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Poemas inéditos de Mariana Machado de Freitas



Souvenir

Já era Buenos Aires, acordei
no sonho — um verso inteiro, e melodia!
Um souvenir da vida, uma coisinha
que não banhou no Lete; e resgatei,

entre o resíduo onírico, uma lei
despretensiosa, então, que anunciaria,
na cena de uma portenha bandinha,
a frase mais estranha que escutei.

Os músicos, chapéus de abas largas,
nos três — pois eram três com violão —
a voz um pouco alegre, um pouco mágoa.

Enquanto eles no palco, eu, no salão,
cuidei que repetiam as palavras:
Y el tiempo no es más que una ilusion.


Jornada

Pelos confins da terra erma, nada
do que se engendra na entranha dura —
da pedra bruta à pedra entalhada —
é de jornada mais ou menos pura.

De barro e água, a tua envergadura
sem semelhança, cuja imagem guarda
uma lembrança, qualquer coisa muda
que desde muito fizeste apagada.

No entanto, arde num rincão exato
o que te exige a assunção da sina,
e mais ainda que discurso, o ato.

E mais ainda tua vontade inclina
para entregar ao Alto um tal retrato
que Ele não jogue uma cortina em cima.


O Gafanhoto

Romeu, meu gafanhoto,
não era o meu Romeu,
que havia de ser outro.

No entanto, me escolheu
como uma divindade,
e digo que era meu.

Fizemos amizade
enquanto ele esperava a
Julieta de verdade.

Assim, ele morava,
no meio de um xaxim
de grandes samambaias.

E, toda vez que eu vinha,
pegava-o entre as mãos,
dedilhando as costinhas.

E não fugia, não.
Ficava comportado,
tamanha a atenção!

Romeu enamorado,
perdido na ramagem,
era o meu aliado.

Porque todas as tardes,
como a visita certa,
colhia-o nas folhagens.

Um dia, só a jaqueta
toquei. Tinha fugido
com a sua Julieta.

Os dois, ao infinito…


Mime

Pela primeira vez, em quinze anos,
eu tenho uma gata velha.
Velha de não tomar banho,
de andar com as cadeiras frouxas
e ter de sentar quando cambaleia.

Os civilizados perguntam:
“Por que não a banhas na pet?”
Meu Lulu, sim, é mais calmo,
mas não a persa Camille!
Só com dardo que amansa leopardo.

Piedade! É uma gata velha de dar dó…
Não ser dopada é um direito dela.
Dominem o chilique higienista,
as tentações científicas.
É minha gata. Está se terminando.


Epitáfio para um cão
(Versão de Epitaph to a Dog, de Byron)

Junto à Lápide
descansam os Restos daquele
ser de Beleza sem Vaidade,
Força sem Arrogância;
Coragem sem Brutalidade;
com as virtudes do Homem, sem os Vícios.
Este elogio, Vazio e sem sentido
se inscrito sobre humanas Cinzas,
é a mais justa homenagem em Memória a
BOB*, o CÃO,
nascido em 1803
e morto em 1808.

Quando, orgulhoso, um Filho do Homem regressa,
ostentando um bom nome que a Glória despreza,
o cinzel do escultor, em pompas, é esgotado
e a lápide relembra quem descansa abaixo:
quando a arte da tumba é acabada, tem escrito
não o que foi, mas o que podia ter sido.
O pobre Cão, no entanto, o mais amigo em vida,
o primeiro a saudar, o ágil na guarida,
cujo Mestre é seu próprio coração sincero,
que luta, vive, serve como íntimo anelo,
ganha o desdém, toda a valia é preterida,
teve uma Alma na terra, que ao céu é banida:
quanto ao homem, o torpe inseto! Tem esperança,
em seu exclusivo céu, por perdão ele clama.
Ah, cara! Tu, o frágil hóspede das horas,
és no poder, corrupto, e a escravidão imploras,
quem te conhece bem, deve causar-te nojo,
tu, degradada massa de pó horroroso!
Teu amor é luxúria, e a amizade é um chiste,
hipócrita é a tua língua, o teu coração finge!
De natureza vil, mas com nome tão nobre,
envergonhas-te ao ter um parente mais pobre.
Vós! que passais aqui por este simples túmulo,
segui adiante; não honra algum grande defunto.
A lembrança do amigo, a pedra irá marcar;
não tive outro além dele — eis que aqui ele está.


*Escrito para Boatswain, seu cão Terra Nova.

Mariana Machado de Freitas

Mariana Machado de Freitas

Nasceu em Pelotas (RS). Poeta, mestre em Poéticas Visuais (UFRGS), bacharel e licenciada em Artes Visuais (UFSM). Autora de Cães & Astromélias, Ed. Mondrongo, 2021.

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