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Poemas da poeta afegã Nadia Anjuman – Por Regina Guimarães

“Flor de fumo e outros textos” tem tradução da poeta Regina Guimarães, a partir da versão inglesa de Diana Arterian e Marina Omar (ainda não editada). A obra é publicada em Portugal pela Editora Exclamação.

Nadia Anjuman, poeta e jornalista afegā, nasceu a 27 de Dezembro de 1980 e morreu a 4 de Novembro de 2005 na cidade de Herat (Afeganistão). Entre 1996 e 2001, sob o regime do Emirado Islâmico do Afeganistão, fez parte dum círculo clandestino de mulheres estudiosas de literatura, Escola da Agulha Dourada de seu nome, sob a direcção do professor Naser Rahyab. A pretexto de trabalhos de agulha aprovados pelos talibäs, as seis estudantes praticavam uma actividade expressamente vedada às mulheres. Mais tarde, após a intervenção americana e subsequente instalação dum governo fantoche, Nadia Anjuman virá a inscrever-se na universidade e, em 2005, publica um livro de poemas intitulado Gul-e-dodi (Flor de Fumo), best-seller que terá vendido perto de 3000 exemplares.
Casada desde 2004, Nadia Anjuman queixa-se duma existência de cativeiro dominada pela dor e melancolia. Apesar das pressões negativas exercidas pelo esposo e pela família, a poeta pretendia publicar um segundo livro em 2005. Nadia Anjuman morre no último trimestre de 2005, no hospital de Herat, na sequência do espancamento de que foi vítima. O marido e autor do crime terá esperado quatro horas até se decidir a levar a esposa moribunda, porventura já morta, ao hospital. A família aceita retirar a queixa movida contra o marido da falecida, conquanto este cumpra no mínimo quatro a cinco anos de prisão. O marido passará apenas alguns meses na cadeia, admitindo ter batido na mulher mas asseverando que a morte de Nadia terá sido suicídio.

ACEITA A VERDADE

Porque te fechas na jaula da fantasia?
Ó inquieto,
          ó irrequieto nómada
Ó humano
          de todas as criações de Deus a mais nobre
          e contudo condenada a viver no caos
Tu e eu somos como pedaços de madeira flutuando à flor do mar
          não sabemos se um terrível vendaval
          se vai abater sobre nós
          arrastar-nos até à praia
          ou sujeitar-nos ao desastre,
          à tormenta arrasadora…
Tu e eu somos a folha de outono
          – a mão irada do vento facilmente nos derruba
Ó tu, menina rara,
          ó beleza coroada de cabelo em desalinho,
          um olhar teu basta para virar o mundo ao contrário
          e a tua farta cabeleira basta para mil corações subjugar,
          de que vale esse encanto rebelde, esse teu jeito de inflamar corações?

Dizes para contigo:
           “O mundo é meu…
          O céu e a terra são meus
          A primavera e o seu ar perfumado pertencem-me
          Pertence-me o jardim e pertencem-me todos os ramos verdes a vicejar…”
Ao ergueres a cabeça qual flor medrando
          não percebes que vais murchar entre as garras do tempo?
Não dilaceres o coração dorido de quem te ama
          pois a tua beleza não é eterna
          e a frialdade do outono não tardará a transtornar-te

Porque és tão arrogante?
Tu e eu somos como velas acesas,
como pássaros feridos
– almas coladas aos lábios
Aceita a verdade
Ó tu, comerciante afortunado,
atolado nos luxos deste mundo
até à ponta dos cabelos,
espreita para dentro do teu colarinho estreito
e atenta no que vês
A tua mãe, aflita e doente, sofre
          e tu, indiferente, bebes o vinho da ganância
De que vale arrecadar ouro e prata?
Dia e noite vives afogado no medo
temendo que a mão do destino te roube a glória, a riqueza e a honra
Porquê fugir da verdade?
Onde irás parar ao cabo dessa rota sem pouso nem repouso?
Se acaso recebesses a notícia da morte da tua mãe
          que farias, ó tu que julgas subjugar o sol?
Imagina que possuis o tesouro de Korah e o poder de Nimrod
e pergunta a ti mesmo
se tens um só instante teu?
Ou se és capaz de aliviar um enfermo a arder em febre?
Não sei o que queres ao certo…
Ora tu e eu somos as sombras das nuvens
Tu e eu somos a chama extinta, somos caminho, desfiladeiro, rua, ruela, beco sem saída
Não conheces a razão da nossa existência
o segredo da nossa concepção?
          Nada podemos contra o tempo, nem nos mais breves instantes?
Ó senhor das leis! Ó tu, dono da força!
Se és humano e humana decência tens,
desfaz o nó que amarra os desgraçados
Sê abrigo dos sem-abrigo
e, como Haatam,
          dá a mão aos fracos!
Ó humano!
Porque estás cheio de pesares e ânsias?
Porque estás preso ao mal deste mundo?
Suportas inúteis penas
Vives só e de mãos vazias, carente de amiga companhia
Precisas de sustento, pois no fim terás de abalar
E não poderás levar ouro e prata para o outro mundo
Pensa bem:
de nada serve devanear
É preciso conhecer o que nos espera
Aceita a verdade
e escorraça os sonhos…
Precisas de víveres, porque no fim terás de abalar
Não poderás levar contigo ouro e prata
Há que pensar de outra maneira!
Não podemos sonhar acordados,
temos de tomar consciência do nosso estado
Aceita a verdade
          e livra-te dos sonhos que toldam o teu entendimento!

CAMA

Vi um homem na berma da estrada,
deitado e sem posses
Estava coberto, dos pés à cintura, com um pano velho –
o resto do corpo, nu, colava à terra húmida
Não tinha sapatos nos pés nem tecido a tapar-lhe o corpo –
totalmente nu e indiferente à multidão em seu redor
As pessoas troçavam do homem, riam-se dele
Um 
disse que era louco, outro que era bêbedo…
Um disse que ele era idiota, outro 
que era doente,
outro que estava morto, outro que estava enamorado…
Todos os que passavam pelo homem
o olhavam de cima, estupefactos e sobranceiros
De repente, ele levantou a cabeça do chão
e, reparando nas pessoas, perguntou: O que vem a ser isto?
Estais pasmados porquê? Vistes um gigante?
Responderam-lhe então: Estamos perplexos diante da sua condição… Cretino!!! Vossemecê está a dormir na berma da estrada
Se tivesse juízo, não dormiria aqui e assim
Talvez alguma Leyli lhe tenha dado a volta ao miolo…
Então, por sua vez, redarguiu ele: Não vos preocupeis com o lunático… Julgais que este sujeito desleixado é um animal do deserto?
Perguntais pela minha roupa,
quando eu estou deveras a usar seda,
seda invisível 
aos olhos pecadores
O devoto não precisa de almofadas

1999

NADA
gazal

Quero abrir a boca, mas para cantar o quê?
Cantar não muda nada se nestes tempos sou desprezada…

Que posso eu dizer do mel quando a boca me sabe a veneno?
Maldito seja esse punho prepotente que a molestou…

Se ninguém no mundo é amável para comigo, quem devo louvar?
Que eu chore ou ria, morra ou viva, não muda nada de nada…

Solitária, emoldurada pelo pesar e pela perda,
nasci em vão e a minha boca está selada…

É primavera, coração, eu sei, é tempo de celebração,
mas tenho as asas presas – que fazer se voar não posso?

Não esquecerei a canção embora condenada a calar-me
num infindável lamento arranco palavras ao peito…

Celebre-se o dia em que vou escapar a esta jaula
e embriagada cantarei o meu regresso à tona

Não sou como o frágil salgueiro que treme a todo o vento
Sou uma afegã, por isso o meu afã é chorar-me o tempo todo

1999

BRINQUEDO

Ó caixa vazia de boneca
Ó tu que perdeste o conteúdo
Ó cabeça esmurrada ó pés rotos
E atirados para 
um monte de lixo

Ontem estavas na prateleira
Descarada no alto do 
teu trono
E todo o teu corpo iluminava
Completamente o aposento

Esse teu corpo de papel colorido
Tinha o 
esplendor dos vasos de ouro
E as crianças curiosas devoravam
Com os olhos a tua 
airosa figura

De súbito, caíste nas mãos do destino
tombaste do poleiro para o chão
Estava presente, assisti à cena,
Vi quão facilmente te quebraste…

A tua alma encantara
Todos quantos contigo se cruzaram
Embriagado pelas 
mãos que o tocavam
O teu corpo até sabia rir e conversar

Descarado e dado à brincadeira
O teu corpo desnorteou as crianças
Destruindo 
a sua própria existência
E causando a ruína da tua alma

Elegante e macio, mal saiu da caixa
Caiu brutalmente 
do seu pedestal
E num abrir e fechar de olhos
Foi tragado pelo abismo…

Agora perdeste pés e mãos
Perdeste a coroa e os 
caracóis
E já nada resta do pano
Do teu vestido em forma de flor

Durante a briga das crianças
Quebrou-se a tua cabeça
Mas os lábios sustinham ainda
O teu sorriso gracioso

Tirando futilidade e cacos
Que é feito agora de 
ti?
Foi lançada ao lixo a estátua
Bela e desejável 
que eras dantes

Agora és esse corpo despedaçado
Agora és essas 
mãos vazias
E o tempo, destro e ágil jogador, 
Não dará ouvidos aos teus gemidos

Ó caixa vazia de uma boneca
Também eu estou vazia – mais ainda que tu
Virei 
brinquedo nas mãos do destino
Tornei-me trivial, despedacei-me

O meu coração rolou para a lama
Murcho, desgastado 
e sangrento 
E o meu ser tão brilhante e colorido
Foi esmagado 
pelo peso do tempo

Virar brinquedo é uma amarga sina
Tão-só miséria 
tão-só inquietação
A mão que nos destruiu a mim e a ti
Não será sensível ao nosso 
lamento

Ó caixa vazia de boneca
Ó tu que perdeste o conteúdo
Ó cabeça esmurrada ó pés rotos
E atirados para 
um monte de lixo

2002

FLOR DE FUMO

Estou cheia de vazio
                                   Cheia
E muitas vezes é este fardo de nada
no campo incandescente do meu corpo
                                   que arde por dentro
Desta estranha ebulição 
                                   de súbito
                                   os meus poemas
                                   nascem
                                   ao jeito de papéis
                                   desdobrando-se
                                   – rara flor são
Porém,
estes fios de fumo
                                   dão ao meu corpo
                                   seu cheiro e sua cor

2003

Picture of Nadia Anjuman

Nadia Anjuman

Poeta e jornalista afegā, nasceu a 27 de Dezembro de 1980 e morreu a 4 de Novembro de 2005 na cidade de Herat (Afeganistão). Entre 1996 e 2001, sob o regime do Emirado Islâmico do Afeganis- tão, fez parte dum círculo clandestino de mulheres estudiosas de literatura, Escola da Agulha Dourada de seu nome, sob a direcção do professor Naser Rahyab. A pretexto de trabalhos de agulha aprova- dos pelos talibäs, as seis estudantes praticavam uma actividade expressamente vedada às mulheres. Mais tarde, após a intervenção americana e subse- quente instalação dum governo fantoche, Nadia Anjuman virá a inscrever-se na universidade e, em 2005, publica um livro de poemas intitulado Gul-e-dodi (Flor de Fumo), best-seller que terá vendi- do perto de 3000 exemplares. Casada desde 2004, Nadia Anjuman queixa-se duma existencia de cativeiro dominada pela dor e melan- colia. Apesar das pressões negativas exercidas pelo esposo e pela familia, a poeta pretendia publicar um segundo livro em 2005.
Nadia Anjuman morre no último trimestre de 2005, no hospital de Herat, na sequência do espancamento de que foi vítima. O marido e autor do crime terá esperado quatro horas até se decidir a levar a esposa moribunda, porventura já morta, ao hospital. A família aceita retirar a queixa movida contra o marido da falecida, conquanto este cumpra no mínimo quatro a cinco anos de prisão. O marido passará apenas alguns meses na cadeia, admitindo ter batido na mulher mas asseverando que a morte de Nadia terá sido suicídio.

Picture of Regina Guimarães

Regina Guimarães

Nasceu no Porto e é uma poetisa, cineasta, dramaturga e letrista. Juntamente com o seu companheiro Serge Abramovici (Saguenail), com quem vive desde 1975, fundou a editora Hélastre. Regina Guimarães é membro da banda musical Três Tristes Tigres, tendo escrito as letras das canções da banda. Também escreveu algumas das letras de canções dos Clã. O primeiro livro da Regina Guimarães foi publicado em 1979, e, apesar de um ritmo de publicação irregular, é considerada como uma das mais importantes artistas da cidade do Porto. A sua poesia caracteriza-se por uma forte musicalidade, associada a imagens fortes e bizarras. Além de livros de poesia, tem publicado outros, de dramaturgia e de teatro. Tem desenvolvido extensivo trabalho como encenadora, também. Paralelamente, tem desenvolvido trabalho em vídeo, nalguns casos, ao lado de Saguenail.

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