Numa carta de 1908, Virginia Woolf dizia querer “reformular o romance e capturar as multidões de coisas hoje fugidias” e “dar forma a uma infinidade de formas estranhas”. De fato, nas décadas seguintes ela ajudaria a promover, ao lado de escritores como James Joyce, Marcel Proust e William Faulkner, uma verdadeira revolução no romance moderno, em obras célebres como Mrs. DallowayAo farol e As ondas. Foi, porém, nos contos que ela aperfeiçoou as técnicas narrativas que empregaria em seus romances.

Organizado por Susan Dick, estudiosa da obra woolfiana, este volume reúne todos os contos e esquetes da autora, num total de 46 histórias, desde “Phyllis e Rosamond”, de 1906, até “O lugar da aguada”, escrito semanas antes de sua morte, em 1941. Com sua prosa lírica, súbitas mudanças de perspectiva e mergulhos profundos no mundo interior das personagens, Virginia traz para seus contos toda a sutileza e complexidade que a ciência, a filosofia e a psicanálise começavam a desvendar a respeito da natureza subjetiva e relativa da realidade.

Além de ter estado na vanguarda artística de seu tempo, a autora foi também pioneira na causa feminista. Narrando histórias em sua maioria sobre mulheres, usou a escrita para colocar em questão o papel secundário destas na literatura e na sociedade e para desafiar, com coragem e ironia, os privilégios masculinos. Este e outros aspectos de sua prosa são analisados no prefácio inédito do poeta Leonardo Fróes, escrito especialmente para esta nova edição — revista e anotada — de sua já consagrada tradução.

Sobre a autora:
Adeline Virginia Stephen nasceu em 1882, em Londres. Foi educada em casa, numa época em que a formação universitária era vedada às mulheres. Em aulas particulares, estudou latim com Clara Pater e grego com Janet Case, línguas nas quais se iniciara em cursos livres no King’s College. Com a morte dos pais, Virginia e seus irmãos mudaram-se para Bloomsbury, área central de Londres onde viria a se constituir o famoso grupo composto por eruditos, escritores e artistas renovadores. Em 1905 Virginia estreou como resenhista do Times Literary Supplement, função que exerceu por toda a vida. Em 1912, ao se casar com Leonard Woolf, do grupo de Bloomsbury, Virginia passou a usar o sobrenome do marido, com o qual assinou seu primeiro romance, The Voyage Out (1915), seguido por Noite e dia (1919), O quarto de Jacob (1922), Mrs. Dalloway (1925), Rumo ao farol (1927), Orlando, uma biografia (1928) e As ondas (1931), além do livro de contos Monday or Tuesday (1921). Em 1917 criou com Leonard a Hogarth Press, editora que publicou, além da própria Virginia, outros autores modernistas, como T. S. Eliot, Katherine Mansfield e W. H. Auden. Afetada pela brutalidade da Segunda Guerra Mundial, pelos bombardeios em Londres e por seguidas crises nervosas, em 1941, um mês depois de concluir seu último romance, Between the Acts, Virginia Woolf se afogou no rio Ouse, próximo à sua casa de campo em Sussex.

Sobre o tradutor:
Leonardo Fróes nasceu em 1941 em Itaperuna, no interior do Rio de Janeiro, e se criou na capital. Viveu os anos de aprendizagem em Nova York e na Europa, e mora em Petrópolis desde o começo da década de 1970. Foi editor, jornalista, enciclopedista. Traduziu dezenas de livros do inglês, francês e alemão, de autores como Shelley, Goethe, Swift, Choisy, Faulkner, Virginia Woolf, George Eliot e Malcolm Lowry, e teve sua obra poética publicada no volume Poesia reunida (1968-2021). Recebeu o Prêmio Jabuti de Poesia, em 1996, por Argumentos invisíveis, venceu os prêmios de tradução da Fundação Biblioteca Nacional, em 1998, e da Academia Brasileira de Letras, em 2008, além de ter recebido o Prêmio Alceu Amoroso Lima — Poesia e Liberdade, em 2016.

Sobre a organizadora:
Susan Dick (1940-2010) foi professora emérita na Queen’s University, em Kingston, Ontario, e fellow da Royal Society of Canada. Nascida em Michigan, obteve o seu doutoramento na Northwestern University, em Chicago. Entrou para o Departamento de Inglês da Queen’s University em 1967, tendo desempenhado papel central no desenvolvimento da área de estudos feministas da universidade. É considerada uma das mais distintas estudiosas da obra de Virginia Woolf no século XX. Publicou numerosos artigos sobre a escritora, produziu edições críticas de seus romances (To the Lighthouse, 1982; Between the Acts, 2002) e foi a responsável pela edição de seus contos completos, The Complete Shorter Fiction of Virginia Woolf (1985).

Texto de orelha:
Quando se fala em Virginia Woolf (1882-1941), costuma-se pensar nos romances belos e vanguardistas que a consagraram, como Mrs. DallowayAo farol e As ondas, com suas personagens femininas marcantes e seu uso muito próprio do discurso indireto livre. No entanto, foi nos contos que primeiro irromperam as experimentações de Virginia.

Em 1921 — portanto um ano antes do “ano mágico” do modernismo —, ela anota em seu diário um diálogo com o poeta T. S. Eliot. Desconsolada com a dificuldade da tarefa que se propunham como escritores, ela diz que eles não eram tão bons quanto Keats. “Somos, sim”, discorda Eliot: “O que estamos tentando fazer é bem mais difícil”. O que eles buscavam, cada qual a seu modo, era romper com o realismo vitoriano, preocupado com uma representação linear e objetiva da realidade que desconsiderava o caos das paisagens interiores das personagens. De modo que, tal como um número significativo de artistas no início do século XX, Virginia abraça os fragmentos, a mudança e a incerteza como meios mais adequados para revelar uma pessoa — ou um mundo.
Pela brevidade da forma, de saída os contos iluminaram para ela as possibilidades de explorar esses aspectos em uma unidade mínima e não estanque de tempo: o momento. Não se tratava de qualquer momento, porém, e sim daquele que pudesse combinar passado e presente, representação objetiva e consciência subjetiva. Um momento que aglutinasse um universo de minúsculas e múltiplas impressões, exteriores e internas, tanto humanas quanto não humanas. Cores e sensações, percepções de animais e uma espécie de consciência primordial, que navega com liberdade, tomam o primeiro plano. Tal descoberta desdobra-se em histórias que lhe valeram o rótulo de “escritora impressionista”, como “Kew Gardens” e “A marca na parede”. Mas seus contos, que ela escreveu durante toda a vida, não se limitaram a registrar a evanescência do tempo nem a fazer do papel uma tela.

Há uma atração pela incompletude narrativa, herdada de seu amado Tchekhov. Há a correspondência entre os contos e os interlúdios, ou intervalos, dos seus romances. Há, é claro, um diálogo direto com as novas concepções das artes visuais do período em que ela viveu. E há quem sustente que ela “descobriu os poderes do cinema”, pela habilidade de condensar a narrativa em detalhes diminutos e, em seguida, expandi-la enormemente.
A edição de seus Contos completos, organizada por Susan Dick, foi um marco para entender a complexidade de sua ficção breve. A obra — que destacou a centralidade destes para a constituição de Virginia como escritora — foi traduzida entre nós por Leonardo Fróes e ganha agora esta nova edição. Foi justamente por meio desta tradução que, na voz poética de Fróes, primeiro me encantei com Virginia Woolf anos atrás. Como poucos, ele soube verter com sensibilidade a sua prosa para o português.

Se por um lado as obras de Virginia desafiam classificações literárias (serão esses contos de fato contos, ou crônicas, poemas em prosa, ensaios?), por outro a autora confessa que só lhe interessa “pastar”, como diz, o mais próximo possível de suas próprias ideias. Imperturbada por nomenclaturas, Virginia seguia, dando voltas por ruas e campos enquanto criava em voz alta “frases e situações sobre as quais escrever”. É graças a obras como esta que, quase um século depois, ainda temos o privilégio de seguir ao seu lado e ouvir sua voz.

Ana Carolina Mesquita

Virginia Woolf
Contos completos
Tradução e prefácio de Leonardo Fróes
Organização, fixação de texto e notas de Susan Dick
376 p.
16 x 23 cm
582 g.
ISBN 978-65-5525-148-7

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