Fotografia de Marina Ofugi (reprodução do Wikipédia)
Artista: um conceito que se ampliou de maneira tão vulgar, artista… não, não é qualquer um que aparece na TV ou faz algum rebolado. Conheci um artista total: ator visceral, diretor, produtor, um leitor que fazia da leitura uma arte, um agitador cultural que percorreu o Brasil descobrindo o Brasil que o Brasil mal conhece: Sérgio Mamberti. Da geração que cresceu no turbilhão intelectual e militante que era Santos nos anos 50, neto de práticos da barra, horizontes amplos, cosmopolita de raiz, um santista arquetípico desses que tem o vento noroeste nas veias e o mundo destino. Cinéfilo, de família italiana envolvido por música e teatro, obviamente, foi um dos pupilos da legendária Pagu, a essa época moradora de Santos, casada com o não menos antológico Geraldo Ferraz, editor de jornal, e traziam o melhor do Brasil e devolvia daqui o que se fazia em arte santense.
Pagu descobriu Plínio Marcos, revelou Zé Celso e naquele caldo sua genialidade nos trazia Arrabal e Ionesco nos palcos. Mamberti encontrava-se no momento e lugar certo: conhecia de cinema com Maurice Légeard, de teatro com Patrícia Galvão, a música nova com Gilberto Mendes e seguiria as veredas da maior atriz brasileira também vinda daqui: Cacilda Becker… tinha que ser, como diz Hegel, o “acaso objetivo”. Ao lado do irmão Cláudio sobe a serra para apostar em arte, verdadeira arte do ator é teatro num tempo sem garantia nenhuma para um artista de verdade: jogou-se e era inevitável porque exalava vocação que é o talento posto em ação. Tinha vocação inata e talento que são coisas diferentes e raras num só indivíduo.
Há cinqüenta anos Mamberti estrelou uma das peças mais polêmicas do século XX: O Balcão, de Jean Genet, com direção de Victor Garcia considerada pelo escritor maldito francês melhor encenação de sua obra. No elenco desse marco da dramaturgia mundial três santistas: Mamberti, Ney Latorraca e Jonas Mello, sempre os santistas marcados pelo talento, repito… No cinema fez tipos raros em caracterização e na TV popularizou sua marca, mas ressalto aqui Mamberti intelectual público, não acadêmico, militante, missionário da cultura na Funarte e no MinC. Neste momento em que ressignificamos a Arte a partir das ‘quebradas’, das antigas periferias e redimensionamos a cultura indígena e afro-descendente, Mamberti foi incansável na promoção da cultura desde as aldeias mais remotas da Amazônia até os quilombos mais preservados em sua riqueza ancestral.
Menino, meu primeiro contato visual com um grande artista foi com ele vizinho que vinha visitar seus pais Ítalo e Maria José na Rua Bolívar onde cresci. A delicadeza ali parecia genética: doce na vida, contundente na arte. Convivemos na luta de esquerda, ultimamente o revi em Visitando o Sr. Green e por último ao lado de Rodrigo Lombardi num espetacular O Panorama Visto da Ponte. Morador do Bexiga era visível a emoção ao discorrer o orgulho de ser santista carregado de sentimento atlântico do mundo. Tenho comigo se não fosse artista plástico eficiente seria também poeta, mas ser ator ocupava espaço demais pelo tanto que incorporava de alma aos personagens e pelo tanto que imprimiu de verdade na vida pessoal sem ter medo de dizer sobre todos amores que viveu. Tínhamos dois amigos em comum: Antonio Abujamra e Antonio Ghigonetto: com mesma garra os três agora a compor uma companhia instável de repertório estelar…. Salve sempre, Mamberti!
Flávio Viegas Amoreira
Escritor, poeta e crítico literário. Colunista da seção “Terra em Transes” da Revista Piparote.