvidos de Dori Caymmi, mas me apaixonei por isso em 1965.

MP: Agora vamos passar para um capítulo um pouco mais sombrio de sua vida – a época do golpe militar em 1964 que levou à sua prisão e prisão em 1968, para atividades supostamente subversivas. Quer contar um pouco sobre isso? E como você aprendeu inglês – na verdade tem um final feliz em alguns aspectos, porque foi por causa do seu exílio, primeiro em Portugal e depois em Londres, que você fala tão bem inglês.

CV: Bom, primeiro para Portugal, depois para França, depois para Inglaterra. Sim, vivemos dois anos e meio no exílio na Inglaterra. Mas tinha uma coisinha que eu queria dizer, mas esqueci – alguma coisa sobre o Brasil, sobre os Estados Unidos, um país sem nome, e o Brasil é um nome sem país. Queria dizer algo sobre isso porque, muito antes disso, Godard colocou essa afirmação num dos seus filmes, um diálogo em que um rapaz pergunta a uma rapariga: “Que país é este que se chama Estados Unidos da América?” América não é o nome do país. América é o nome do continente. E todos os peruanos, brasileiros, argentinos, todos dizem que são americanos e têm razão. Portanto, América não é o nome do país. E Estados Unidos não é um nome, é uma descrição. E o Brasil costumava ser chamado – o nome oficial do Brasil costumava ser – Estados Unidos do Brasil. E o México ainda acho que são os Estados Unidos do México. É uma descrição. Basta dizer república, federação, tanto faz. Portanto, os Estados Unidos não têm nome, mas vocês construíram um país. Nós não fizemos isso. A gente tinha esse nome que era só o nome de uma planta, de uma árvore que dava cor ao tecido. E é o Brasil. É um nome engraçado, você sabe, e fica na sua mente por algum motivo. E havia uma lenda na Irlanda sobre uma ilha chamada Brasil que seria o lugar utópico do mundo. Você sabe que coincide com o nome da árvore. Então quanto ao nome, e também temos um hino não oficial, que é uma música que aqui é conhecida como “Brasil” [cantarola a melodia]… “Brasil”. Começa em português. No Brasil, é sentido como se fosse mesmo um hino. Ainda hoje. E começa dizendo: “Brasil, meu mulato”. O país é chamado quase oficialmente de “mulato”. Essas coisas são importantes. Essas coisas circulam. O nome, o mito do Brasil que está inscrito no seu nome, então um nome que nós temos, mas não construímos o país. É por isso. Pois bem, você estava me perguntando outra coisa e lamento tê-lo interrompido.

MP: Sobre a sua prisão e tempo de prisão; foi, você escreveu, um capítulo sombrio.

CV: O tempo na prisão foi horrível, terrível. Para mim. Conheci muitas pessoas que foram presas e para elas foi simplesmente desagradável. Para mim, foi um inferno. Para mim, foi um pesadelo. Não sou adulto o suficiente para enfrentar esse tipo de situação. Eu não estava. E aí se passaram dois meses, e eu fiquei na solitária primeiro, e quase enlouqueci, e depois fomos levados para a Bahia, e ficamos numa espécie de prisão domiciliar por mais quatro meses. Tínhamos que nos apresentar todos os dias a um coronel e não podíamos sair, ultrapassando os limites da cidade. Não pude nem ir para minha cidade natal, que ficava a 70 quilômetros de Salvador. E então eles nos exilaram. Nos convidaram para sair do Brasil porque não sabiam o que fazer conosco. Foi uma coisa que nos colocaram na prisão, e ficamos famosos, iniciando nossas carreiras. Não seria fácil para eles explicar se isso se tornasse conhecido. Porque a imprensa foi censurada, as coisas não foram…

MP: Mas você não foi julgado por nada, foi?

CV: Não. Julgamento? Naquela época, não. Sem julgamento.

MP: Então te exilaram para Portugal, certo, e depois para Londres?

CV: Fomos para Portugal, passamos umas duas semanas lá. Depois fomos para Paris. O nosso empresário já estava na Europa e sugeriu-nos que fôssemos para Londres porque Paris estava na ressaca de 1968. Era 1969 quando lá chegamos e Portugal ainda estava sob uma ditadura, a sua antiga ditadura. E a França ainda estava no rescaldo da coisa de 68. Nunca pensamos em vir para os Estados Unidos porque o país estava turbulento. Foi quando os seus alunos protestavam contra a Guerra do Vietnã. Era muito parecido com o medo que tínhamos no Brasil. Você pode ver filmes como Zabriskie Point, que Antonioni filmou nos Estados Unidos – você vê como era a América naquela época. Assim, a Europa deveria estar mais calma, apesar de Paris estar na ressaca do evento de 1968. Mas foi totalmente controlado. Foi desagradável porque pediam nossos passaportes em todos os cantos. Aí nosso empresário disse que era melhor irmos para Londres por dois motivos: é calmo, não é preciso pedir passaporte e a música é ótima, como sabíamos.

MP: Você gostou de Londres?

CV: Não, não a princípio, não. Achei escuro e sombrio, realmente, e muito diferente. É outro planeta, Inglaterra, é um planeta diferente. Ainda é. É muito mais continental agora, como dizem, mas ainda assim é como se fosse outro planeta. Então senti que sentia muita falta do Brasil. Odiei que o Brasil tivesse se tornado meu inimigo porque era uma das coisas que mais amei na minha vida. A ideia de Brasil e a sensação física de estar no Brasil. Essas duas coisas são intensamente amadas pelo meu coração, por isso sofri muito. Passamos dois anos e meio em Londres. No primeiro ano eu simplesmente não conseguia gostar de nada. No segundo ano já estava gostando dos bancos na grama verde e do comportamento das pessoas. A tradição liberal, você sabe, do povo inglês, e o tipo de sabedoria que eles possuem. São muito europeus, mas não são assim tão europeus. Eles encontram equilíbrio em tudo. Eles fazem piada quando necessário. Eles estão sempre um pouco distantes, mas de um jeito simpático. Majoritariamente.

 

 

Roland Greene: Um capítulo de suas memórias discute sua relação com os Poetas Concretos. Augusto de Campos foi o primeiro a resenhar um de seus primeiros discos. Você esteve próximo deles ao longo de sua carreira; só Augusto ainda vive. E você elogiou o abandono radical deles da sintaxe discursiva, e depois também disse que suas canções eram elas mesmas um novo tipo de poesia que você queria estabelecer, uma nova forma de ser poeta. Você poderia falar um pouco mais sobre seu relacionamento com eles?

CV: Estive com o Augusto há duas ou três semanas. Fomos a Brasília porque ele estava sendo condecorado pela presidente da República, Dilma Rousseff. E no Brasil está muito polarizada a situação política. E as pessoas se opõem à presidente e ao seu partido, e Augusto os apoia. E ele aceitou a condecoração principalmente por causa disso. Então eu fui. Ele me convidou, eles me convidaram, para ir lá e cantar duas ou três músicas também, como parte da homenagem a ele. E foi o que fiz. E as pessoas diziam: “Como você pôde ir e estar lá com a Dilma?” Mas eu achei certo porque votei na Dilma, aliás, porque fiz todas as contas, e resolvi votar na Dilma. É difícil, é muito complicado de explicar, mas o resultado é que votei na Dilma. E Augusto, dada a sua posição, fez campanha por ela porque queria deixar isso claro. Ele é muito, muito animado, lúcido, criativo e exigente. Ele é muito exigente e rigoroso. Ele ainda é o mesmo cara, nos vemos de vez em quando e conversamos. A questão é que você disse que eu disse algo sobre ser eu mesmo, sobre ser poeta. Mas foi uma coisa diferente. Foi tipo, pensei que nunca quis ser poeta. Eu queria ser pintor e depois quis ser diretor de cinema. Eu queria fazer filmes. Eu escreveria coisas, principalmente prosa, não poemas. Eu sabia que poderia escrever. Eu adorei ler. Eu gostava de poesia, mas a ideia do poeta…

Por exemplo, como Godard foi muitas vezes poeta ao fazer os seus filmes, eu queria ser poeta ao fazer as minhas canções, cantá-las e desempenhar o papel de compositor-cantor, cantor-compositor de uma forma que tivesse como resultado algo que se chamaria poesia. Mas não que minhas letras fossem poesia em si, sabe. Foi a combinação de todas as coisas. Lembro que Jorge Ben, o compositor negro brasileiro que começou a fazer bossa nova. Ele começou a fazer a bossa nova do jeito dele, um jeito muito personalizado de fazer a bossa nova, uma bossa nova mais negra, mas ainda na época da bossa nova. Ele era uma espécie de poeta conceitual porque apenas atendia ao briefing que um cineasta lhe dava para explicar como seria o filme para que ele pudesse fazer uma música sobre o tema do filme. Ele apenas colocou música no texto que recebeu, no briefing, você sabe. Basta colocar música no briefing. E então, em outro momento, ele escreveu uma canção cujo verso era apenas uma lista de títulos de Dostoiévski, títulos de romances. E em outro lugar ele escreveu uma música que acabou de ser copiada de um livro didático, de história, sobre o negro no Brasil. Mas a partir do livro didático, você vê? Ele era bossa nova, mas depois começou a convidar estilos R&B para sua criação e começou a tocar guitarra elétrica. Ele era um supertropicalista na mesma época em que tentávamos criar aquilo que se tornou o que se chama Tropicalismo. Então eu pensei que ele era uma espécie de superpoeta.

O melhor letrista da nossa geração é Chico Buarque. Tudo o que ele escreveu é perfeito. Nenhuma sílaba não combina com uma nota na melodia. Sua prosódia é perfeita e as rimas são abundantes. Elas nunca são forçadas. São naturais em termos de som e necessárias em termos de conteúdo. Ele é realmente um mestre. Mas Jorge Ben é uma coisa mais suja, e só, você sabe, transpondo textos existentes para suas músicas, e desaparecendo e reaparecendo. O resultado disso para mim foi tipo, “isso é poesia”, você sabe. E foi isso que eu quis dizer quando disse que queria que meu trabalho pudesse ser um novo tipo de poesia.

RG: Vejamos um exemplo de uma adaptação sua de um poema de Augusto de Campos. Este é o poema de Augusto, “O Pulsar”. O poema original, que temos aqui, pertence à fase posterior da Poesia Concreta no Brasil em que os poemas se tornam menos viscerais e mais sintáticos. Você adaptou isso desde o início. Tenho um exemplar da primeira edição da coleção de poemas do Augusto, o Viva Vaia , que tem um disco — um disco arranhado — de você fazendo “O Pulsar”.

CV: Sim.

RG: Então, a austeridade da melodia que você trouxe combina com as convenções gráficas do poema em que, como você pode ver, uma lua, que representa o “o”, cresce de tamanho ao longo do poema, começando com a primeira letra do poema. E uma estrela que encolhe representa a letra “e”. Então, vamos reproduzir o vídeo número dois e depois você pode nos contar sobre isso.

MP: Você quer dizer algo sobre como isso aconteceu?

CV: Eu gosto disso.

MP: [Risos] Eu adoro isso. Eu acho ótimo.

CV: Eu faço. Fiz mais duas ou três versões disso tocando só com meu violão, depois com uma banda com instrumentos diferentes, mas sempre nessa nota alta, na estrela, na bateria ou o que quer que seja, bumbo na lua. Este é um lindo poema.

MP: Vamos relembrar um pouco a sua história agora, quando você voltou de Londres para o Brasil. Você sente que seu trabalho mudou ou você mudou? Foi uma transição difícil? Como foi isso? Na verdade, você não fala muito sobre isso nas memórias. Deve ter sido uma transição difícil.

CV: Foi, de fato. Fiquei muito feliz por estar de volta ao Brasil, realmente mudou tudo. Lembro que se eu estivesse no carro e ligasse o rádio, e tocasse uma música americana ou inglesa, eu girava o dial para ouvir música brasileira. E eu ainda faço isso, sim, ainda faço isso. Isso não me ajudou muito com meu inglês, mas o que posso fazer? Fiquei muito feliz e vou te contar. Eu e minha esposa então decidimos que desde o início não teríamos filhos, assim como Sartre e Simone de Beauvoir, mas depois quando voltamos ao Brasil, na Bahia, comecei a sentir a necessidade de ter um criança, e era uma necessidade física. E eventualmente ela se juntou a mim, e tivemos um filho, e isso mudou minha vida de forma tão incrível que não consigo explicar. Então agora tenho três filhos, três meninos, e foi porque voltei para o Brasil. [Risos e aplausos.] Então minhas músicas mudaram: o rock ‘n’ roll agora se tornou a música nobre, expressiva e popular, você sabe. Era uma porcaria, mas agora era a coisa nobre. Tudo bem. A brigada do rock ‘n’ roll reagiu contra o excesso de MPB [Música Popular Brasileira] que eu estava fazendo quando voltei. Aí me colocaram do outro lado: “Agora ele é Música Popular Brasileira, não é rock’n’roll”. Então tem sido um vaivém, essa relação com o rock ‘n’ roll, e começou quando voltei para o Brasil. Antes de voltar para o Brasil, eu sentia tanta falta do Brasil que quando estive em Londres, músicas que escrevi antes disso, músicas que escrevemos, embora não fossem rock ‘n’ roll, admitiram a existência do rock ‘n’ roll . Eles admiraram e adoraram. Mas eles não eram rock ‘n’ roll. Mas alguns eram mais rock ‘n’ roll. E assim aconteceu.

MP: Você manteve as mesmas amizades e associações quando voltou? O Brasil deve ter mudado muito.

CV: Basicamente, sim. Na verdade, quando estivemos no Brasil, antes de sermos presos, alguns dos nossos colegas ficaram zangados conosco. Alguns nem falavam conosco porque usávamos guitarras elétricas. Sim. Mas depois, quando fomos presos e exilados, e depois voltamos, todos os nossos amigos voltaram a ser amigos, embora alguns, como Dori Caymmi, ainda não aceitem o que fizemos naquela época. Ou ele aceita tudo o que fizermos agora – apenas quando for suficientemente brasileiro e harmonicamente rico, porque você pode ser muito americano para essas pessoas se imitar Chet Baker ou Miles Davis ou Thelonious Monk, mas se você mostrar interesse em Paul Anka, não.

MP: Isso é engraçado.

RG: As últimas décadas foram uma parte muito fértil da sua carreira. Sua música permanece incansavelmente exploratória. Nunca é nostálgico, até o presente, até o disco mais recente, Abraçaço. Como você vê as fases da sua carreira nos últimos 20 anos ou mais?

CV: Ainda é algo que estou explorando. Faço um esforço para justificar o fato de estar trabalhando profissionalmente com música porque pensei, tinha a ilusão de que iria fazer isso por um ano e meio, e depois deixar para fazer outra coisa e deixar para Gil e Gal [Costa] e [Maria] Bethânia e meus amigos mais próximos a continuarem com a música porque eu não me achava musicalmente talentoso o suficiente, e ainda não acho. Mas eu percebi, reconheci que tinha feito algumas coisas relevantes, e por isso quis, e o fato de ter sido preso e ter sido exilado, isso deprimiu-me um pouco, para não dizer muito. E isso me deixou menos corajoso para dizer: “Ok, não vou mais fazer música”. Eu já estava fazendo música. Então eu tive que continuar com o que fosse confortável para mim. A coisa se resolveu sozinha, sabe, então eu segui, mas queria justificar o fato de que estava fazendo isso. Portanto, tenho feito esforços para soar e parecer relevante para mim mesmo, do meu ponto de vista. Então ainda sinto que estou procurando… devo fazer algo que realmente justifique minha criação musical.

MP: Você acha que agora que é tão famoso, há demandas de seu tempo que são irritantes ou difíceis?

CV: Às vezes, às vezes, mas não. Eu provoco. Faço coisas que sei que são de certa forma provocações, e às vezes ainda faço isso. Acho que isso me faz sentir mais vivo e pode fazer outras pessoas se sentirem mais vivas.

RG: Vamos mostrar mais um vídeo. Isso foi gravado no início dos anos 80. É a música “Sampa”; é de um programa de TV brasileiro, e a primeira pessoa que você vê nesta primeira cena é o falecido Haroldo de Campos.

CV: Haroldo!

RG: Últimas reflexões, mais alguma coisa que você queira dizer que não tenhamos perguntado?

MP: Quer dizer algo aos jovens artistas ou aos jovens universitários do público que querem ser artistas? Que conselho você dá a eles para suas vidas neste momento difícil?

CV: Eu só quero agradecer a eles. Só quero agradecer por se interessar pela nossa conversa. [Para Perloff] Quero agradecer por ter vindo aqui falar comigo. Você sabe que te amo. [Para Greene] Tenho que agradecer por me convidar. E tem sido um prazer. Eu estava nervoso. Sempre tenho medo de não entender o que as pessoas dizem quando falam inglês. Posso falar mais ou menos, mas para entender o que os outros falam não é… estou sempre precisando de legenda.

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Marjorie Perloff

É autora de muitos livros sobre poesia e poética moderna e contemporânea, incluindo The Poetics of Indeterminacy: Rimbaud to Cage , The Futurist Moment , Wittgenstein's Ladder e Unoriginal Genius: Poetry by Other Means in the New Century . Seu livro de memórias The Vienna Paradox foi publicado em 2004. Ela é professora emérita de inglês na Universidade de Stanford.

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Roland Greene

É professor de Inglês e Literatura Comparada na Universidade de Stanford. Greene é um especialista da Renascença, com vários livros sobre poesia em seu currículo; sua segunda especialidade é a escrita brasileira, especialmente Poesia Concreta, e é fluente em português. Greene é o editor-chefe da quarta edição da Enciclopédia de Poesia e Poética de Princeton (2012).

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