Mesmo tendo reconhecimento, o cinema japonês não goza de tanta admiração entre os brasileiros quanto o cinema norte-americano ou europeu. Mas o filme “Drive My Car” (MUBI) ganhou repercussão sobretudo por se tratar de uma obra adaptada a partir de um conto do cativante escritor Haruki Murakami. Além disso, o longa-metragem também levou o Oscar de Melhor Filme Internacional, em 2021.
Dirigido por Ryusuke Hamaguchi, o filme conta a história de Yusuke Kafuku, um famoso diretor de teatro que perdeu sua esposa há dois anos e que é convidado para dirigir uma peça de Anton Tchékhov em Hiroshima, numa temporada de festival de teatro. Durante sua estadia na cidade, ele tem contato com Misaki, uma jovem motorista encarregada de levá-lo aos ensaios. Juntos, o diretor e a motorista estabelecem uma conexão bastante delicada e comovente. Enquanto Yusuke processa o luto e os seus sentimentos em relação à sua esposa falecida, também começa a desvelar mistérios sobre ela que o assombram com um dos atores que entra em cena e que havia sido amante de sua mulher. O roteiro segue o périplo de Murakami, mas importa menos em Drive My Car a adaptação da narrativa do conto do que a forma pela qual o diretor do filme distribui a ficção numa película de 179 minutos.
Pois é isto o que o filme Drive My Car representa: uma viagem por tudo que se insurge por meio das metáforas do cinema e do teatro em movimento; pelas repetições temáticas como se estivéssemos diante de um rascunho cinematográfico. Mas a questão é que simplesmente tudo dá certo entre texto e enredo nos rumos da excepcionalidade. E nada mais interessante do que referências fazendo o acordo entre literatura e teatro no cinema. A primeira peça encenada pelo protagonista é nada menos do que “Esperando Godot”, do irlandês Samuel Beckett. Os atores nos fazem acreditar que a peça é o maior sucesso com a plateia cheia, silenciosa e atenta diante de questões profundas relativas à perda de sentido da vida e à estagnação.
A próxima montagem do diretor é a peça Tio Vânia, do dramaturgo russo Anton Tchékhov, que conta a história de um homem decadente colecionando frustrações. A peça é montada em Hiroshima, cidade historicamente afetada pelo horror atômico da Segunda Guerra, refletindo nos personagens dos tempos atuais a paisagem cinza e sem muita mobilidade. Na chegada à cidade, o diretor da peça recebe uma motorista, conforme estão estabelecidas as regras para os residentes do festival de teatro. É nesse cenário de palidez que as construções mais afásicas entram em ascensão, onde um personagem atravessa no outro o volume grosso da melancolia.
Uma das cenas mais poéticas do cinema de Hamaguchi se desdobrará, contudo, até o final do filme. A metáfora da roldana de uma fita cassete girando se abre refletindo para a roda do carro em movimento na estrada, trata-se de um modelo lógico-temporal encontrado em grandes cineastas, como o mestre Orson Welles. O veículo é o lugar onde o diretor trabalha com seu método para decorar o gráfico do texto de “Tio Vânia”, graças àquela fita cassete rodando em que a sua própria esposa falecida gravara as vozes das personagens do autor tcheco.
Do ponto de vista técnico, os planos longos traduzem o tempo que passa a ser medido por tomadas cada vez mais lentas pela traseira do carro, filmando largas avenidas e túneis escuros. Contrariamente, o tempo flui em sentido oposto. Já é difícil calcular a velocidade em que o veículo percorre as rodovias de Hiroshima; a câmera, que antes enquadrava as cenas panorâmicas e aéreas, agora detecta olhares estáticos, com distanciamento típico que busca o efeito de letargia. As cenas tendem a ganhar ação, mas para um passado que continua vivo.
À procura dos desdobramentos necessários, das aproximações das personagens, longos diálogos ganham tanto corpo quanto o peso das imagens que constroem as parcerias entre Yusuke e a jovem motorista Misaki. A falta de contraste é algo genial e doloroso na engrenagem corrosiva entre os dois personagens. Tudo o que conhecemos de Yusuke é naturalmente preenchido na jovem motorista através do jogo de espelhamento. O duplo ganha contornos a partir das perdas, e nunca há um lugar para o sorriso no espaço do reconhecimento daqueles que estão confinados em memória dolorosa. Como então dividir ou somar corpos que estão nutridos pela mesma expressão melancólica?
Em busca da autodescoberta, o diretor tem como referencial o próprio objeto em que se debruça no trabalho: “Tchékhov é assustador. Quando você diz as falas dele, ele exibe seu eu verdadeiro. O que significa que não posso mais me entregar a esse papel”. A arte do teatro traduz a realidade que torna o passado a matéria do presente. Não tarda irromper no espetáculo a peripécia que ascende o lugar do autoconhecimento e da grande libertação.
Quem espera uma representação fidedigna da prosa de Murakami acaba se perdendo com a pungência do jovem diretor Ryusuke Hamaguchi, que oscila o pêndulo do cinema tocando com muita sensibilidade o teatro e a literatura com uma fotografia impecável. Viva o cinema japonês!
DRIVE MY CAR
Luis Marcio Silva
Formado pela UNESP. É escritor, tradutor e editor da Revista Piparote. Autor da dramaturgia "Dona Maria I - A louca de Portugal". Trabalha profissionalmente como webmaster.