I [a virgem do prado]
não fosse cada sinal
cada imperfeição
não fosse meu ombro ainda marcado pela alça
a etiqueta da calcinha aparecendo
o fio
de estria
.
não fosse a linha solta
na barra da blusa
e parte das minhas costas à mostra e
teu olhar quando desce e descobre que, no desenho
são consideravelmente desiguais
os dois vales
do sacro
.
não fosse cada delicadíssimo insulto, amor
tu me tomarias imaculada
meu corpo a ser pintado numa tela
como a virgem do prado de rafael
.
não chegarias perto
não terias coragem
de tocar
muito menos contornar meu cuzinho
com o dedo
com tinta tão sem valia
quanto teu cuspe
II [madrepérola]
depois do banho
o veio d’água que desce pela mecha mais
longa
do corte em v:
um pingente que se destilasse, uma joia provisória
(e se encontra no caminho, na ponta
qualquer resto de creme
aí leva junto, até perdê-lo no fim
na entrada, na curva
ainda branco
ainda
morno)
III [maria da graça]
quase nem toca na água
quase nem se percebe, num fio ─ o rastro de dois
numa manhã
(enquanto espero o xixi)
.
os pés na ponta
sobre o tapete em crochê
nem pousam no chão
nem pisam nesta terra de homens
nem deixam olhares
de testemunho
.
há momentos assim tão puros na vida
da mulher que trai
há horas de tamanha graça, que ─ parece
são só ela
e deus
a fome
mar becker
(da seção “as filhas, as mães, as avós”, de “a mulher
submersa”, urutau)
I
tínhamos cada uma sua boneca preferida, eu e minha irmã. essas duas cuidávamos
com muito mais zelo que as demais
nas noites de frio, por exemplo, iam pras nossas camas, para dormirem junto
e havia sempre um beijo de boa noite, e pelas mãos cercávamos seus corpinhos de
pano com relâmpagos
.
éramos meninas
os cabelos ainda finos, como se feitos por bichos da seda. na pele, os sinais
da lua, do eclipse. a sombra no púbis, no umbigo
o sono respirando
nos lábios entreabertos. a mesma noite atravessava os anos pela boca da mãe até
nossas bocas
e das nossas bocas até a boca das bonecas
num ciclo de perpetuação
da fome
II
em uma semana o chão do quarto de costura voltava a ficar tapado de retalhos
eu e a irmã juntávamos os maiores, pondo-os numa sacola. com eles fazíamos
cueiros para as bonecas
(coisa mal-acabada, de um artesanato inábil)
às vezes na hora de enrolar os corpinhos algumas remendas se abriam
ainda não tínhamos mão para o trabalho delicadíssimo
da sutura
não aquele traço de malignidade
que conduz o ponto a ponto
perfeitamente
.
as manequins nos acompanhavam, seus olhos vazios
mulheres paradas no meio do caminho
estátuas de sal, inacessíveis
bíblicas mulheres de ló
III
enquanto durmo, minha avó maria manoela regressa
deixa a porta entreaberta, para dar passagem a um cortejo de pássaros que vem logo atrás, acompanhando-a pelo corredor
assim que encontram meu quarto, ela se detém, à soleira
e eles seguem; então se aproximam e pousam e arrancam a bicadas meus pelos do sexo, do pomo
(voarão para longe amanhã
e com meus pelos erguerão
seus ninhos)
Mar Becker
(Marceli Andresa Becker) nasceu em Passo Fundo (RS) e atualmente mora em São Paulo (SP). Publicou “A mulher submersa”, seu primeiro livro (Poesia), em maio de 2020, pela Editora Urutau. Em 2021, "A mulher submersa" recebeu o Prêmio Minuano, concedido pelo Estado do Rio Grande do Sul, e foi finalista (em segunda fase) do Prêmio Jabuti.