Meados da década do desmonte de ilusões, a Europa num rescaldo de excessos ideológicos ou cinismo desencantado do desbunde pós-68, a utopia deitara sementes difusas e a velha política patinava numa guerra fria em banho-maria. Anos 70. A Itália, como sempre, no redemoinho de impasses. Morreram recentemente Visconti, Pasolini, Rossellini. Ettore Scola reivindicava um novo viés de abordagem depois das aventuras coletivas de “Nós que nos amávamos tanto”, agora em close-up, baixo-relevo, ângulos intimistas.

Com Ruggero Maccari e Maurizio Costanzo, o mestre assina um roteiro minimalista, na essencialidade do drama num só dia, como num conto de Tchekhov e Pirandello, conciso, compacto, um roteiro e copião feitos por e através de existências em compotas. Nada de catedrais bizantinas, duas vidas opressas com a doçura eloquente de meigas capelas toscanas. Muito jovem assisti “Una giornata particolare” num cinema santense com a sensação de estar presenciando o advento de um clássico — e era.

As referências da homoafetividade, ainda tão caricatas ou depreciativas, davam-me agora uma mirada de dignidade ao amor que pouco ousava dizer seu nome ainda sob as sombras da ditadura nos trópicos. Descobri a fita ao mesmo tempo que descobria os romances de André Gide (“Os frutos da terra”, “O imoralista”) e tinha acesso ao psicologismo dramático de Tennessee Williams. A obra-prima nascente de Ettore Scola era contrapartida cinematográfica à densidade literária que eu digeria também em “close reading” redentor.

Ver Mastroianni, mito absoluto, encarnar um sôfrego “entendido” ao lado da voluptuosidade domesticamente ostensiva de La Loren, de certa forma, me soava conjuração com uma problemática muito pessoal, um acalanto libertador. Quando o termo “ícone” se banaliza como adjetivo oco, o duo e o argumento eram ícones de uma semiótica muito forte. Cores esmaecidas, ao fundo cenas documentais sobre a visita bufônica do Führer a Roma, recebido pelo patético Rei Vittorio Emanuele agora vassalo do Duce: 5 de maio de 1938.

E toda a ruidosa parafernália peninsular nos deixa a sós em convivência com Gabrielle e Antonietta num daqueles prédios do projeto habitacional fascista que tanto lembram nosso futuro BNH brasileiro. Um marido boçal e uma penca de filhos se despedem da atarefada balzaquiana; rumam à Piazza del Popolo a testemunhar a celebração do pacto macabro que colocaria a pátria de poetas sob a máquina marcial germânica. A delirante nostalgia da Roma imperial custaria um revés marcante para uma geração crescida também sob o “fascio”.

Gabrielle e Antonietta são párias para o ethos doentio do sistema. A frase lapidar que serve de leitmotiv à trama e vetor da aproximação preconiza que “um homem deve ser pai, marido e soldado” na exacerbação falocêntrica do emprenhador para uma pátria grande, o provedor de uma mulher submissa e mãe de guerreiros para consumo da máquina beligerante.

Ambos exilados internos, ambos descartados pelo utilitarismo capital do Estado: ela pela descoberta do desejo desviante da família consolidada; ele pelo desejo desviante da heteronormatividade do pater familias. São aberrantes por excesso de delicadeza.

Um agravante: a atmosfera fascista, por natureza, da pequena burguesia, massa de manobra do modus operandi do regime, personificado na zeladora da pureza ideológica dos bons costumes. Antonietta introjeta, por mimetismo acrítico, o papel de um pequeno “Antonio” de saias: submete-se para garantir o primado do macho. Gabrielle, o anjo que perverte pelo pior dos pecados para a bruteza institucionalizada: a sensibilidade de um lírico.

No avassalador lugar sem fala das massas, irrompe o diálogo de singularidades, alinhavados pela chance à alteridade e empatia. Ettore decide por cinema no “osso”, um concerto de câmera ou tour de force a exigir o máximo de poucos elementos cênicos centrados na atuação, revelando signos e sentidos no limite da significação.

Um omelete compartilhado, o lúdico patinete, o pássaro — companhia e ponte. Nunca passando por mero teatro filmado — feito os supremos contos com tessitura de enredo — a película cairia como luva para adaptação ao palco.

Uma boa nova é que o teatro paulistano se recuperou do apagão da pandemia, e com uma ótima adaptação de Scola ganhamos a qualidade que remete ao velho TBC, com Reynaldo Gianecchini e Maria Casadevall. Sabendo o que ia assistir no lendário Sérgio Cardoso, fortaleci ainda mais a crença na face humana possibilitada pela dramaturgia em tempos de inteligência artificial.

Cenário básico, música e enunciados eloquentes: a aposta foi na interação calculada entre texto e interpretação vívida e muito convincente pela escolha de um casal sem preocupação em mimetizar os astros originais, mas com impostação e marcações naturalistas eficientes para dar conta do argumento central: a tal resiliência, quem sabe acrescida de resistência, do indivíduo em meio ao tsunami histórico.

Quem sabe a justaposição do background fático no início possa ser enxugada, mas o timing corre num entrosamento perfeito e pedagógico na contenção discursiva para nossos reflexos viciados pela inflação cognitiva digital. Fluidos e concatenados, Maria e Reynaldo nos dão o risorgimento necessário quando ainda patinamos nas batalhas diárias pela afirmação de direitos de mulheres e gays, mesmo sob a nada efetiva espuma “woke”.

Com o recrudescimento neofascista agora com feição high-tech, a montagem se faz necessária, principalmente pelo tom não panfletário e sutilmente densificado que só a ficção pode oferecer diante de platitudes politicamente corretas inócuas ao senso comum.

A direção de Alexandre Reinecke e a tradução de Célia Tolentino compõem o imprescindível aggiornamento sem supressões relevantes do filme antológico em seu cinquentenário. Sinal da era, entristece-me a curta temporada por falta de patrocínio, revelado pelo próprio ator nos agradecimentos. Será que o processo de idiotização galopante tem nos impedido do serviço das melhores intenções artísticas?

Recomendo com ênfase a preciosidade da encenação e torço sinceramente para que permaneçam mais tempo em cartaz, também rodando o interior do estado e Brasil afora. Mot juste com delicadeza de trato das atuações primorosas pedem ser revisitadas. Cada vez mais vai-se ao teatro para sentir-se gente, nos interstícios da experiência epidérmica da arte criadora de realidade pensante.

Refazer o percurso da poética do gesto com intencionalidade crítica como suportes da expressão torna-se práxis subversora do superaparelho que nos constrange em nome da técnica. É o Teatro, homem!

SERVIÇO

Teatro Sérgio Cardoso

Endereço: R. Rui Barbosa, 153 – Bela Vista

 

De 17 de outubro a 30 de novembro

Dia da semana e horário: 

sexta-feira, às 20h

sábado, às 17h e às 20h

domingo, às 17h

 Plateia Central – R$200,00 (inteira) | R$100,00 (meia)

Plateia Lateral – R$180,00 (inteira) | R$90,00 (meia)

Balcão R$140,00(inteira) | R$120,00 (meia)

Foto de Flávio Viegas Amoreira

Flávio Viegas Amoreira

Escritor, poeta e jornalista, nasceu em Santos, em 1965, mora em São Paulo atuando como agitador cultural pela capital paulista, Litoral e Rio de Janeiro. Considerado um dos mais inquietos escritores da "Novíssima Literatura Brasileira", já lançou 12 livros entre contos, poesia e romance: Maralto (2002); A Biblioteca Submergida (2003); Contogramas (2004); Escorbuto, Cantos da Costa (2005), Edoardo, o Ele de Nós (2007), todos editados pela 7 Letras Editora - Rio de Janeiro; além de livros publicados por editoras paulistas, antologias internacionais até ser incluído na denominada "Geração Zero Zero", reunião de contistas considerados mais representativos da primeira década do século XXI no Brasil, antologia organizada pelo prestigiado crítico literário Luiz Brás e editado pela "Língua Geral", em 2011. O escritor é crítico de cinema, curador de artes plásticas e colaborador com crônicas e ensaios para jornais brasileiros e sites, revistas literárias e publicações estrangeiras. Ligado à música e às artes visuais, já teve vários textos encenados em monólogos e adaptações teatrais. Tem constante atividade nos meios digitais, com importante atuação em sites, blogs e redes sociais com literatura digital e criação online de textos. Contato: [email protected]

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