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Fulgurações da safra de açúcar: um comentário sobre Fogo Morto, de José Lins do Rego

A década de 30 é fecunda para a literatura brasileira. O Brasil vê nascer, por nomes e regiões das mais ilustres, um texto literário novo, brasileiríssimo e moderno. Como aponta Antonio Candido, o brasileiro percebe a afluência de “uma literatura universalmente válida”[1], construída por meio de uma “intransigente fidelidade ao local”[2]. A preocupação profunda pelas mágoas e alegrias do país se imprime numa linguagem que se despoja do academicismo tradicional, que há anos já não conversava com a sensibilidade do país, dando sustento a estruturas próximas da oralidade, retirada dos usos e repercussões do cotidiano brasileiro, aproveitando dele a condição e percepção da vida brasileira. 

 A “era do romance brasileiro”[3], como muito bem o definiu Alfredo Bosi, é marcada pela preocupação diante da realidade do país, trabalhada pela “rudeza, captação direta dos fatos”[4], aprimorados por uma psicologia reestruturada. Ressurge, em nova fisionomia, o realismo psicológico, estruturado com maestria por Machado de Assis no século XIX. Mas agora esse realismo, consciente de sua condição frágil diante de uma realidade quase que inapreensível, como bem buscaram demonstrar as vanguardas europeias correntes na modernidade, se faz por outras vias, que não aquelas da mimese tradicional. Nesse ínterim, destaca Bosi:

Socialismo, freudismo, catolicismo existencial: eis as chaves que serviram para a decifração do homem em sociedade e sustenta ideologicamente o romance empenhado desses anos fecundos para a prosa narrativa (BOSI, 2015, p.405)

O momento literário é, portanto, um engajamento intelectual potente, que bem articula as sensibilidades do país. A linguagem é viva, capaz de penetrar em meandros profundos das personagens, tocá-las naquilo que mais desejam ou sofrem, sobretudo diante das intempéries tão familiares ao Brasil: a seca que dilacera, a sociedade que oprime, sempre conjugadas e em conflito.

A Paraíba e Pernambuco, especialmente àquelas do início do século XX, desentranhadas em fissuras pela transição do engenho de açúcar à usina, serão corporificadas pela linguagem sensível e pela instintiva avidez de José Lins do Rego. Fortemente imbricado na dinâmica social das novas transformações econômicas, que evocam o ápice da produção de cana-de-açúcar, sua transição para a usina, e sua respectiva decadência, bem como dos efeitos na sociedade brasileira que historicamente se estruturou na relação com a economia açucareira, o autor, como afirma Bosi:

soube fundir numa linguagem de forte e poética oralidade as recordações da infância e da adolescência com o registro intenso da vida nordestina colhida por dentro, através dos processos mentais de homens e mulheres que representam a gama étnica e social da região (BOSI, 2015, p. 415)

A literatura do romancista é uma “narrativa memorialista”, cujo coeficiente ficcional aloja-se na observação e memória, na qual uma contribui para a articulação da outra, na medida em que se reconhece as carências de cada uma na assimilação integral dos fatos.  Para Freud, em seu ensaio Lembranças encobridoras, de 1899, duas forças psíquicas opostas trabalham na manutenção da memória a partir da observação dos fatos. Enquanto uma busca sorver em grandes goles a importância da experiência, a outra atua na contramão dessa empreitada. Assim, as lembranças são sempre esparsas, reduzidas a fragmentos de pura afetividade, não raro criadas pela necessidade humana de elaborar a própria história e sustentar-se nela. Toda essa abordagem para enfatizar a criação poética de José Lins do Rego: alçando-se em afeição particular, o autor trabalha a relação com o outro, sempre assumido na forma do Nordeste, dos retirantes, seleiros, senhores de engenho e miseráveis de toda “não-sorte”. Sua égide literária, em que se concentram todas as suas inatas habilidades, agora aprimoradas, reside em Fogo Morto, de 1942.

O romance trabalha com três diferentes histórias que, no entanto, fortemente se entrelaçam: a vida de José Amaro, seleiro de mágoas e tormentos, que vê sua vida ausente de horizontes; o Lula de Holanda, senhor do engenho de Santa Fé, espaço outrora em veredas de crescimento, mas agora fadado à ruína; o Capitão Vitorino, que na ânsia de se desvencilhar de sua realidade mísera, cria narrativas próprias para sua auto-imagem elevada, que a todo momento parece se esfacelar diante da miséria que não cessa de surgir. Em ambos, há a opressão sistêmica de uma vida projetada que não se realiza. Uma angústia que surge pela impotência, submissão e fraqueza, as quais, inarticuladas na vida prática, se confluem em ordenado caos psíquico na mente das personagens. Vez ou outra, pensamentos dos mais variados vão surgindo a partir de momentos cotidianos. São visões e projeções de um passado inexistente, que entram em conflito diante dos acontecimentos atuais. José Amaro se recorda da boa infância, do futuro próspero que se insurgia em sua mente à época, mas se contrai em silêncio diante da filha que não se casa, da mulher que não parece estimá-lo, da campainha do cabriolé do senhor de engenho, e toda a sua fortuna e riqueza, que, para ele, é apenas um sonho irrealizável, suas demandas de trabalho medíocre, além da fama de Lobisomem que infortunadamente lhe concedem: 

Sentia solidão. O que ele queria entrava-lhe de carne adentro.  O que ele queria era viver só. Tudo o que o ligava à casa, à vida de sua casa, lhe doía, era como uma facada que lhe entrava no corpo. Porque não tivera um filho, não fora como seu pai, capaz de matar, de ser um homem de coragem(…) (REGO,1992, p. 75-76).

Do mesmo modo, Lula de Holanda, que vem do Recife, casa-se com Amélia, filha do senhor Tomás, e recebe um futuro próspero: será o novo senhor de um engenho potencialmente proveitoso. Aos poucos, porém, todos da casa passam a reconhecer que o novo membro da família não tem aptidão para o controle das terras. O acontecimento é inevitável: todos vão padecendo até a morte, assim como o próprio engenho e seu veio produtivo, até que a decadência se imprima também na mente das personagens, fazendo-as reconhecer sua impossibilidade de mudar a vida. O número 1850, que marca o início do crescimento do engenho, agora é a cicatriz sem cura, que a todo momento sangra sem precedentes.  O cabriolé, símbolo da família próspera do Santa Fé, é agora mais uma rememoração da insuficiência e da insistência da dor de sua simbologia de superioridade.

Em concomitância, ambas as personagens convivem com uma figura digna de atenção. O Capitão Vitorino Carneiro da Cunha, cuja extensão do nome, sempre por ele enfatizado, é também um desejo de estender a sua força e potência por todo o Pilar, seja valendo-se da política, confrontando-se com pessoas importantes da sociedade ou inserindo-se em conflitos físicos. Vitorino, numa conjuntura social de igual decrepitude, supera-a por meio de outras vias, trabalhadas exaustivamente diante de forças insuperáveis. Luta contra toda a realidade, mas ela permanece afligindo-lhe o espírito. Como observa o narrador: 

Não possuía nada e se sentia como se fosse senhor do mundo(…) Era Vitorino Carneiro da Cunha. Tudo podia fazer, e nada temia (REGO,1992, p. 256).

O autor é sagaz em construir essas complexidades na narrativa. A onisciência seletiva múltipla[5], que enforma o romance, permite que se posicionem no centro dos acontecimentos muitos dos pensamentos e angústias das personagens, sejam as descritas, ou aquelas que paralelamente estão também presentes, como a comadre Adriana, a Sinhá esposa de Amaro, D. Amélia, entre outros. O narrador dispõe, num mesmo ou diferente parágrafo, construções paradoxais, que ilustram, de um lado, a realidade concreta, por vezes miserável, e, por outro, a subjetividade das personagens, que não se detém na vida que ali se lhes apresenta, mas em outra, inapreensível, pois alojada nas dobras da memória. Destacam-se, por exemplo: 

O mestre José Amaro não olhava para coisa nenhuma. Havia dentro dele uma noite soturna. Os porcos fossam no chiqueiro, e o bode batia as patas no chão” (REGO,1992, p. 55); “Era homem para sustentar as suas opiniões, para enfrentar os perigos. A burra tropeçara num pau na estrada e quase que dava com ele no chão (REGO, 1992, p. 235).

Em suma, como observa Alfredo Bosi: 

Criaturas como o seleiro José Amaro, o Capitão Vitorino e o Coronel Lula de Holanda são expressões maduras dos conflitos humanos de um Nordeste decadente[6].  

Em ambos, a desolação diante da realidade, do Outro, opera com as três instâncias do tempo (presente, passado, futuro), numa constituição do devaneio freudiano. Como observa o psicanalista:

O trabalho mental vincula-se a uma impressão atual, a alguma ocasião motivadora no presente que foi capaz de despertar um dos desejos principais do sujeito. Dali, retrocede à lembrança de uma experiência anterior (geralmente a infância) na qual esse desejo foi realizado, criando uma situação referente ao futuro que representa a realização do desejo (FREUD, 1906, p. 138)

As personagens de Fogo Morto estão estagnadas num passado remoto, onde o presente parecia ilustre e o futuro era repleto de horizontes. O tempo atual em que agora vivem é um momento de transformações econômicas e políticas, em que valores tão sólidos perdem legitimidade diante das necessidades modernas. As forças policiais lutam contra os cangaceiros, que lutam contra a ordem social que, para a maioria da população, é a causa de sofrimento, devido à nítida desigualdade que se forma. O trabalho com a sola  perde sua importância, pois a riqueza e o poder dele não advém; a filha de Lula de Holanda deseja se casar com outro moço que não aquele dos sonhos do pai que, junto à própria incapacidade do senhor do Santa Fé em administrar o que lhe pertence, perpetua sofrimentos intoleráveis; Vitorino, embora de patente, é desprestigiado pelos senhores de engenho e por aqueles de seu próprio estatuto social. Tudo é elaborado pelos traços mais rudes, mais simples, não há enfeites, apenas duras palavras organizadas em sentimento profundo. É a convencionalização de traços característicos que tanto Antonio Candido discute, inclusive, ao falar do romance de José Lins do Rego:

Assim, em Fogo Morto, José Lins do Rêgo nos mostrará o admirável Mestre José Amaro por meio da cor amarela da pele, do olhar raivoso, da brutalidade impaciente, do martelo e da faca de trabalho, do remoer incessante do sentimento de inferioridade. Não temos mais que esses elementos essenciais. No entanto, a sua combinação, a sua repetição, a sua evocação nos mais variados contextos nos permitem formar uma ideia completa, suficiente e convincente daquela forte criação fictícia (CANDIDO, p.07).

Nada de enfeites ou adornos. A decadência da cana-de-açúcar vai sendo pouco a pouco assimilada pelas personagens. Cada uma, a seu modo, lida com as adversidades, mas todas, sem exceção, enxergam a impotência, a irrevogabilidade, a fraqueza, como únicos elementos sólidos nessa transição tão cheia de desolação. Tudo ganha corpo e sensação na habilidade magistral de José Lins do Rego.

Bibliografia

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2015.

CANDIDO, A. A personagem do romance. In: A personagem de ficção. et al. São Paulo: Perspectiva, [s.d.].

…………………. Literatura e cultura de 1900 a 1945.  São Paulo: Todavia, 2023. 1 ed.

FREUD, S. Escritores criativos e devaneios (1906). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas e Completas de Sigmund Freud. (volume 9). Rio de Janeiro: Imago, 1996.

FREUD, S. Lembranças Encobridoras. (1895) Rio de Janeiro: Imago, 1974.

FRIEDMAN, Norman. O ponto de vista na ficção. São Paulo, Revista USP, n°53. USP, março/maio, 2002.

LEITE, L. C. M. O foco narrativo. São Paulo: Ática, 1985.

REGO, José Lins do. Fogo morto. Rio de Janeiro: José Olympio, 1992. 40 ed.

[1] CANDIDO, 2023, p.152

[2] idem

[3] BOSI, data, p.404

[4] idem

[5] Nomenclatura trabalhada por Norman Friedman, em suas discussões sobre foco narrativo, e aqui aproximada pelo trabalho analítico. Diz respeito a um narrador quase ausente, em que o enredo se constrói pelos pensamentos ou falas das personagens, próximo daquilo que se compreende como estilo indireto livre.

[6] BOSI, 2015, p. 416

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Gustavo Izidio Silva

É estudante de Letras na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Interessa-se por literatura brasileira, psicanálise e teoria literária, pesquisando, sobretudo, a obra de Clarice Lispector. Já escreveu sobre Adélia Prado, Clarice Lispector e Cecília Meireles.

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