Interpelação
Talvez para uso futuro,
Talvez junto aos frêmitos e às volúpias
Da fria nostalgia,
Rêmora
que se cola às guelras
da memória adoecida,
Eu pudesse me inebriar
como com uma lajota trivial
Lançada no espaço,
içada na vertical do tempo,
Como com uma pedra lendária e triste
que sobrevivesse à ruína
Ou os resquícios vagos
de uma casa onde morei.
Eu poderia dela fazer um leito
Apaziguado e simples para a minha mansidão.
Mas o lembrar ameno
não me foi dado
Pois de vez em vez, ano a ano,
Tu retornas
como se nas fímbrias da lembrança,
Para me arrancar da cama
E vindicar
de volta
tua memória
Teus escritos,
tuas humildes obras em vida
Expiadas
a fogo
no álgido desalento de tua mãe.
Tu estás aí, eu sei,
depois de todos esses anos,
trêmulo na friagem da morte, o corpo esguio
à minha frente,
como quando o vi em teu caixão;
Pois ainda em tua frustrada peregrinação
Difundiste
da boca de teu corpo
o azul
De tuas palavras
súplices,
voltadas ao sul
Do vento norte
e esparramaste a areia do teu clamor
pelos cantões.
Foi como se então tocasses impotente meus joelhos.
Tuas fibras outrora fortes
Já estavam reclusas,
na atonia viscosa da morte,
Mas eu sentia que me tocavas.
E tua alma
A volitar
no descolar-se das relíquias
contemplava o próprio corpo,
com infinda pena e desolação,
Qual um homem
acidentado
Que no hospital
chora de desespero
Olhando o vazio da amputação.
Era de se esperar
tua relutância,
Pois tua partida
veio primeiro na loucura,
A indescritível,
sempre negada e refutada
Que vaza
luarenta
em nossas veias.
Ela desce os arroios rútilos
De geração em geração,
Iara
íncuba,
Silente com suas cavilosas proposições,
Planta de ribeira
de bruços sobre nós,
e nos sombreia a mente
Insuflando em nossos ouvidos as vozes na idade núbil.
Nos primeiros anos
Vem a opaca quietude
a candidez que não fala.
Mas à riba
da idade adulta
uma chuva de través
Um ruído
rouco sob a cama,
um gesto de mão no ar
Um sol crepuscular inflado
que parece partejar
Dos seus flancos andrógenos
à noite
nos interpelam.
Nessas horas as folhas dos plátanos farpados
– como lascas róseas monstruosas –
Trombeteiam em nossas fibras,
E nós, nós pisamos com cuidado
para não perturbar os pardais
Que com seus pios
podem descolar os céus.
Eles também liberam o horror
que há no translúcido orvalho!
Nessas horas,
uma mão gentil nos toca o ombro,
Mas o peso dessa mão é inumano e libera como uma onda oca
Vozes
que varrem o mundo à nossa frente
Precipitam-se sobre nós – e nos inoculam para sempre.
Eu me lembro
de teus escritos noturnos
dobrados
E sepultados em pequenas
urnas
Como mini-sarcófagos
de palavras,
Registro de teus dias
transfigurados pela tua noite:
Havia um estudo
do arsênio dos esquizofrênicos,
Notas
de tuas caminhadas
pelo bairro,
Quando
entrevias
através das janelas
as naturezas mortas
Das casas
onde uma planta
prodigiosa
crescia num vaso
– Carnívora e inebriante -,
onde as paredes eram
Como móveis águas
se deslocando
E onde os corpos
eram azulados.
E as palavras, cada uma delas,
Sibilavam como agulhas
nos ossículos de teus ouvidos
tocados de estupor.
Eu não te deixei em nenhum instante.
Mesmo em tua loucura
Foste por mim
sempre amado,
e eu te acolho hoje como ontem te acolhi.
Doeu em mim
e dói ainda
e em teu irmão
tua morte prematura,
Mais que nunca
te quero
como naquela noite
Em que
fomos de bicicleta a Boca do Monte,
Ingênuos
rumo à terra avoenga
ao cheiro de esterco
Dos campos
lavrados
ouvindo os zumbidos
dos insetos nos capões
Esparsos
talvez imantados os dois por
sei lá que atávica aquiescência nossa
À nostalgia.
Pedais, joelhos subindo e descendo os seios
Dos morros.
Dizias que a lua sugava
O ácido lácteo
de teus músculos.
Só a lua árida havia que encharcava
tudo,
a estrada,
o campo
As vacas,
o espelho lactescente
dos arrozais
Ofuscando
no alto
os novelos das estrelas,
Se imiscuindo
nos negócios da terra.
E por atração ao semelhante, ao circular,
fazia fosforescente os aros,
Cíclicos como a lua
como um centro de força,
Vórtice
interno
centrífugo do meu pensamento.
Ainda hoje te vejo assim pedalando
Em direção
à antiga casa de nossos avós
E ainda hoje estou pasmo
Que
teu último passeio
nesse mundo
seria para lá:
Eu entendo agora,
pela tua contínua visita
Tua amada intrusão
aqui no meu quarto que
só podes estar
Preso
entre o nada e o mundo
Em alguma
fissura
da ânsia
E és como alguém
que vindica a memória
Daquilo que escreveu,
mudo me interpelando
Exigindo, num último clamor, talvez num protesto,
A minha impotente intervenção. Por isso pergunto:
O que devo fazer?
Por entre os arrabaldes,
pela estrada
da infância
Sobre o colo tísico do estio,
do húmus inumado pelo asfalto, por entre a cidade
Que sobre a terra outrora viçosa
retorce suas pinças
Cruzando as antigas casas, viradas taperas,
Cruzando o campo antes
vívido
das reses, dos plantios de outras eras,
Um corpo é levado, lento féretro,
para o lugar de seu repouso,
Não na terra despojada
que cingiria teus despojos,
Mas no jazigo
junto aos ossos de nossa avó.
Eles estão calados, secos,
Ainda que em minha mente
possa ouvir de sua voz os ecos.
Tu poderias beijá-los e talvez haja espaço ali agora,
Inda que estreito,
Para ti
e para os pósteros de outra hora:
Eu queria imaginá-los, tornados virgens
Os ainda não nascidos
felizes retornando ao chão de origem
Pois foi lá que tudo
começou.
Essa gaveta pouca,
Por cuja
modesta campa
não cruza a nesga de uma lâmpada
É por demais
estreita
Um leito desafeito
para teu corpo amplo.
Ali
nesse meio tempo
Fantasio que ouvirás
talvez em tua noite privativa
O uivar do vento sul
E os pálidos látegos flavos
que os cachorros
Amolentam na garganta,
Ou que poderás
talvez
supor,
Ao longe,
Por entre esguichos cinzas,
O melindre dos morros galhofeiros –
Mas como cantou o trovador,
deve ser bizarro
não ser
mais desse mundo,
Sentir os pés
faltando abaixo,
Adaptar-se
ao vácuo do sem-fundo,
Desistir
de tudo que se aprende nesse horto,
Não ver mais
as roseiras
se alastrando ao leste
do teu corpo,
Não ouvir nem mesmo
as loas intrincadas
Das flores uníssonas nas coroas.
E aos poucos
hora a hora
deslembrar até teu nome
Tal qual
criança que deixou de lado
O brinquedo
que agora está quebrado.
E é bizarro
não querer agora
o que querias tanto,
Ver
que os nexos
de outrora
Se desprendem
desconexos.
Já esvoaçam
Folhas fulvas
pra todas as direções.
Não é fácil
estar morto: há sempre idas e vindas
E recaídas,
antes
que se toque o outro lado,
E com isso não quero dizer
que haja algo de muito veraz
Nas humanas distinções.[1]
Queria muito que te deixasses
Ir
submerso para sempre
no açoite da torrente,
E não voltasses
tanto teus olhos para mim em sonhos
Tu que és
tão recorrente
à noite
Nostálgico de algo
Que deixaste aqui.
Tu recais
quando
devias subir
Quero muito achar, Rodrigo,
que queres de mim
Apenas que eu remova,
por instantes,
A aparência
De brutalidade
de tua morte,
que é o que te segura
Nesse limbo
e te impede de abraçar o escuro.
[1] Rilke. 1a Elegia.
Lawrence Flores Pereira
É professor da UFSM. É pós-doutor e professor pesquisador do Massachusetts Center for Renaissance Studies, na Universidade de Massachusetts, Amherst.