Escritor, poeta, crítico e tradutor, o suíço francófono Philippe Jaccottet foi um dos poetas mais inventivos e prolíficos. É também um dos mais lidos e estudados. Seu trabalho como tradutor engloba Homero, Platão, Hölderlin, Rilke, Thomas Mann, Ungaretti, Góngora, Robert Musil. Na juventude parisiense, Philippe Jaccottet frequentou os círculos literários com Jean Paulhan, Marcel Arland, Francis Ponge e tornou-se amigo de escritores e poetas da sua geração, como Yves Bonnefoy, André Du Bouchet, André Dhôtel, Pierre Leyris e Henri Thomas. Traduzidos por Mônica Costa Netto, A Rola-Turca e Tarde foram extraídos do livro Paysages avec figures absentes, 1970 (« Paisagens com figuras ausentes »)
A ROLA-TURCA
Berço da aurora? Cores, ao menos, um ninho de cores, para começar, finas e suaves como as reunidas ao nascer do dia, no entanto, diferentes; cores, ou melhor, nuances, gradações sem ruptura, nuvens de terra e de leite que se mesclam, esposam-se; sob o colar de ardósia. Nuvem adormecida, nuvem deitada na gaiola, bem ao fundo do quarto camponês, novelo de fumaça na fumaça.
Mas o olhar logo discerniu também um corpo, morno, vivo, curvas de leitosa terra, uma garganta que respira, uma suavidade, uma languidez emplumada. Parece dormir; é uma nuvem adormecida em seu hálito, nuvem ou, ainda mais confusa, nebulosa.
Bruscamente, por algum alerta despertada, arrancada do sonho, suas asas batem, abertas como bandeiras que estalam, ou linhas. Descobre-se, então, a voluptuosa revoada, esse leito de plumas alado, essa languidez aguerrida; ou seria uma barca transportando, oculta sob velas enfunadas, alguma rainha deitada no fervor de seus lençóis, ou das espumas?
Mas, no espelho embaçado de uma noite, mais tarde, talvez em sonho, ou entre sono e vigília, eu soube de quem tu poderias ser também a imagem, de que mulher tão indolente, da voz rouca e da pele tão branca, os dentes quase transparentes entre lábios pálidos, tanto que quando num átimo, mas sem pressa, seus olhos se voltam para nós, espanta-nos que o castanho de sua íris nos queime a tal ponto; mas, por não ser um fogo, ainda que contido num lampião de âmbar, por tratar-se apenas da cor daquilo de que durante muito tempo um fogo se aproximou, roçou, por ser somente o reflexo de um duradouro e longínquo fogo, por ser apenas uma carícia, talvez mesmo imaginária, do fogo, por isso mesmo, ela é de modo muito preciso, com sua tez leitosa e essa dupla íris marrom (já desviada, ou velada por uma pálpebra cansada), totalmente lânguida.
Rola-turca, nomeada à perfeição: odalisca carregando na nuca esse colar de ardósia que talvez signifique: “serva da noite”. Não sendo nada além daquilo que se prepara, ainda puro, para queimar, a aurora é quem diz: “espera um pouco mais, logo serei chamas”; broto de algum incêndio.
Mas, essa aurora, o fogo só toca à distância, dele, ela está apartada seja pela distância, pelo tempo ou pela lembrança, a mistura do ardor e da distância, a memória do amor que fluiria em nós interminavelmente.
O pássaro que se erguera assim no punho enrugado era apenas o meu corpo que, por um instante, o sonhara semelhante àquela mulher, foi ele que encontrou esses vínculos, essas palavras entre ambos.
Creio que se eu piscasse os olhos, como se faz para evitar o incômodo dos detalhes de uma pintura, até que eu visse nessa mão apenas um lampejo, uma chama vacilante, estaria mais próximo do que havia experimentado de início: a perturbação, a alegria de uma anunciação quase intangível, ou a porta entreaberta do Tempo.
Mais tarde ainda, eu vi um pássaro da mesma espécie habitar meu jardim, andar nos muros sem se preocupar com os gatos, às vezes ele pousava na figueira que o outono amarelava, iluminava. Muito mais bonito que uma fruta, livre como um pensamento silencioso na folhagem do coração envelhecido. Perfeitamente tranquilo, abrigado ali, ainda que sem amarras e, por meio de sua voz, parecia absorver e traduzir, fazer fluir toda a suavidade desses dias. Vindo a ser tão só, quando eu fechava bem os olhos, uma cascata ensurdecida pela névoa…
O totalmente simples se mostra impossível de ser dito. No entanto, eu o vejo e sinto, e não há pensamento, por mais poderoso, por mais assassino que seja, que tenha conseguido me apartar disso até agora. Pássaro auspicioso, viajas em tua pátria. Pousas cá e lá ou voas por um breve instante, talvez te distancies mais à noite, mas, o que quer que faças, é como se nada faltasse, como se tu fosses a voz que sobe e desce os degraus do mundo, entre terra e céu, nunca por fora, sempre no globo infinito, livre, porém, dentro, aí, bem próximo, na forquilha dos galhos prateados, não espera nem foge de nada, viajante que um segundo de alegria sem razão nenhuma subtrai ao movimento da viagem para deixá-lo pousado, parado, onde? Na luz das folhas que logo cairão para dar lugar ao céu, ao tempo dourado de outubro, vestido de ar, subitamente incapaz de escutar uma palavra como ir, ou partir, ou fronteira, ou estrangeiro. Abençoado vestido de sua luz natal.
LA TOURTERELLE TURQUE
Est-ce le berceau de l’aube ? C’est du moins, d’abord, des couleurs, un nid de couleurs, fines et douces comme celles qu’assemble la naissance du jour, et pourtant différentes ; couleurs, ou plutôt nuances, gradations sans ruptures, nuages de terre et de lait qui se mêlent ou, mieux, s’épousent ; sous ce collier d’ardoise. Nuage assoupi, nuage couché dans la cage, tout au fond de la chambre paysanne, nœud de fumée dans la fumée.
Mais déjà l’œil a démêlé que c’est aussi un corps, tiède, vivant, des courbes de laiteuse terre, que c’est une gorge qui respire, une douceur, une langueur plumeuse. On la dirait qui dort, un nuage endormi dans son haleine, nuage, ou plus confusément encore, nue.
Brusquement, par quelque alerte éveillée, tirée du rêve, battent les ailes, ouvertes un instant comme des drapeaux qui claquent, ou des lignes. Alors on découvre la voluptueuse envolée, ce lit de plumes ailé, cette langueur enhardie ; ou serait-ce une barque, sous ses voiles dressées, qui cacherait en l’emportant quelque reine couchée dans le bouillonnement de ses draps, de l’écume ?
Mais au miroir embué d’une nuit, plus tard, peut-être en rêve, ou entre veille et sommeil, j’ai connu de qui tu pouvais être aussi l’image, de quelle femme si indolente, la voix rauque, et de peau si blanche, les dents presque transparentes entre des lèvres pâles, qu’on s’étonne, tourne-t-elle un instant, mais sans hâte, les yeux vers vous, que le brun de son iris puisse à ce point vous brûler ; mais puisque ce n’est pas un feu, même pas enfermé dans une lanterne d’ambre, puisque c’est seulement la couleur de ce qu’un feu longtemps n’a fait qu’approcher, frôler, puisque c’est le reflet seulement d’un très long feu lointain, puisque ce n’est que la caresse, et peut-être encore imaginaire, du feu, elle donc bien, par son teint laiteux comme par ce double iris brun (déjà détourné, ou voilé par une paupière lasse), toute langueur.
Tourterelle turque, si bien nommée : odalisque portant à la nuque ce collier d’ardoise qui signifie peut-être : « serve de la nuit ».
L’aube n’est pas autre chose que ce qui se prépare, encore pur, à brûler ; l’aube est celle qui dit : « attends encore un peu et je m’enflamme » ; le bourgeon de quelque incendie.
Mais celle-ci est plutôt ce que le feu ne touche qu’à distance, ce qui est séparé du feu ou par la distance ou par le temps ou par le souvenir, le mélange de l’ardeur et de la distance, la mémoire de l’amour qui coulerait interminablement en nous.
L’oiseau qui se dresserait ainsi sur le poing ridé, ce n’était que mon corps qui l’avait un instant rêvé pareil à cette femme, ce n’était que lui qui avait trouvé ces liens, ces mots entre eux.
Je crois que si je clignais des yeux comme on fait pour ne pas être embarrassé par les détails d’une peinture, jusqu’à ne plus voir qu’une lueur sur cette main, une flamme vacillante, je serais plus près de ce que j’avais tout d’abord éprouvé : le trouble, la joie d’une annonciation à peine saisissable, ou l’entre-bâillement de la porte du Temps.
Plus tard encore, j’ai vu un oiseau de même espèce habiter mon jardin, marcher sur ses murs sans être inquiété par les chats, et quelquefois il était dans le figuier que l’automne jaunissait, éclairait. Plus beau qu’aucun fruit, libre comme une pensée silencieuse dans le feuillage du cœur vieillissant. Parfaitement tranquille, en cet abri, bien que sans aucune attache, et par sa voix semblant absorber ou traduire, et faire couler toute la douceur de ces journées. N’étant plus, si je fermais tout à fait les yeux, qu’une cascade assourdie par la brume…
C’est le tout à fait simple qui est impossible à dire. Et pourtant je le vois et je le sens, et il n’est pas de pensée, si puissante, si meurtrière soit-elle, qui m’en ait pu disjoindre jusqu’ici. Oiseau favorable, tu voyages dans ta patrie. Tu te poses ici ou là ou tu voles un court instant, peut-être t’éloignes-tu la nuit davantage, mais quoi que tu fasses, c’est comme si rien ne manquait, comme si tu étais la voix qui monte et descend les degrés du monde, entre terre et ciel, jamais en dehors, toujours dans le globe infini, libre mais au-dedans, là, tout proche, à la fourche des branches argentées, n’attendant ni ne fuyant rien, voyageur qu’une seconde de joie sans aucune raison dérobe au mouvement du voyage pour le laisser posé, arrêté où ? dans la lumière des feuilles qui bientôt vont tomber pour faire place au ciel, au temps doré d’octobre, vêtu d’air, incapable soudain de plus entendre aucun mot comme aller, ou partir, ou frontière, ou étranger. Bienheureux vêtu de sa lumière natale.
A Voz da Tradutora, Mônica Costa Netto
TARDE
Retorna o momento em que a hora fica perfeitamente imóvel, em que o céu parece mais alto, quando a luz é um óleo que doura a terra muito mais escura. Seus verdes, nessa estação, apagam-se em certas áreas, dando lugar aos retângulos de trigais e lavandas. Redescubro aquele amarelo de que não pude compreender o sentido, senão que está ligado ao calor, ao sol. Esses campos me fazem pensar em cestos de vime nos quais dispõem-se flores com cuidado, nessas caixas de peixes empilhados, em piscinas fervilhantes de um frescor dourado. Mas são campos jazendo sob o fogo que os trabalha e os ergue, cozinhando lentamente no forno celeste; enquanto, bem ao lado, assim como no mercado avizinham-se cestas de produtos variados, as lavandas derramam-se em água crepuscular, em sono, em noite. Sol, sono. O que flameja, brilha, e o que se recolhe. Tarefas úteis do dia, perfumes evaporados da noite. Assim cada parcela do terreno (ao pé do vilarejo de cristal rosa como que içado pela ascensão do ar) tange em nós outras lembranças, outras fantasias, mas todas se harmonizam, também elas suspensas na profundidade, cada vez mais límpida, da tarde de verão: uma louva o calor que ela parece ter trancado em suas gavetas como se fossem moedas de ouro, a outra relembra em voz baixa a obscuridade que ela retém de suas fontes.
Noutro lugar é dita pelos pastos uma palavra ainda mais distante e mais maravilhosa: num desses cercados velados por um choupo solitário em que algumas amoreiras se arredondam, em que percebo ainda uma dezena de ovelhas agrupadas, à contraluz, e que logo estarão na sombra. O que torna possível a combinação tão perfeita desses animais com o capim alto e o óleo do entardecer? Lá longe, na distância, o que significa esse agrupamento fechado, silencioso, e praticamente imóvel? São criaturas mansas, domésticas, por assim dizer, mas ao modo dos fantasmas, não dos gatos e cachorros, no fundo muito distantes de si mesmas, mansas, quase eternas e quase ausentes, amigas da terra nua, da poeira e das pedras — comportam-se como se o único carneiro a lhes guiar de verdade fosse a lua. Velhas como as pedras, elas mesmas pedras lanosas, ou antigos odres lanosos prensados uns contra os outros, usadas, desconfiadas, escondidas pela poeira levantada por seus trotes, imemoriais e santas, posto que seu sangue busca a alma dos mortos, posto que banhar-se no seu leite purifica. Eternamente balindo e trotando numa nuvem de poeira, benfazejas, tosquiadas, amedrontadas, é sempre como se Jacó, como se Ulisses fosse aparecer em meio ao acre odor das ovelhas e olhar-nos demoradamente.
Mas essa tarde é diferente: elas estão paradas, em grupo, em círculo, no pasto, entre o verde e o ouro de um campo que aos poucos escurece. Essa tarde seria mais precisamente, ainda visível antes do anoitecer, como à luz tênue de uma vela, uma espécie de concílio sussurrante, de conselho preocupado com não se sabe o quê. Animais dourados pela chama invisível, enquanto a cera se espalha e logo se tornará branca na borda do céu, recebendo em sua fronte estreita, ossuda (já quase um crânio) o santo óleo do crepúsculo, a unção solar, nesse cercado contornado de arbustos. Em torno delas, as guardando e situando, encontra-se menos uma barreira ou sebe viva do que um outro círculo, uma outra assembleia mais vasta de folhagens cuja sombra se aprofunda, um recinto que mais do que as conter, levemente trêmulo, desbrava uma passagem para o obscuro — e, por causa do frescor, imagina-se que a noite vem subindo das profundezas, não a noite cruel cujo vazio é angústia sem fim, mas a diáfana, a árvore com veios de prata — enquanto os animais se encolhem no centro ainda iluminado, nessa última dilação do dia. De longe, não se pode adivinhar o que fazem, se pastam, se alguma está balindo, se escutam ou esperam. Pouco importa. Protegidas pela efusão das profundezas, nessa argola cintilante e fresca da noite iminente, ainda assistidas pela claridade de um círio sustentado por ninguém, dir-se-ia que estão todas ocupadas soletrando baixinho as palavras “capim”, “terra”, “pasto”; a não ser que seja “paz infinita”, “paz soberana”, “tranquilidade para sempre no centro”. Última lição na escola do bocage¹, vésperas de estábulo, liturgia da hora, nesses recônditos dos campos: a lição dita e ouvida, eis a chama apagada, e a suave flecha do sono fincada bem no coração de todas as coisas.
SOIR
De nouveau ce moment où l’heure est parfaitement immobile, où le ciel semble plus haut, quand la lumière est une huile qui dore la terre bientôt plus sombre. Ses verdures en cette saison s’effacent par endroits, laissant la place aux rectangles des blés et des lavandes. Je retrouve ce jaune dont je n’ai pu saisir le sens, sinon qu’il est lié à la chaleur, au soleil. Ces champs me font penser aux corbeilles d’osier où l’on couche avec précaution les fleurs, à ces cageots où sont serrés les poissons, à des bassins grouillant d’un frai doré. Mais ce sont des champs couchés sous le feu qui les travaille et les soulève, cuisant lentement dans le four céleste ; tandis que tout à côté, comme voisinent au marché des corbeilles d’espèces variées, les lavandes se fondent en eau crépusculaire, en sommeil, en nuit. Soleil, sommeil. Ce qui flambe, rayonne, et ce qui se recueille. Tâches utiles du jour, parfums envolés de la nuit. Ainsi chaque parcelle de l’étendue (au pied d’un bourg de cristal rose presque emporté, dirait-on, par l’ascension de l’air) flatte en nous d’autres souvenirs, d’autres rêveries, mais toutes s’accordent, elles aussi suspendues à la profondeur, de plus en plus limpide, du soir d’été : l’une loue la chaleur qu’elle semble avoir serré dans ses tiroirs comme autant de pièces d’or, l’autre rappelle à voix basse l’obscurité qu’elle retient dans ses fontaines.
Ailleurs est dite par les prés une parole encore plus lointaine et plus merveilleuse : dans ces sortes d’enclos où veille un seul peuplier, où quelques mûriers s’arrondissent, où j’aperçois encore une dizaine de moutons groupés, à contre-jour, bientôt dans l’ombre. Qu’est-ce qui accorde si parfaitement ces quelques bêtes à l’herbe haute et à l’huile du soir ? Là-bas, dans le lointain, que signifie ce groupe serré, silencieux, à peu près immobile ? Ce sont des bêtes douces, domestiques si l’on veut mais plutôt à la façon de fantômes que de chats et de chiens, au fond très lointaines elles-mêmes, douces, presque éternelles et absentes, amies de la terre nue, de la poussière et des pierres — et telles que si le seul bélier qu’elles suivent vraiment était la lune. Vieilles comme les pierres, elles-mêmes pierres laineuses, ou antiques outres laineuses pressées les unes contre les autres, usées, farouches, cachées par la poussière que leur trottinement soulève, immémoriales et saintes, puisque leur sang cherche l’âme des morts, puisque se baigner dans leur lait purifie. Éternellement bêlantes et trottant dans un nuage de poussière, bénignes, râpées, peureuses, c’est toujours comme si Jacob, comme si Ulysse parmi leur âcre odeur allait paraître et longuement nous regarder.
Mais ce soir, c’est autre chose : quand elles sont arrêtées, en groupe, en cercle, dans les herbes, entre le vert et l’or d’un pré qui peu à peu s’assombrit. Ce serait plutôt, juste encore visible avant la nuit, comme à la lueur jaune d’une bougie, une sorte de concile chuchotant, de conseil occupé d’on ne sait quel souci. Bêtes dorées par la flamme invisible, tandis que la cire s’épanche et bientôt blanchira au bord du ciel, recevant sur leur front étroit, osseux (presque un crâne déjà) l’huile sainte du crépuscule, l’onction solaire, dans cet enclos bordé d’arbustes. Autour d’elles, qui les garde et les situe, il y a moins une barrière ou une haie qu’un autre cercle, une autre assemblée plus large de feuillage dont l’ombre se creuse, une enceinte qui, plutôt qu’elle ne les enferme, en frissonnant doucement fraie un passage à l’obscur — et, à cause de la fraîcheur, on imagine que c’est la nuit qui monte d’en bas, non la nuit cruelle dont le vide est angoisse sans fond, mais la diaphane, l’arbre veiné d’argent — tandis que les bêtes se serrent au centre encore éclairé, dans ce dernier sursis du jour. De loin, on ne peut deviner ce qu’elles font, si elles broutent, si quelqu’une bêle, si elles écoutent ou attendent. Peu importe. Gardées par l’effusion des profondeurs, dans cette boucle scintillante et fraîche de la nuit imminente, encore aidées par la flamme d’une chandelle que nul ne tient, on les dirait toutes ensemble occupées à épeler tout bas les mots « herbe », « terre », « pacage » ; à moins que ce ne soit « paix infinie », « paix souveraine », « tranquillité dans le centre à jamais ». Dernière leçon dans l’école bocagère, vêpres d’étable dans ces replis des campagnes : la leçon dite et entendue, voici la flamme soufflée, et le doux trait du sommeil fiché en plein cœur de toutes choses.
[1] (N.T.) A paisagem dita de bocage é típica de certas zonas rurais da França. Caracteriza-se pela divisão parcelar de pastos e campos cultivados por meio de muros baixos e, sobretudo, de cercas vivas, ou faixas contínuas de vegetação, arbustos, árvores frutíferas ou silvestres que formam recintos contíguos. O francesismo, embora raro, não é inusitado, servindo para designar paisagens similares de campos fechados em outras regiões da Europa, como em Portugal. Aqui, Jaccottet, após ter-se dedicado a descrever o entardecer numa tal paisagem, emprega o adjetivo feminino, falando de “école bocagère”. O que poderíamos traduzir por “escola bocagiana”, se o adjetivo existente em português não remetesse ao poeta arcadista lusitano Manoel Maria Barbosa du Bocage, cujo patronímico deriva de um topônimo francês, justamente relativo à paisagem local.
Mônica Costa Netto
(1966 ) nasceu e mora no Rio de Janeiro. É Mestre em Filosofia por Paris 8 (França), onde também graduou-se e foi doutoranda. Mãe de três filhos, trabalha como tradutora, intérprete e professora. Há muitos anos, desenha, pinta e escreve poemas, mas nunca expôs ou publicou.