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“Atirando-se no escuro”: um diálogo com Anne Carson

Entrevista de Kate Dwyer
Tradução de Gustavo de Almeida Nogueira

Anne Carson e eu nos encontramos por meio da plataforma Zoom em outubro do ano passado, na sala de estar vermelho-tijolo de seu apartamento em Reiquiavique — cidade onde ela e seu marido, Robert Currie, passam uma temporada anual desde 2008. Encostada na parede, nota-se uma peça teatral pintada por Ragnar Kjartansson. Pela janela: o oceano e a vastidão árida da Islândia. “A América parece tão caótica, vegetativamente”, disse Carson. “Árvores por toda parte, plantas por todos os lados, flores. Aqui há apenas o vazio. Há lava, há o mar. Há apenas linhas. Espaço vazio”.

O espaço vazio é um dos recreios criativos de Carson. “Lecture on the History of Skywriting" — a peça central da sua última coletânea de textos, intitulada Wrong Norma (2024, ainda sem tradução para o português) — é narrada pelo céu, ou pelo próprio espaço personificado. Formalmente, enquanto outros tradutores de Safo preencheram as lacunas entre os fragmentos da antiga poetisa, If Not, Winter (2002) de Carson marca o espaço negativo com parêntesis, sublinhando a perda de linhas e estrofes sofrida ao longo da história. Carson tem explorado frequentemente a ausência como presença: Eros the Bittersweet (Eros, o Doce-Amargo, editora Bazar do Tempo, 2022) defende
que o desejo nasce da falta, enquanto Nox (2010), uma elegia ao seu falecido irmão, Michael, lamenta a ausência final de alguém que já há muito havia desaparecido de sua vida.

Encontramo-nos para falar de Wrong Norma, o primeiro trabalho inédito lançado por Carson em sete anos, a que ela chamou de “uma coleção de peças díspares, não algo coerente com uma linha condutora ou temas ou uma forma de leitura”. Mas certas imagens, frases e ideias são insistentes: pão, sangue, seixos, uma raposa, advogados, um coração das trevas, John Cage, a palavra errado e vários sabores de errado — a título de exemplificação. “Não tenho muito a dizer”, comentou Carson. No entanto, ao longo de duas horas de conversa, encontramos muito sobre o que falar.

Kate Dwyer: Conte-me sobre o “errado” no título de Wrong Norma (“Norma Errada”, em tradução livre).

Anne Carson: Quando me perguntam: “em quê os canadenses se diferem dos americanos?”, eu respondo: “os canadenses têm uma singular caraterística: são educados, mas errados”. O tempo todo: educados, mas errados. “Errada” entrou no título porque…ora, por causa dessa coisa canadense. E também por ser algo que sentimos constantemente na vida acadêmica, que estamos errados ou à beira de estarmos errados, e temos de nos preocupar com isso, porque tudo é tão crítico e hierárquico. Para se conseguir uma posição de titularidade de professora, tudo depende de XYZ não estarem “errados” sempre que se fala. É sobre esse tipo de mentalidade que eu estava interessada em desativar. É algo que Simone Weil diz num ensaio que escreveu sobre a contradição — porque as pessoas acham a contradição nos textos filosóficos algo tão desconcertante, e ela é uma especialista em contradição. Ela diz que é um acontecimento mental útil, porque solta a mente. E quando nos soltamos, podemos continuar a pensar noutras coisas ou em coisas mais amplas ou nas coisas que estão por baixo de onde estávamos. De súbito, é toda uma paisagem diferente. E esse afrouxamento, penso eu, é aquilo a que o erro permite passagem.
Poderia falar sobre o erro amanhã e dizer uma coisa completamente diferente. Uma pessoa é um prisma, sabe, e os conceitos transitam daqui para ali de um dia para o outro.

Kate Dwyer: Enquanto lia Eros, o Doce-Amargo, me peguei pensando no ditado de que amigos e amantes “falam a mesma língua”. Não sei se isso é verdade — me parece mais que cada pessoa fala sua própria língua individual, e há nas relações um constante processo de tradução.

Anne Carson: Eu não acho que alguém jamais saiba o que outra pessoa quer dizer quando fala, para ser franca. É mais do que tradução, é nada menos do que se atirar no escuro. A linguagem é tão, mas tão pessoal e privada. E estranha. Acho que você poderia pensar nisso como uma tradução, mas isso me pareceria uma espécie de metáfora eufemística.
Provavelmente é muito mais desesperador do que isso. Mas o esforço de se falar como um humano é o esforço para superar essa desesperança a cada frase.

Kate Dwyer: Isso me parece similar ao problema de que a expressão de uma ideia por uma língua nunca pode ser totalmente traduzida para outra. O que acontece nesse espaço que você habita como tradutora, entre a obra original e a tradução?

Anne Carson: Penso nisso como em uma vala, uma vala entre duas estradas ou dois países. Isso sempre me interessou, esse estado de espírito ao qual a tradutora chega, tendo simultaneamente duas línguas em seu ecrã cerebral. E essas duas línguas dizem algo que não é exatamente equivalente e ambas continuam a flutuar por ali. Alguns escritores — Emily Dickinson seria o exemplo mais notável — fazem uso dessa vala dentro da sua própria língua. Portanto, ela não está a traduzir de outra língua. Está a traduzir-se a si própria. Escreve certas linhas e palavras e depois risca-as e coloca outra palavra, ou escreve a terceira palavra de lado, ou vira o papel e faz outra versão da coisa toda. E tudo isso existe em conjunto, como o poema. É um estado de espírito muito estranho, ter tudo isso flutuando, e deixar isso ser, a constituir o poema em sua totalidade — em sua totalidade desarrumada e irresoluta.
Na tradução, isto surge de uma maneira diferente, porque você tem um texto, e esse texto talvez tenha alguns erros óbvios nele. E depois temos leituras variantes no fundo da página, que são ideias que diferentes acadêmicos tiveram ao longo dos anos para fazermos uma leitura melhor quando algo parece estar errado. Assim, temos, mais uma vez, estas possibilidades a flutuar na nossa mente, para a mesma coisa — mas coisas
diferentes. E estão todas juntas a constituir o poema. Eu nunca soube o que fazer com isso. É um belo acontecimento estar de frente para o poema em grego, com várias leituras em inglês por baixo, e ter tudo isso a flutuar como possibilidades para o que realmente foi dito pelo cara que escreveu o texto.
Na maioria das vezes, não consigo comunicar a beleza disso numa página de um livro, ou numa coisa a que nomeemos por “uma tradução de x”. Não existe formato para isso. É possível fazê-lo mais ou menos num computador, com links e outras coisas, com textos laterais. Mas, basicamente, ninguém quer se dar ao trabalho de ler todos esses links, e a sensação não é a mesma. Como acadêmica, quando você olha para a página em si, com a língua e as variantes, e tudo flutua na sua mente, é uma experiência extraordinária. Incomunicável, penso eu, nas suas nuances mais delicadas.

Kate Dwyer: Como o ato de nadar entra na sua escrita?

Anne Carson: Nadar me impede de ficar melancólica e rabugenta. Às vezes eu reflito enquanto estou na piscina. Geralmente tenho ideias ruins. As ideias que você tem na piscina são como as ideias que se tem num sonho em que você encontra uma frase que responde a todas as perguntas que sempre tivemos sobre a realidade, e então você se levanta ainda grogue para anotá-la e, na manhã seguinte, se parece com algo como “vamos comprar bananas” ou qualquer coisa completamente irrelevante. Para além disso, eu gosto de água. Algumas pessoas simplesmente têm uma necessidade de estar perto da água.

Kate Dwyer: Você e Currie são fãs de John Cage, que fala sobre eliminar o ego da arte. Ainda estou pensando na epígrafe de John Cage que aparece em sua coleção Float de 2016 — “Cada algo é uma celebração do nada que o sustenta”.

Anne Carson: Isso fala aos escritores porque eles tendem a ter um acúmulo de memórias e escolhas, a que eles chamam de sua autobiografia, e então eles ficam reciclando isso infinitamente enquanto estão escrevendo. É preciso cair fora disso.

Kate Dwyer: No mundo da escrita, e especialmente nos departamentos de artes e literatura, há uma grande discussão em torno de coisas como “personagem” e “perspectiva” — os mecanismos da narrativa. Você pensa em “arte” (craft) nesses termos?

Anne Carson: Nunca. Eu não penso nisso. Acho que as pessoas deveriam apenas abandonar essas questões. Deveriam apenas conceber algo e segui-lo até onde se torna verdadeiro.

Kate Dwyer: Acho preocupante o fato de que, ao menos nos Estados Unidos, o ato de pensar criticamente esteja sendo desvalorizado do ponto de vista cultural. Você percebe isso enquanto pensadora e professora?

Anne Carson: Foi em parte isso o que me fez começar a pensar sobre a hesitação. Nos últimos anos em que lecionei, eu dividia meu tempo entre ensinar grego antigo e escrever. E o método do grego antigo, à minha época na escola, era olhar para o texto de grego antigo, localizar as palavras desconhecidas e procurá-las num léxico. E então descobrir o seu significado e anotá-lo. Procurar coisas em um léxico é um processo que leva tempo. E há nisso um intervalo que é como um devaneio, algo como um pensamento suspenso, porque não se trata de uma ausência de pensamento uma vez que você tem uma pergunta sobre uma palavra e você a alcança conforme você passa pelas páginas procurando a definição certa, mas você ainda não chegou ao pensamento. É um tipo tempo e de mentalidade diferentes do que se tem em qualquer outro momento do dia. É muito valioso, porque nesse intervalo ocorrem certas coisas no seu pensamento e no seu sentimento em relação às palavras. Eu chamo a isso de hesitação.
Hoje em dia, as pessoas têm o texto inteiro em seu computador e, quando encontram uma palavra que desconhecem, elas apertam um botão e instantaneamente a palavra é fornecida a elas por qualquer léxico que tenha sido carregado no computador.
Geralmente o computador escolhe o significado relevante para a passagem e o fornece, então você não tem sequer a história da palavra e a chance de flutuar entre seus outros sentidos possíveis.
A perda desse intervalo faz toda a diferença na forma com que encaramos as línguas. Faz descansar seu cérebro no caminho para o pensamento porque você ainda não está pensando totalmente. É uma presença ausente de certa forma, mas não é a nuvem de desconhecimento da qual os místicos falam quando dizem que Deus é nada e você não pode dizer nada sobre Deus porque dizer algo sobre Deus tornaria Deus particular e limitado. Não é isso — é estar a caminho de conhecer, então é estar suspenso em uma espécie de confiança. Eu lamento a perda disso.

Kate Dwyer: Você acha que nossa experiência do tempo tem algo a ver com a maneira como prestamos atenção? Acha que alguém que lê muito experimentaria o tempo de maneira diferente de alguém que olha para telas o dia todo?

Anne Carson: Isso parece implicar um julgamento. Não tenho certeza. O que tenho certeza é que buscamos maneiras de fazer o tempo parar. Essa pausa só acontece em momentos de atenção total, e é por isso que os buscamos. Suponho que isso possa acontecer quando você assiste a um filme na Netflix. Ou quando está no meio da composição do seu melhor poema. Qualquer uma dessas situações pode fornecer um foco de atenção pelo qual se pode entrar e desaparecer. Meu único interesse em lidar com o tempo é encontrar maneiras de fazê-lo parar. Porque quando o tempo não para, ficamos entediados.
Você vê o tempo passar, e não há nada acontecendo nele que seja o suficiente para preenchê-lo. O suficiente para te tirar da miséria. Eu não encontro muito meio-termo entre o tédio e o que quer que seja seu outro lado…a imortalidade, talvez. Esquecer o tempo.
Estar fora do tempo, estar nesse outro estado, é completamente empolgante. Tão empolgante que você esquece de se preocupar com o tempo.

Kate Dwyer: Você passa horas seguidas nesse estado?

Anne Carson: Uns minutinhos talvez, quando dou sorte.

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Anne Carson

Anne Patricia Carson CM (nascida em 21 de junho de 1950) é uma poetisa, ensaísta, tradutora, classicista e professora canadense. Formada pela Universidade de Toronto, Carson lecionou disciplina sobre os escritores clássicos, literatura comparada e redação criativa em universidades dos Estados Unidos e Canadá desde 1979, incluindo McGill , Michigan , NYU e Princeton .

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Kate Dwyer

É uma escritora radicada no Brooklyn. Seu trabalho já foi publicado no New York Times, bem como em diversos outros veículos.

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Gustavo de Almeida Nogueira

É doutorando do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo (USP), tendo a obra de Samuel Beckett como objeto de estudo desde seu mestrado, realizado na mesma instituição. Ministrou cursos de extensão na FFLCH-USP sobre a literatura francesa do pós-guerra e tem artigos publicados sobre Samuel Beckett, Marcel Proust e Mário de Andrade, além de traduções em revistas e veículos de comunicação diversos.

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