Pelos cálculos de A. Alvarez, poeta estudioso dos dons da noite, uma pessoa sonha de uma hora e meia a duas horas por noite. Daí vem a conta extraordinária: “Se chegar aos setenta anos, terá passado vinte e três deles dormindo e, não importa de quanto se recorde, entre cinco e seis desses vinte e três anos terão sido gastos em sonhos vívidos”.
Pois então, imagine só você. Cinco anos inteiros de sonhos vívidos. Seja qual for seu dia a dia, sua paisagem de gente e coisas queridas, seu rol de hábitos e requadros precisos, haverá sempre ali, gotejando, noite após noite, esse outro tempo secreto, de vida sonhada, clandestina, louca, em que você pode o impossível, como alçar voo batendo os braços até pairar sobre cidades, ou conversar sem espanto com pessoas que já não existem, ou entrar muito à vontade numa casa nunca vista… e por mais confusa ou estrambótica que eventualmente a vida por aqui lhe pareça, haverá sempre essa outra, inimaginavelmente mais confusa e estrambótica, que também tem seu tempo.
Horas, cumuladas em anos, de bruma, céus navegáveis pelo corpo nu, lagos inóspitos, amores canibais, elmo afundado pela marreta do inimigo, barbaridades, façanhas, um arrojar-se por cômodos decadentes, um grimpar agulhas de rocha até a entrada de um velho templo, e estar na pele de um bicho, nos olhos de um inseto, num tronco de árvore, ser de outro rosto, trair lei e lógica, assim, gota a gota, por horas que vão crescendo num mar de anos, e quantas vezes não voltamos dessa outra vida de fato molhados, eriçados, enleados ainda a alguma outra pele, algum outro país, outro tudo…
Sonhemos, pois, sonhemos amiúde, tanto quanto seja possível ao salvaguardar as horas de sono, e logo serão anos de vida noutra dimensão, dentro mesmo desta vida. E quem atenta contra o próprio sono, varando noites em claro, culposamente matando os próprios sonhos, como irá repor essa outra vida? Então pode a escrita esse impossível?
Mariana Ianelli
Nasceu em São Paulo em 1979. Formada em jornalismo, mestre em literatura e crítica literária, estreou na poesia em 1999 com Trajetória de antes. Em 2013, estreou na crônica com Breves anotações sobre um tigre. É também autora de dois livros infantis. Desde agosto de 2018, edita a página Poesia Brasileira no Rascunho. Escreve quinzenalmente, aos sábados, na revista digital de crônicas Rubem.