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A volta ao lar: um exemplo da subversão de Harold Pinter

Participando da geração de dramaturgos que trouxe aos palcos o Teatro do Absurdo, Harold Pinter destaca-se no teatro contemporâneo. O autor já se mostrava à frente de seu tempo – e até de sua própria idade – quando, próximo dos 20 anos, começou a escrever poesias e a se dedicar aos estudos de interpretação teatral. Ao iniciar sua carreira nos palcos, atuou sob pseudônimo de David Baron, período em que teve oportunidade de marcar presença nos teatros de toda a Irlanda. Em 1957, passa a se dedicar ao que há tempos se tornou objeto de estudos de diversos pesquisadores: a escrita de peças teatrais.
Sua primeira peça, O quarto, estreou em 1957 na Universidade de Bristol. Em apenas um ato, Pinter já demonstrava parte considerável das temáticas que seguiria abordando com o passar dos anos. Para além dessa peça, Pinter mostra também uma questão que, quando manifestada em cena, acaba por chocar os telespectadores: o “horror da situação humana”, como também define o erudito professor Martin Esslin. Somado a isso, o autor se mostrará contra a teatralidade que traz muitas explicações ao público; para ele, esse é um tipo de “peça bem-feita”, uma do tipo que deixa em evidência as motivações e questões pessoais dos personagens – e ser muito explícito não é algo que Pinter será; pelo contrário, o autor anda sobre a linha tênue das incertezas.
Com esses aspectos “fundamentais” sobre a dramaturgia de Pinter, já é possível seguir adiante e passar a analisar uma de suas peças mais curiosas: A volta ao lar. Escrita em 1965, a obra é construída a partir das ideias anteriormente citadas, com um adicional bastante importante: o tema da realidade e da fantasia. Desde sua primeira encenação em 1965, a peça segue causando curiosidade e surpresa nos leitores e espectadores. Para Esslin, o motivo dessa perplexidade é claro: os atos dos personagens criam uma sequência de ações realistas, mas que podem, paralelamente, serem apenas fantasia. Para nos aprofundarmos nesse e nos demais tópicos a serem tratados, antes é crucial percorrermos a superfície da trama e entender os argumentos da peça.
A volta ao lar se passa em uma casa no norte de Londres, onde vivem Max, um patriarca rancoroso, seus filhos, Lenny e Joey, e um tio, Sam – vale destacar logo de princípio que os três, com o correr das cenas, mostram ao público uma faceta misógina e machista. A trama se desenrola quando Teddy, o terceiro filho de Max, que está morando nos Estados Unidos, retorna à casa com sua esposa, Ruth. A chegada dos dois – sobretudo a de Ruth – desencadeia uma série de eventos perturbadores e inusitados, que parecem guiados sobretudo por motivos sexuais.
Apesar dos inúmeros diálogos violentos e perturbadores ao longo da peça, o ponto de virada para o total choque dos espectadores se dá quando Teddy e Ruth resolvem voltar aos Estados Unidos. Essa poderia ser uma simples cena de despedida, não fosse o quê “pinteresco” do drama: Ruth se envolve eroticamente com os irmãos de seu marido, e aceita continuar na casa em troca de favores sexuais. Ainda que Pinter não deixe explicações claras, é possível tirar algumas conclusões, como a que Ruth agora tomava a posição da matriarca da família, visto que a mãe e esposa “original”, Jessie, já havia falecido.
Para tratar um pouco das temáticas, vem à mente que A volta ao lar se trata também de gênero na sociedade e o patriarcado, além de discussões acerca de problemas familiares, bem como violência física e psicológica. Com essas pautas em cena, nota-se uma realidade expurgada, transformada em arte.
É evidente que Harold Pinter é um artista completo, que caminha pela escrita do teatro, e se coloca em cena também como ator. Com as inovações que trouxe a tona, Pinter acabou por subverter diversas tradições do universo teatral, como as que Peter Szondi, renomado crítico literário, explica em seus artigos sobre o drama. O estudioso, na obra Teoria do Drama Moderno [1880-1950], traz dois escritos interessantes para analisar a obra de Pinter: “O drama” e “A crise do drama”. Enquanto no primeiro deles temos contato com o que era tido como “tradicional”, o segundo já nos aponta autores que subvertem o anteriormente colocado, levando o drama à tal da crise mencionada por Szondi. Com essa explicação em mente, e tendo criado um panorama sobre a obra de Pinter, é possível afirmar que sua dramaturgia pertence a essa tal crise. Mas de quais formas Harold Pinter subverte o tal modelo dramático?
Para explorar essa perspectiva, utilizaremos A volta ao lar como exemplo para traçar paralelos com o modelo dramático explicado por Peter Szondi. Com o intuito de esclarecer o que seria essa crise do drama, Szondi usa alguns autores que, assim como Pinter, destoam do modelo dramático: Ibsen, Tchekhov, Strindberg, Maeterlinck e Hauptmann. A partir da análise desses dramaturgos, conseguiremos enxergar em quais pontos Pinter também diverge do modelo anterior de drama.
No subcapítulo em que Ibsen é analisado, Szondi o compara com Sófocles e Édipo Rei para explicar como os dois autores utilizam “a verdade” dos personagens de diferentes formas: enquanto em Édipo vemos um caminho trilhado de maneira objetiva, ou seja, que pertence a acontecimentos externos, o mesmo não ocorre em Ibsen. Segundo Peter Szondi

“Em Ibsen, ao contrário [de Sófocles], a verdade mora na interioridade. Nela repousam os motivos das decisões tomadas, nela se esconde seu efeito traumático, que sobrevive a toda mudança externa. É também nesse sentido tópico, e não só temporal, que a temática de Ibsen se furta ao tipo de presente exigido pelo drama. Se é certo que ela nasce inteiramente da relação inter-humana, ela só se sente em casa, como seu reflexo, no mais íntimo de seres isolados e estranhos uns aos outros.”1

Partindo dessa questão, esse já é o primeiro aspecto que Pinter também destoa do modelo dramático. Em A volta ao lar, acompanhamos personagens que são formados sobretudo por acontecimentos inter-pessoais, mas que não são compartilhados nem mesmo com os demais que estão em cena. Todos os homens da peça são enigmáticos para o espectador: quais são suas motivações? A questão com Ruth era apenas sexual, ou também surgia da necessidade de uma figura feminina na família? São muitas perguntas de natureza individual, e que não terão resposta, porque, como diz Szondi na citação anterior, “a verdade mora na interioridade”.
Caminhando nesse sentido, Szondi segue sua análise e passa a explorar a dramaturgia de Tchekhov. Estudando os aspectos fundamentais da peça Três irmãs, o estudioso mais uma vez fala sobre as problemáticas individuais que se manifestam nos personagens. Ainda que não saibamos qual as motivações ou pesos dos fardos passados, fica nítido pelos diálogos e ações que existe, sim, uma grande insatisfação, rancor e amargura que não cresceram repentinamente no íntimo desses personagens. É evidente que nenhum artigo ou reflexão são capazes de decifrar o absurdo da dramaturgia de Harold Pinter; afinal, o dramaturgo coloca em cena uma mágica típica de seu fazer artístico, e a falta de conclusão faz parte de seu show. Ainda que sem explicações claras e conclusivas, o leitor e espectador podem se deleitar com os encantos lançados pelo autor em suas peças – e essa é uma das maiores delicadezas das artes: admirar e se sensibilizar, ainda que não se compreenda por completo.

 

1 SZONDI, Peter. “O drama”, “A crise do drama”. In. Teoria do drama moderno [1880-1950]. Cosac Naify, São Paulo: SP, 2011.

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Angélica Cigole Frangella

Graduanda em Letras pela FFLCH/USP, dedica seus estudos à obra de F. Scott Fitzgerald. Leitora de tudo um pouco, encontrou-se sobretudo na relação entre literatura e psicanálise.

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