Os ciganos consideram, com razão, que somente devemos dizer a verdade em nossa própria língua; na do inimigo, a mentira deve reinar.

A decadência geral é um meio a serviço do império da servidão, e é somente por ser esse meio que lhe é permitido fazer-se denominar progresso

1. O problema: desilusão e autoconsciência

Refletindo sobre a força exercida pelo sistema de controle de um mundo administrado, cujas regras universais determinam as significações aprisionando o indivíduo na impossibilidade criativa e aniquilando a tentativa de revolta pela sujeição do próprio esforço de ruptura ao sentido do que prevê a norma que se quer romper, Debord parece nos dizer que o primeiro movimento de quebra da lógica da submissão é o da desilusão. “Quando ser totalmente moderno se tornou uma lei especial proclamada pelo tirano,” afirma nosso autor, “o que o escravo honesto teme, acima de tudo, é que ele possa ser suspeito de saudosismo.” (DEBORD. 2002, 75) Mas a resposta não é um retornar a um tempo do qual não nos resta senão a sombra. Mais inteligente é mergulhar nas contradições desse mundo e delas extrair o impulso que ajude a aniquilá-las. Operar uma revolução na linguagem. A revolução começa na expressão movida por uma necessidade vital de recuperação da experiência no contexto da vida fragmentada por um sistema que se produz e se reproduz através do isolamento social real e da ilusão de comunhão, de reconhecimento e diálogo.

O Sistema que governa é, por sua vez, movido pelo valor de troca e pela mecanização das relações entre pessoas reduzidas a particularidades psicobiológicas atomizadas e dispersas. O cimento que as une mediante o qual se constrói uma comunidade ilusória de indivíduos isolados deve ser desfeito. Vale dizer, é preciso deslocar/desviar a linguagem como instrumento de descrição padronizado, cujas palavras veiculam-se através da informação. Pensamos a informação aqui no sentido que lhe confere Deleuze, vale dizer, como um conjunto de palavras de ordem que ao nos informar nos dizem o que julgam que devemos crer. Em outros termos, informar é fazer circular uma palavra de ordem.

O que equivale a dizer que a informação é exatamente o sistema de controle.

Isso é evidente e nos toca de perto. É exatamente no interior desse complexo de relações, em que o controle se imiscui no sistema de representação construindo uma falsa consciência de individualidade e liberdade, que a astúcia da dialética deve atuar com seu poder corrosivo e destruidor, no rumo da construção de uma individualidade e liberdade possíveis.

Fins que não se alcançam facilmente. Não sem antes erguer-se à consciência das contradições através do sentimento de desilusão. Romper a ilusão de que se é indivíduo, de que o indivíduo que se é possui meios próprios de elevar-se criativamente ao plano de um ideal cuja realização está obstaculizada pela essência mesma da circularidade do sistema de representação. Saber que “pela primeira vez, os donos de tudo o que se faz são também os mestres de tudo o que a respeito se diz. Assim a demência ‘construiu sua casa nos altos da cidade’. ” (DEBORD. 2002, 74) Os donos de tudo o que se diz destruíram a possibilidade de enfrentar o domínio da experiência padrão porque são aqueles que determinam o que se diz e o sentido do que se diz. Controlam os conceitos e a sintaxe e, portanto, dirigem as formas de ser pelo condicionamento das formas de ver, reduzidas a uma única vivência.

A mentira é o todo, sustentou Adorno, salvando o indivíduo da submissão a um mecanismo cujas leis este não compreende e nem, tampouco, pode a elas renunciar. 

Hegel apelou para a “astúcia da razão” a fim de justificar os males particulares sofridos pela humanidade em sua história no auto-pôr-se da razão rumo à construção de seu reino de liberdade. Debord chama de astúcia sua forma de viver crítica cuja aventura de revolta jamais se concilia com as misérias de seu tempo. Ambas as astúcias incidem sobre a realidade humana perdida em meio a um mundo turbulento, de extremas perturbações na sociedade e imensas destruições. A astúcia da dialética – sua divergência absoluta expressa através do desvio – não quer, por sua vez, legitimar o sofrimento humano em nome de um princípio global de desenvolvimento, por mais promissor que este seja.

Nenhuma dor é justificável e o movimento do todo, embora não possa ser desconsiderado, não pode se sobrepor à realização do indivíduo. Ao contrário, é apenas mediante o reconhecimento de seu próprio lugar no decorrer do tempo e na sociedade, o que fez e o que conheceu, suas paixões dominantes, que o homem pode chegar à verdade do todo através da reconstrução da dignidade do indivíduo.

Quem pode escrever a verdade senão aqueles que a sentiram? Debord nos ensina que apenas são verdadeiras as histórias escritas por homens sinceros o suficiente para contar a verdade a respeito de si mesmos. Para tal devem mergulhar na miséria do seu tempo e extrair de um mundo de ilusões a desilusão primeira que aponta para a saída do impasse e do absurdo. Para sair do labirinto é preciso antes estar dentro dele e sabê-lo. Não é possível evitá-lo nem, tampouco, renunciar a ele. Antes cumpre trilhá-lo por inteiro encontrando na própria experiência da viagem uma forma de superação… Uma astúcia?

Atento às ilusões do mundo banalizado Debord escreve:

“O mundo é desilusão”, resumiu Villon num único octassílabo (“Le monde n’est qu’abusion” é um octassílabo, ainda que um diplomado dos dias de hoje provavelmente não consiga reconhecer mais de seis sílabas nesse verso). A decadência geral é um meio a serviço do império da servidão, e é somente por ser esse meio que lhe é permitido fazer-se denominar progresso. (DEBORD. 2002, 75/76)

Resistir à servidão a ponto de romper seu circuito opressivo depende da consciência desiludida do modo como ela opera. Enfrentar a necessidade de construir uma obra extraterritorial que redimensiona as relações sintáticas e redefine os significados de uma linguagem deslocada de seus eixos de sustentação. Gli assi portanti della civiltà moderna.

Há um paradoxo central a ser explorado: como fugir do banal em um mundo no qual a banalidade foi unificada e globalizada. Em outros termos, não é possível construir uma linguagem absolutamente original, o que implicaria em refugiar-se numa forma privada de expressão, portanto, ininteligível; tampouco é possível conciliar-se com o mecanismo banalizado mediante o qual só é possível expressar experiências fragmentadas de conteúdos convergentes e comuns. Se o banal se universalizou, então seu lugar de morada localiza-se na vida cotidiana. A crítica da vida cotidiana tornou-se, portanto, essencial à dialética em seu esforço de superação da auto-alienação humana. Ela deve ser feita numa linguagem de emigrante, minoritária e exilada da experiência degradada da modernidade.

Como esta experiência degradada se apropriou da linguagem tornando-a instrumento de controle pela imposição da descrição como norma? O que seria isso e como isso se dá?

2. Linguagem como descrição e desvio

Contrariando Wittgeinstein, a linguagem nunca entra de férias. Embora o nosso pensar muitas vezes falhe em traduzir vivências psicológicas em expressões adequadas, um fluxo constante de fantasias nos enfeitiça e controla mesmo quando despertos. Há algo em nós que nos precede e condiciona e que se estrutura como linguagem, uma complexa rede de noções e regras socialmente herdadas que funciona como um padrão contra o qual nos medimos e mediante o qual experimentamos o mundo e a nós mesmos. Todas as nossas experiências são mediadas por símbolos e todos os símbolos arranjados em parâmetros sintáticos são sociais, modelos de pensamentos, sentimentos e juízos que nos colonizaram e medeiam nossa relação com o mundo e com os outros.

Nossa consciência move-se sempre na tensão entre a mediação que traduz o que pensamos ser e viver e a vida que não sabemos.

A linguagem é essa mediação. Para Lacan, ela é um presente tão perigoso para a humanidade quanto o cavalo foi para os troianos: ela se oferece gratuitamente para nosso uso, mas, depois que a aceitamos ela nos coloniza. (ZIZEK.2010, 20) Nessa mesma direção, Zizek conclui que “o pertencimento a uma sociedade envolve um ponto paradoxal em que cada um de nós é obrigado a abraçar livremente, como resultado de nossa escolha, o que de todo modo nos é imposto”. (ZIZEK. 2010, 21) Desta forma, “quem sofre de modo passivo o seu destino cotidianamente estranho é levado a uma loucura que rege de modo ilusório a esse destino, pelo recurso a técnicas mágicas” (DEBORD.1997, 42) de um mecanismo cuja aparente liberdade de uso nos aprisiona. Funda-se, assim, a experiência no paradoxo de uma livre escolha daquilo que é, de qualquer maneira, imposto. Em outras palavras, experimenta-se a liberdade ilusória fruto de um aprisionamento desejado e escolhido.

Segundo Nietzsche, a origem de tal paradoxo estaria situada na necessidade humana de promover a paz através do estabelecimento de um acordo sobre princípios comuns de descrição do mundo segundo regras consensuais. Nos termos do filósofo, “o homem, por tédio e necessidade simultaneamente, quer existir socialmente e gregariamente, tem necessidade de concluir a paz, e procura, de acordo com isso, que pelo menos desapareça de seu mundo o mais grosseiro bellum omnium contra omnes”. (NIETZSCHE. 1984, 91). Para tal, precisa de referenciais comuns somente possíveis através da adoção de padrões universais de significação. Neste sentido, a construção da linguagem categorial reflete a exigência moral de uma descrição universalmente válida das coisas, somente possível quando a linguagem se volatiliza no conceito forjando uma estrutura fria que modela a experiência humana em um plano comum de descrição. O homem escapa do fluxo de imagens traduzidas em metáforas singulares mediante a redução conceitual da expressão metafórica original e com ela limita a possibilidade da experiência individual a um arcabouço genérico que a degrada.

A linguagem planificada impõe-se como padrão descritivo, regra da percepção e norma de um sistema que se apropria da vida do indivíduo e a generaliza. Tudo passa a ser transposto ao plano mediado da linguagem comum e vivido conforme seu padrão universal de descrição. A experiência individual é empobrecida, mas a vida gregária é salva. Do ponto de vista linguístico, portanto, a sociedade surge apenas quando o indivíduo abandona o isolamento de suas metáforas privadas e adentra o mundo das ficções comunitárias. Em O Crepúsculo dos Ídolos, Nietzsche dirá que “penetramos em um fetichismo grosseiro quando adquirimos consciência dos pressupostos básicos da metafísica da linguagem…” (Nietzsche. 1984,48) Tal conclusão funda-se na hipótese de que a linguagem, no seu percurso da metáfora ao conceito e deste ao sistema de categorias, vale dizer, a gramática, acaba por se erguer como um novo tipo de mitologia. O esquecimento da origem objetiva do que era construção objetiva, absolutiza a convenção tornando verdade incontestável o que era tábua de salvação social.

Schelling já havia percebido, em sua obra Einleitung in die Philosophie der Mythologie, na linguagem tornada sistema uma “mitologia empalidecida”, que conserva, em distinções abstratas e formais, aquilo que a mitologia apreendia como diferenciações vivas e concretas. Herder, por sua vez, em seu notável ensaio sobre a origem da linguagem – intitulado Über den Ursprung der Sprache – não deixou de sublinhar o caráter místico de todos os conceitos verbais e linguísticos. Na mesma esteira, Nietzsche quer mostrar que a linguagem descritiva não tem superioridade sobre a linguagem artística, pois ambas possuem raiz em um mesmo tipo de experiência: a imaginação diferencial do múltiplo que se resolve na plasmação artística da experiência através da metáfora. O que torna o conceito preferível à metáfora, impondo a linguagem como descrição e como regra, é sua capacidade de descrever experiências universais socialmente relevantes. Com a possibilidade de figurar universalmente, a descrição permite articular formas padronizadas e esvaziadas de conteúdo individual. A nivelação e a convenção facilitam a comunicação pela troca de experiências comuns. Por isso é socialmente preferível. No entanto, tal preferência desemboca numa aceitação geral e passiva que desenha o conceito e a descrição como único contorno que emoldura nosso acesso à realidade. A linguagem descritiva categorial impõe-se como mediação, traduzindo a experiência vital (Erfahrung) na forma enfraquecida de vivências comuns (Erlebnis), se nos rendermos aos termos benjaminianos. Cultiva com isso um estado de consciência genérico e passivo, isento de toda distorção subjetiva, de todo envolvimento pessoal.

A mitificação da linguagem artística falseada em um sistema de categorias, cuja função era assegurar o equilíbrio social relativo resulta, justamente, na sua transformação em norma absoluta universal. O homem colocado sob a regência desse sistema padrão não se experimenta mais como individualidade diferenciada: ele se volatiliza juntamente com o esquema abstrato de que faz uso e entre ele e seu mundo ergue-se o grande outro da consciência social reificada na linguagem como descrição.

Surge o homem universal abstrato privado do suporte concreto de sua experiência individual.

O sistema categorial que rege a descrição comum constrói uma falsa mediação entre o universal e o particular. Ajusta-se, portanto, muito bem ao conceito do espirito objetivo da época burguesa; aquele mesmo espirito que havia procurado a representação de um procedimento geral pelo qual a imaginação oferece a um conceito a sua imagem, culminando num padrão único de referência segundo o qual o objeto poderia ser produzido em conformidade com uma regra geral. Parafraseando Adorno, poderíamos dizer que o momento coletivo dentro da linguagem descritiva evoluiu cada vez mais para um momento de comparação de tudo com tudo, para a nivelação e a convenção.

Essa tendência à comparabilidade universal, inerente à forma comum de expressão de conteúdos socialmente relevantes sob a regência da norma, oferece-se cada vez mais como veículo para o caráter de mercadoria da linguagem reificada. Semelhante ao que acontecia na música tonal, conforme percebe Adorno, na qual opera o mesmo princípio mercantil da época burguesa.

O pensamento mercantil identifica-se com redução da experiência individual que se desenvolve em consonância com a lógica fetichista das mercadorias. Cristaliza-se numa ciência que examina a lógica das relações mercantis como se estas pertencessem a um plano ontológico desvinculado da atividade humana ao qual esta última se submete. Tal ciência, a economia política, crê, por exemplo, que as leis da oferta e da procura, a fixação de valores e preços, os ciclos econômicos, etc. poderiam ser objetos de estudos como leis e fatos objetivos, independentes de seus efeitos na existência humana. O processo da sociedade seria assim um processo natural e o homem, com todas as suas necessidades e desejos, desempenharia um papel de uma quantidade matemática objetiva em lugar de um sujeito consciente e livre. Na vigência dessa lógica fetichista impõe-se ao homem o imperativo matemático-mecanicista, alienando o indivíduo dos produtos de sua própria atividade. Desse modo, a sedimentação psíquica de uma linguagem que faz valer à sensibilidade coletiva sua norma absoluta, uma espécie de padrão ou fórmula impingida às mentalidades que regem de forma categórica o conjunto de suas avaliações, de decisões e escolhas, de modo a produzir, no contexto de uma ação individual-social completamente controlada, a sensação de liberdade experimentada pela falsa consciência da autonomia. A linguagem aqui aparece como um tipo de falsa objetividade:  um veículo para a repetição do idêntico consoante os princípios de uma ordem social obcecada pela produção do mesmo, cuja lei mais intima é a busca da identidade através do equivalente universal, o valor de troca. Tal ordem objetivada em signos regidos por regras ordinárias que gravitam acima dos indivíduos, exatamente por adquirirem o falso estatuto ontológico de uma realidade separada e fundamental, à qual é preciso se conformar, impede o sujeito da possibilidade de experimentar sua existência social efetiva e, em consequência, a si próprio. A contradição que se enfrenta aqui revela que o princípio de dominação dos homens, que se desenvolveu ao máximo na sociedade burguesa, voltou-se contra os próprios indivíduos ao mesmo tempo em que se realizou plenamente neles. Cada homem acaba por se tornar um reflexo apagado da linguagem mecanizada.    

A obra de arte, por sua vez, ao buscar referenciais normativos absolutos, como a tonalidade no caso da música, estaria ajustada a uma mentalidade condicionada pelo imperativo econômico das relações mercantis reificadas. “O que uma vez na música, era linguagem, tornou-se mera repetição”, assevera Adorno. E a repetição é o enquadramento dentro do qual se sente em casa a mentalidade burguesa, a mentalidade carente de segurança, estabilidade e consolo.

Neste sentido, torna-se evidente o caráter regressivo que assumiu o sistema tonal na sociedade, conforme percebeu Adorno. A inflexibilidade de um padrão que havia já esgotado as suas possibilidades não cumpre mais apenas a função de regular as formas de organização do material sonoro, mas produzir obras em conformidade com parâmetros coletivos de percepção. O que nos chama atenção para este fato, particularmente, é a relação entre fetichismo e repetição.

Se reconhecemos na lógica do sistema linguístico um novo tipo de fetichismo é porque entendemos o fato de como a linguagem acabou assumindo o aspecto de algo exterior ao indivíduo e independente dele, algo que possui o caráter de objetividade absoluta. Ele mimetiza o sistema de mercadorias diluindo-o na representação fantasmagórica do idêntico. Tal qual o demiurgo platônico, que forja as formas das coisas pela imitação das ideias eternas e transcendentes, o indivíduo pensa criar suas formulações verbais repetindo os mesmos modelos organizacionais fornecidos pelo modelo regulador-normativo linguístico disponível.

Voltando, por um momento, nossa atenção ao passado, veremos que o homem primitivo tendia a só se reconhecer como real na medida em que deixasse de ser ele mesmo enquanto indivíduo, contentando-se em imitar e repetir os gestos arquetípicos ancestrais. Para esse homem, por exemplo, todo sacrifício repete o sacrifício inicial e coincide com ele. O sacrifício inicial, no caso, seria um modelo arquetípico de acordo com o qual todos os outros sacrifícios particulares eram realizados. A repetição, que para a consciência mítica imprimia o caráter de realidade a um objeto ou uma ação, dependia, pois, da constituição de modelos dotados de prestígio mágico. Tais modelos definem a maneira pela qual o homem arcaico vivia seu mundo, formulando um conjunto de regras precisas para o pensamento e para a ação.

Forma de representação, o mito é também regime da ação, em relação ao qual o modelo aparece como a realidade última, portanto, objetividade absoluta. A repetição, que tornava real um objeto ou uma ação, para o primitivo, dependia, pois, da elaboração desses modelos. A obra de Mircea Eliade O mito do eterno retorno (ELIADE. 1985) esclarece como a consciência primitiva operava a partir da sujeição da coletividade a modelos arquetípicos continuamente reatualizados. O atual vincula-se ao mesmo e o ser era um padrão de normas que submetia absolutamente a conduta do indivíduo ao modelo despersonalizando-o.

Por ter se constituído em sistema absoluto de regras para a expressão, portanto, modelo, a linguagem como descrição tornou-se demasiadamente próxima da lógica da repetição presente no pensamento mágico. Eis aí um dos aspectos de sua natureza regressiva. Aqui se revela o aspecto gravemente ilusório e contraditório do espírito objetivo na linguagem. Em princípio, a arquitetura conceitual se configurou como meio de fornecer regras para a expressão individual conforme a necessidade social de salvar o homem do conflito instaurado pelo particularismo da linguagem metafórica. Originalmente sua função seria, pois, a de manter certo equilíbrio entre o particular e o universal na expressão linguística. No entanto, tal equilíbrio rompe-se, no momento em que o cada vez mais evidente formalismo que caracteriza o sistema linguístico o impede de conservar a consciência dos contrários, bem como mediar a expressão do não-idêntico, determinando, assim, de forma anti-dialética, a relação entre o universal e o particular. O enrijecimento das regras que coordenam um sistema universalizado submete a individualidade à reprodução do mesmo, vale dizer, aniquila qualquer pretensão de autoafirmação da diferença. O subjetivo desaparece no objetivo e qualquer relação dialógica entre os termos é impedida pela fetichização da norma.  

A linguagem normal, consequentemente, pode ser enquadrada dentro daquilo que se poderia chamar, para usar uma expressão chave da Dialética negativa, o “predomínio do objetivo”. Se nos atemos a duas dentre as quatro acepções que Adorno atribui a essa expressão, veremos que a objetividade designa, em primeiro lugar, o caráter coercitivo de um complexo histórico que pesa sobre o indivíduo, mas que, no entanto, pode ser rompido por ser contingente. Em segundo lugar, ela significa a prioridade da natureza diante de toda subjetividade que ela expulsa de si. Neste sentido, o caráter ilusório e falso do sistema descritivo surge na medida em que, traindo o seu postulado original de manter certo equilíbrio entre o particular e o universal, opera a dissolução do sujeito no objeto, portanto, do particular no universal. Finalmente, ele se revela muito semelhante a um jogo de montar que, após esgotar todas as possíveis combinações de seus elementos, passa a repetir, indefinidamente, a mesma figura. Vale dizer, o sistema descritivo assume o aspecto de um grande mecanismo composto de peças que, embora possam ser combinadas e recombinadas livremente, exibem sempre o mesmo tipo de padrão organizacional, repetindo os mesmos modelos pré-fixados, sejam quais forem as combinações feitas.

A linguagem torna-se, assim, arte da aparência, uma vez que esconde o fracasso em sua tentativa de captar, com o auxílio de determinações universais e, por assim dizer, através delas, a plena concreção daquilo que não é idêntico a tais categorias universais. Ao invés de fornecer meios para que o material linguístico pudesse ser organizado tendo em vista a expressão do conteúdo de experiências divergentes, portanto novas, a linguagem, por ter-se tornado um modelo prescritivo de regras, vale dizer, uma montagem caleidoscópica e mecânica de elementos, funciona apenas como veículo para a repetição do mesmo. Seu número de possibilidades combinatórias tende, como dissemos, a se esgotar em função do número limitado de elementos com que trabalha. Neste ponto a linguagem descritiva está de acordo com a consciência burguesa que, como ressalta Adorno, “sempre pensa em juntar, a partir de um mínimo de elementos, o máximo possível, de acordo com o modelo dos processos de trabalho desde o período manufatureiro”, e cujo imperativo é a máquina e a produção em larga escala, para a qual se fazem necessários moldes, ou clichês, que permitam a confecção de produtos conformes ao padrão comum.

Submetidos ao domínio dessa “lógica da repetição”, “durante século, os estímulos específicos e os impulsos individuais, a assim chamada inspiração, pré-formados pela linguagem, como que pediam os seus princípios organizacionais”. Isto porque o código tornou-se, como procuramos mostrar, uma convenção inibidora, porquanto nele o universal não mais se encontra em nenhuma relação dialética com o particular.

Uma vez que o universal e o particular não podem mais ser reunidos arbitrariamente, “a descrição normativa também não pode ser restabelecida, como às vezes se presumiu”. Ao contrário, ela tem que ser negada naquilo que possui de mais ilusório, de mais falacioso, pagando a própria culpa pelo que é repressiva, pelo que agride ao sentimento individual. Portanto, deve-se contestar a própria noção de uma harmonia pré-estabelecida entre o universal e o particular, em nome de uma situação que não quer mais o ilusório, nem tampouco a mentira que decorre do escamoteamento das diferenças específicas e das contradições reais, por meio da ideia de ajuste da tensão, de uma harmonia conciliatória. Tal pretensão, lembra Adorno, faz-se “cada vez mais ideológica quanto menos a realidade propicia ao individual, através do universal, o que é prometido ao individual e o que ele mesmo promete”. (ADORNO. 1982.158)

A linguagem do desvio deve, pois, promover a ruptura com essa espécie de acordo coletivo em nome de sua própria verdade: “a linguagem deslocada de seus referenciais normativos não conhece nenhuma harmonia pré-estabelecida entre o universal e o particular, e não deve conhecê-la”. Ela realiza, na verdade, o julgamento da linguagem tradicional, postulando um modo de expressão no qual, ao contrário do que acontecia com o sistema gramatical vigente, “o universal é aberto, não esquematizado, mas problemático, tendo primeiro de ser descoberto, desde a formulação da emoção individual até a construção do todo”. (ADORNO. 1982.159) Isso quer dizer que através do desvio a harmonia pré-estabelecida do universal com o particular se rompe. A relação entre esses dois termos deve ser, a partir de agora, articulada em cada caso, prescindindo da tirania uniformizante do sistema.

No novo tipo de relação que se procura estabelecer entre a emoção individual e a sua elevação à esfera da universalidade mediante a expressão deslocada, tomamos consciência de que o antigo modelo sintático jamais foi adequado à realidade, mas, em grande parte, foi ideologia.

A nova linguagem pelo desvio, então, ao mesmo tempo em que é proposta revolucionária é crítica do antigo sistema de representação e da situação que o produziu.

O que o desvio é para a linguagem a atonalidade foi para música. Todas as composições de Schönberg são ataques contra o pseudo-refinamento do esteticismo burguês. Sua obra, junto com a de Karl Kraus e Adolf Loos, ilustra como a crítica aos costumes da sociedade vienense contemporânea, com toda sua artificialidade e falsidade, adotou, de uma maneira muito natural, a forma de crítica da expressão estética. A crítica que Karl Kraus fazia, em nome da integridade criadora do indivíduo, à maneira pela qual as pessoas usavam a linguagem em sua sociedade, era assim uma crítica implícita dessa sociedade. Do mesmo modo, Adolf Loos, ao desejar eliminar toda forma de decoração dos artigos funcionais, procurava mostrar que só uma sociedade que já não desejava ver as coisas tais como elas realmente são poderia enamorar-se pela ornamentação. A paixão pela ornamentação havia se tornado deleite pelo irreal. No caso da nova música, também se percebia nitidamente a crítica social implícita nas concepções opostas ao sistema tonal. De fato, “em todos os seus traços técnicos – dissonância, intervalos ásperos, forma aberta, ela se contrapõe ao costumeiro conceito espiritual-ideológico de harmonia, alertando exatamente para aquilo que engana no caráter afirmativo da cultura, para usar os termos de Herbert Marcuse”. (ADORNO. 1982. 159)

A resistência à nova maneira de se lidar com o material sonoro insere-se naquela síndrome sócio-psicológica denominada por Adorno a “personalidade autoritária”, a qual se caracteriza fundamentalmente pelo ódio ao divergente em si, “sobretudo o que tem um caráter peculiar: tudo deve ser tornado igual”. (ADORNO. 1982. 156)

A personalidade autoritária, deve-se dizer, coincide com o “espírito de sistema”: ambos mostram-se obcecados pela produção do idêntico e, por isso, rejeitam tudo aquilo que é estranho ao seu impulso de repetição. Por conseguinte, recusam o divergente e tudo o mais que não for adequado aos moldes pré-estabelecidos de uma sensibilidade comum. Seu impulso mais profundo é aquele que clama pela equalização e pelo nivelamento, nutrindo uma típica aversão a todo conteúdo que não coincida com a experiência habitual.

Se pudermos caracterizar a linguagem deslocada do desvio como aquela que deve servir como meio para expressão de conteúdos não captáveis pelos padrões linguísticos habituais, então vemos o quanto o sistema tem de vazio exatamente naquilo que ele tem de repetitivo e convencional. Ele não é mais capaz de exprimir o individual por ter-se tornado um fim em si mesmo e, consequentemente, se descaracterizado como mediação. O que ele faz, na medida em que se repete sua própria lógica, é expulsar de seu domínio o divergente.

O desvio é, no entanto, a experiência de uma divergência absoluta no domínio da expressão. Consequentemente, ela é uma retomada da linguagem criativa em seu sentido mais exato, em sua verdade mais profunda. Como tal, deve recusar as falsas representações e as generalidades impostas pelo hábito, ou melhor, fixadas em definitivo por um código de regras petrificado alheio à expressão individual. Resulta daqui a tão difundida quanto falsa concepção acerca da separação entre o sentimento e razão. Em conformidade com essa dialética do sentimento e da razão, a linguagem do desvio, como os poemas de E. E. Cummings, é filha do cálculo à serviço da paixão. Nisso ela faz a denúncia de que a lógica pretendida pela linguagem tradicional nunca foi tão rigorosamente vigente. Na medida em que a gramática promove a separação entre os dois polos entre os quais transita a expressão linguística, ou ele se distancia num falso rigor formal, ou se degrada num imediatismo grosseiro: a inter-relação entre os dois momentos torna-se impossível. A língua só é entendida então na medida em que é mecânica ou natural. O caminho que a linguagem deslocada deve trilhar é, no entanto, outro. O esforço necessário para captá-la não é “um esforço do saber abstrato, nem algo como o conhecimento de quaisquer sistemas, teoremas ou até mesmo de processos matemáticos. É essencialmente fantasia: aquilo que Kierkegaard chamava de ouvido especulativo”. (ADORNO. 1982. 157)

A fantasia é fons et origo da criatividade, é o primordial; porém não é necessário dizer que a disciplina não é menos necessária. Para Schönberg, a música significava expressão de si mesma, assim como autodisciplina. E, do mesmo modo que ocorre com toda música autêntica, sua fantasia inovadora foi a fonte de suas ideias musicais. “A música não é, diz Schönberg em Estilo e ideia, um mero divertimento, mas a representação das ideias musicais de um poeta músico, de um pensador músico; essas ideias musicais devem estar em correspondência com as leis da lógica humana”. Na mesma raiz da concepção schönbergiana da música se encontram as ideias krausianas relativas à fantasia. Quer dizer, para tal concepção, a fantasia produz os temas, as ideias musicais; a lógica musical subministra as leis de seu desenvolvimento. Ambos os aspectos são essenciais à boa música. No entanto, como vimos, a lógica que se pretende aqui não é aquela pré-fixada que mutila a intuição, mas outra que brota no contexto específico de cada obra alinhavando o seu múltiplo numa unidade superior. “Protótipo de genuína experiência com a nova música é a capacidade de ouvir conjuntamente o divergente, fundado, no acompanhamento intrínseco do que de fato é múltiplo, uma unidade”. (ADORNO. 1982. 158)

Mais uma vez se expressa a recusa adorniana ao redutivismo, que se pode formular da seguinte maneira: a verdade não está nem na redução idealista do objeto ao sujeito, nem num pseudomaterialismo – simples variante da razão iluminista – que tenta dissolver o sujeito no objeto, mas no campo de forças que se dá entre o sentimento individual e a sua expressão universal; no caso particular da linguagem, entre a criatividade e a lógica discursiva. Essa tensão não resolvida, não conciliada, que impede tanto o reducionismo objetivista quanto o subjetivista, veda a dissolução do particular no universal, através da categoria da Vermittlung, da mediação, pela qual a parte é índice do todo, mas não pode ser absorvida por ele e vice-versa. Assim, enquanto consciência da tensão, a linguagem do desvio é dialética; de um modo geral pressupõe a recuperação da experiência religada “à dimensão de felicidade e sofrimento, da capacidade para o extremo, para aquilo que não esteja pré-formado, como que para salvar o que o aparato do mundo administrado destrói”. (ADORNO. 1982, 159).

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Plínio Fernandes Toledo

É mestre e doutor em Ciência da Literatura (Teoria Literária) pelo Centro de Letras e Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

REFERÊNCIAS

ADORNO, T. W. Porque é difícil a Nova Música. In: “T. W. Adorno, sociologia”. Tradução Flávio R. Kothe.  São Paulo: Ática, 1982.

DEBORD, Guy. Panegírico. Tradução Edison Cardoni. Sãp Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2002.

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

ELIADE, Mircea. O mito do eterno retorno. Lisboa: Edições 70, 1985.

NIETZSCHE, F. W. O livro do filósofo. Tradução de Ana Lobo. Porto: Rés, 1989.

______. Crepúsculo de los ídolos. Traducción Andrés Sánchez Pascual. Madrid: Alianza Editorial, 1984.

ZIZEK, Slavoj. Como ler Lacan. Tradução de Maria Luiza X. da A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

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